Protesto

Todas as faces do 30º Grito dos Excluídos e Excluídas, em Curitiba, Paraná

Com o lema de “Todas as formas de vida importam! Mas quem se importa?”, 30ª Marcha dos Excluídos e Excluídas, em Curitiba (PR) retratou identidade cultural de várias comunidades
Concentração para marcha. Foto: Leonardo Henrique

Por Jan Schoenfelder/Coletivo Marmitas da Terra
Da Página do MST

Um carro de som quebra a monotonia do centro velho de Curitiba, na manhã de 7 de setembro, seguido por uma pequena multidão de manifestantes. Não são muitos, mas são particularmente diversos.

Com o lema de “Todas as formas de vida importam! Mas quem se importa?”, os que vêm à frente da 30ª Marcha dos Excluídos e Excluídas trazem no rosto a identidade cultural de sua comunidade, e carregam faixas com palavras de ordem em defesa dos direitos dos povos indígenas. Os que vêm depois formam um aglomerado de múltiplos nuances daquilo que fere a face impermeável da sociedade branca, neoliberal, elitista, exclusivista e que os vê como um só balaio de gatos (não existe erro maior): representantes de coletivos de resistência popular.

Cada pessoa na passeata defende uma bandeira, mas é claro que, independentemente de origem e formação, e tendo interesses comuns, ninguém é igual a ninguém.

A constatação é tão óbvia que a pergunta jamais deveria ser feita, porém, nas portas de uma das poucas lojas do baixo comércio a abrir no feriado da independência, dois funcionários ociosos se cutucam e trocam cochichos diante das figuras que se destacam na passeata, coloridas, alegres e barulhentas, pessoas pretas, LGBQIAPN+, povos de terreiros, assentados, freiras, gente que vive nas ruas, enfim, um grupo ímpar que luta todos os dias para que moradia, alimentação, vida digna e trabalho sejam patrimônio social de todos, indistintamente.

É nesse momento que surge a vontade de responder à pergunta improvável: quem de fato são esses manifestantes?

Palestina livre!

Marcha do 30º Grito dos Excluídos e Excluídas. Foto: Leonardo Henrique.

O gaúcho Paulo D´Ávila, 74, é um dos que chamam a atenção. Ele caminha solitário, devagar, segurando uma bandeira da Palestina. Pouco é possível arrancar de seu olhar calmo e concentrado, para não dizer um tanto triste. Seu andar é silencioso e, se há alguém que possa confundir a cabeça de quem acompanha de fora a Marcha, é ele.

“Os palestinos são, por mais de 75 anos, os grandes excluídos, sofrendo a humilhação, a violência, os massacres sistemáticos e agora o genocídio, sob a aprovação de muitos e o silêncio da maioria”, diz, acrescentando: “nas atividades de rua já ouviste o refrão ´Chega de chacina, da PM na favela e de Israel na Palestina´? É por isso que estou aqui no Grito. Sou um representante do Comitê de Solidariedade à Palestina”.

30º Grito dos Excluídos e Excluídas. Foto: Leonardo Henrique.

Gaúcho e militando há mais de 50 anos, Paulo é auditor aposentado da Receita Federal e faz parte da diretoria da Delegacia Sindical do SINDIFISCO – sindicato dos auditores da Receita; do Conselho da Comunidade de Curitiba – órgão da Execução Penal – na Comissão de Vistoria dos Presídios da região metropolitana; e do coletivo Desmilitariza, que acolhe e apoia as famílias e as vítimas de violência policial.

Até aí já não é pouca coisa, mas Paulo, sem entrar em detalhes, conta que foi um dos fundadores do PT, ainda que não faça mais parte do partido. “Temos que viver o nosso tempo”, lembra, citando Jean-Paul Sartre. “Em um tempo em que a barbárie está naturalizada, ser indiferente é também ser cúmplice”.

O coletivo somos nós

Ao contrário de Paulo, o ativista Hamilton Luiz Delmutti Manente, 71, não caminha só. Não há pessoa por quem passe com quem não engate uma conversa.

Caminhada. Foto: Leonardo Henrique

Nascido em Maringá, viveu em numerosos fins de mundo, tendo ajudado a desbravar regiões remotas do Brasil. Foi lá que participou do que chama de “as primeiras marchas de excluídos”, ocasiões em que a Igreja reunia assentados em torno da Romaria da Terra, saindo de lugares como Ariquemes e Jaru para protestar no polo econômico, concentrado em Ji-Paraná, Rondônia.

Daqueles meados da década de 1980, Hamilton desencava uma de suas mais marcantes lembranças, que exaltam o poder do coletivismo.

