Saúde Mental

Sofrimento mental na população do campo, da floresta e das águas: uma realidade ainda invisível

Primeiro artigo da coluna do setor de Saúde do MST debate a importância de políticas de saúde mental para as populações nos territórios
Foto: Jonas Santos

Por Luis Lopes Sombra Neto e Leandro Araujo da Costa
Da Página do MST

A luta antimanicomial trouxe importantes contribuições para os movimentos de luta pela saúde mental humanizada. Os movimentos populares do campo como o Movimento Sem Terra (MST) reafirmam sua luta pela saúde nessa perspectiva, se contrapondo a ideia do encarceramento e de tratamentos impostos como os realizados pelas comunidades terapêuticas.

Os transtornos mentais geram grande sofrimento para os indivíduos que os apresentam, seus familiares e cuidadores. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2019), por exemplo, identificaram o diagnóstico de depressão em 10,2% dos brasileiros com mais de 18 anos, representando 16,3 milhões de indivíduos. Apesar desses indicadores, observa-se uma grande fragilidade na assistência à saúde mental no Brasil, em que apenas 52,8% dessas pessoas relataram ter recebido assistência médica para depressão nos últimos 12 meses e somente 18,9% estavam em acompanhamento psicoterapêutico.

Esses indicadores podem ser mais alarmantes nas populações do Campo, das Floresta e das Águas (CFA). O próprio estigma e a marginalização em que, historicamente, encontra-se a população desses territórios é um dos contribuintes para o sofrimento mental, afetando a qualidade de vida das pessoas. Fatores como barreiras de acesso dadas pelo isolamento ambiental e social; dificuldade de acesso aos serviços de saúde; violação de direitos civis (como o acesso e posse da terra), culturais e políticos de exclusão de oportunidades na área da educação e renda podem manifestar- se por meio de sintomas psicossomáticos, uso de substâncias lícitas e ilícitas, ou mesmo transtornos mentais.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde realizada pelo IBGE (2019) estimou-se que 7,8% das pessoas que vivem em territórios chamados rurais tem o diagnóstico de depressão, com prevalência em mulheres. Constatou-se que desse total, quase metade (45,6%) fazem uso de medicamentos para tratamento de depressão.

Na análise dos fatores que contribuem para o desenvolvimento de transtornos mentais na população do CFA, é importante considerar o trabalho exercido nestes territórios que, muitas vezes, têm relação direta com o ambiente e o espaço onde vivem. O sofrimento mental está associado ao esforço físico exorbitante no contexto de trabalho, à exploração dos corpos que ali vivem, às políticas ineficazes de garantias de renda, principalmente em períodos de escassez e à preocupação com o sustento familiar.

Os cuidados em saúde mental apresentam elementos intrínsecos que devem ser inseridos pelos seres humanos no seu autocuidado e no apoio à sua rede de apoio social e comunitária. Entre eles, podemos  citar intervenções psicossociais como a promoção de funcionamento de atividades diárias, mudança de estigmas sobre saúde mental, realização regular de atividade física, redução de estressores de vida, fortalecimento de relações interpessoais e comunitárias, adesão às estratégias psicoterápicas, vivência de práticas integrativas e complementares, dentre outras.

Além disso, é fundamental que as pessoas em sofrimento mental tenham acesso aos serviços de saúde e sejam garantidos os cuidados em todos os níveis de atenção, incluindo promoção, prevenção, proteção, tratamento e reabilitação da saúde mental. Sendo assim, a Atenção Primária à Saúde, principalmente por meio da Estratégia Saúde da Família, é um elemento central nesses cuidados em saúde mental, majoritariamente nos territórios rurais, por ser responsável em inserir a família e a comunidade como objeto e sujeito do cuidado e de articular os demais equipamentos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial. Ademais, é importante salientar que as populações do CFA realizam suas práticas populares de saúde no cotidiano dos cuidados com pessoas que residem nesses territórios e fazem ações que permitem produzir saúde na perspectiva individual e comunitária.

Para que sejam assegurados esses cuidados qualificados também é necessário que profissionais sejam preparados para o atendimento especifico à população do CFA, e que tenham vivências nessa realidade desde a graduação e estejam sensibilizados em relação à determinação social em saúde que contribuem para o adoecimento das pessoas. Dessa forma, os gestores devem investir na educação permanente desses profissionais e em estratégias para melhorar a qualificação profissional, as ações interprofissionais e o matriciamento em saúde mental.

Outro aspecto importante, é a luta permanente que os movimentos populares desses territórios devem fazer em defesa dos territórios, pois o impacto dos grandes empreendimentos têm potencializado a desterritorialização, destruição da natureza, junto com o racismo ambiental que tem afetado diretamente essa população do CFA e produzido, consequentemente, adoecimento mental individual e coletivo.

Faz-se necessário ações de luta em defesa da saúde e de políticas públicas que protejam as pessoas e o ambiente em que estas estão imersas. A política de saúde das populações do campo, da floresta e das águas deve ser uma bandeira de luta permanente para seu reconhecimento e implantação, bem como o fortalecimento do cuidado em saúde mental na rede de atenção à saúde.

Apesar dessa realidade, a saúde mental da população do CFA ainda precisa de maior visibilidade dentro das políticas públicas, resultando em incentivos ainda insuficientes. Portanto, torna-se necessário o investimento em medidas estratégicas, como ações específicas para prevenir os fatores de risco, mitigar prejuízos decorrentes dos transtornos mentais e fortalecer os cuidados integrais e longitudinais em saúde mental.

As populações do CFA têm mais dificuldade de acesso ao cuidado em saúde mental pela rede de atenção à saúde, o que requer apontar caminhos que possam produzir inclusão no cuidado integral com possibilidades de cuidados em saúde mental a serem construídas junto a essa população e não somente para essa população.

Referências:

  1. Costa, Leandro Araujo da et al. Estratégia Saúde da Família rural: uma análise a partir da visão dos movimentos populares do Ceará. Saúde em Debate [online]. 2019, v. 43.
  2. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde. Rio de Janeiro, RJ: IBGE; 2019.
  3. Sombra Neto LL, Forte MPN, Pessoa VM, Campos EM. Problemas de saúde mental na população rural brasileira: prevalência, fatores de risco e cuidados. Rev Med UFC. 2022.
  4. Sombra Neto LL, Silva FVE, Barbosa ACM, Carneiro FF, Pessoa VM. Condições de vida e saúde de famílias rurais no sertão cearense: desafios para Agenda 2030. Saúde Debate. 2