“Estávamos em um período de fortes chuvas e eu trabalhava na Secretaria de Obras de Alta Floresta do Oeste-RO, quando um dia a ponte sobre o rio Guaporé desabou. Ao chegar lá, me deparei com colonos discutindo a reconstrução, cada qual se responsabilizando por uma atividade ou etapa. Não era gente rica. Ao contrário, faziam parte do grupo de camponeses que haviam recebido terras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Em vez de se dirigir ao Estado para pedir uma solução para a ponte, resolveram a questão na hora. Um emprestaria o trator, outro cederia algumas árvores, outro ainda forneceria a mão de obra. E assim em uma semana a ponte ficou pronta”.

Foi naquele momento que Hamilton teve a sua epifania, se convencendo de que qualquer pessoa podia ser um excluído e se dando conta de que “o Brasil vai pra frente porque tem um povo que faz”.

A afirmação pode lembrar um pouco o tom ufanista do governo militar, mas está longe disso. “Vivíamos a época da Teologia da Libertação, as pessoas no campo se reuniam para ler os jornais disseminados pelos padres de visão revolucionária e discutir os problemas da comunidade, entender o funcionamento de mutirões, do plantio do arroz, do feijão”.

Com essa experiência de vida de tão poucos precedentes, Hamilton se sente muito à vontade ao afirmar que, “quando estamos firmes num propósito, vemos que somos a transformação”. 

“Havia uma mística fortíssima nas romarias. Indígenas participavam. Saímos em passeata carregando partes de produção em estandartes. Íamos enrolando feixes delicados de palha que juntos logo se tornavam inexplicáveis. Era um exemplo simples de como a união transforma o coletivo”.

Hoje, como participante do movimento Marmitas da Terra, Hamilton tem a oportunidade de reviver o que tanto o emocionou quando mais novo: “Pessoas humildes, conscientes e solidárias, com ideal comunitário perfeito, tratam a terra como irmã, mãe, a grande responsável por sustentar a vida pela alimentação”.

E quanto ao Grito dos Excluídos, Hamilton?

“É a contraposição às comemorações formais de 7 de setembro”, diz, apontando para o carro de som: “Está ouvindo? Cantávamos essas mesmas músicas em Rondônia trinta anos atrás”.

Futuro conectado à natureza

Segurando um cartaz contra a fome, o chef de cozinha Leonardo Ghisolfi, 26, lembra o início de sua atuação no social, logo após o início da pandemia. Receber um convite para produzir 600 a 900 marmitas solidárias diariamente não é incomum. O diferencial está em aceitar o convite. Foi isso que aconteceu com ele, e foi esse o seu début na ação social.

“A Marcha dos Excluídos e Excluídas e o fim da fome estão conectados no sentido de vivenciarmos a falácia da falsa independência. Quando nos erguemos coletivamente como minoria, porém na condição de maioria, vejo uma prospecção de futuro”, diz o chef, para quem lutar por uma forma de estado diferente leva a prospectar uma forma de vida diferente.

Leonardo atualmente não produz mais como voluntário a inconcebível quantidade de marmitas de antigamente, mas continua ligado à causa. “Luto pela soberania alimentar de toda a população e que a cultura alimentar de cada povo seja exercida. Falar da fome é falar da natureza, da luta pela agroecologia. Nosso futuro está conectado à terra”.

Levante

Levante é o lugar no horizonte em que o Sol se levanta. Mas também significa revolta, erguer-se contra um estado de coisas. “Somos a juventude do projeto popular que não baixa a cabeça para as injustiças e desigualdades, somos mulheres, negros e negras, e LGBTI+. Somos das cidades, das quebradas, das escolas e universidades, e lutamos diariamente pela transformação da nossa sociedade”, lema do Levante Popular da Juventude, que une jovens nacionalmente.

Foi no Levante da Juventude que o produtor cultural formado em Ciências Sociais, Fernan Silva, 31, iniciou sua militância, tão logo saiu de Londrina para morar em Curitiba, cujas ruas agora ocupa, reafirmando seu compromisso com a Marcha.

Fernan entende que o Grito é uma data nacional para os movimentos campesinos, entidades de base, Igreja Católica e para as pastorais. Ele afirma que o grupo veio para apoiar a causa, trazendo a batucada, os estandartes como forma de comunicar, propagandear as ideias.

O que o move é a necessidade de somar, de fazer a luta conjunta. E, claro, “a linha socialista, de superação desse modo de vida que é explorador e extermina as condições básicas de existência. É o que me mantém em movimento”.

A vida em primeiro lugar

Caminhada. Fotos: Leonardo Henrique.

Paulo, Hamilton, Fernan e Leonardo se somam às centenas de outros manifestantes, ativistas ou não, cujos rostos, roupas, batucadas, cantos e protestos fazem da Marcha o mais consciente grito de liberdade e expressão de independência – ou busca de – no país. 

Indo e vindo entre os grupos que protestam contra a desigualdade social, encontramos até mesmo quem veio a passeio a Curitiba. O turista Jairo Lima, de Araruna, interior da Paraíba, soube da Marcha e não hesitou em participar, desejando e se sentindo especial por “ser útil”.

Da pastoral da Paróquia Bom Jesus dos Perdões veio o “agente” Marlon, o Bin. Marlon passou dez anos vivendo nas ruas, mesmo tendo um trabalho fixo, contrassenso difícil de explicar, principalmente porque sua função era justamente a de motorista de abordagem da FAZ, aquele que dirige as Kombis no atendimento a quem está nas ruas à noite.

Falas. Foto: Leonardo Henrique

“O que aprendi na vida é a gratidão, a resiliência”, afirma o homem que galgou cursos via liceus do ofício e está se formando em Teologia.

E há quem tenha procurado a Marcha pela razão de não poder expressar sua fé abertamente. Ronan Atubenganga, mestre erveiro e educador popular, é uma das lideranças do Terreiro Casa da Aroeira, em Colombo – PR. “A intolerância religiosa é uma violência sutil e constante. Por diversas vezes deixamos de realizar nossas atividades religiosas e culturais, ou utilizar nossos símbolos identitários, e essas pequenas coisas somadas nos causam um sentimento profundo de não poder existir. Todas as lutas aqui presentes são minhas também como cidadão, trabalhador e pessoa periférica. Me solidarizo à qualquer luta por justiça social”.

Povo de terreiro. Foto: Leonardo Henrique

Marmitas da Terra

Produção das marmitas. Fotos: Barbara Zem.

Discreta, de olhar marcante e palavras firmes, a professora da rede estadual do Paraná, Vanessa Dotto, está há quatro anos no coletivo Marmitas da Terra, agora uma iniciativa social coletiva já homenageada na Câmara dos Vereadores pela atuação no combate à fome durante a pandemia, em Curitiba.

Vanessa Dotto. Foto: Barbara Zem

“Voltar com as marmitas na praça é bastante simbólico porque estamos num país que ainda tem fome, apesar da melhora dos índices. Ainda há muitas pessoas em situação de vulnerabilidade, nas ruas, e é aí que o coletivo entra. A luta é diária para que todos tenham direito a uma alimentação saudável e viver sua independência alimentar”, diz a professora.

Comida para quem tem fome

Marmita. Foto: Barbara Zem

Se o efetivo da Marcha, enquanto se dilata pelas ruas da capital, é composto por manifestantes com causas bem definidas, é na Praça Tiradentes que o eixo da exclusão se rompe. Como que saindo do nada, habitando o desconhecido, se multiplicando a partir da escadaria da Catedral Metropolitana e das ruas vicinais, que servem de dormitório, mictório e restaurante, um sem-número de seres humanos vivendo em condições degradantes aparece para a possível única refeição do dia, fornecida pelo coletivo Marmitas da Terra.

Em questão de minutos, na calçada começa a faltar lugar, enquanto água e quentinhas são distribuídas. O vozerio se eleva para acima do caminhão de som e não é mais possível distinguir a voz e o canto dos animadores.

Avisos de formar fila se fazem imprescindíveis. E em pouco tempo todo o alimento é distribuído, beneficiando não só quem vive nas ruas, mas também desempregados, crianças, famílias inteiras que retornam para buscar um excedente e levar para casa.

Entrega das marmitas. Foto: Leonardo Henrique

Quem come ali mesmo na praça se prontifica a ajudar na organização, limpeza, não deixam o lixo se espalhar pelo chão.

Parte do coletivo Marmitas da Terra. Foto: Leonardo Henrique 

Para plantar e colher a diversidade de comida saudável, o coletivo mantém suas atividades de mutirão a cada 15 dias, no assentamento Contestado, Lapa (PR), e formações mensais, em Curitiba.

Na relação campo e cidade, os alimentos agroecológicos, cultivados em áreas de Reforma Agrária Popular, alimentam a população urbana agora por meio das cozinhas comunitárias em ocupações urbanas, sempre defendendo a máxima: “se o campo não planta, a cidade não janta”.

Venha participar! Seguimos construindo uma sociedade mais justa, humana e solidária!

*Editado por Solange Engelmann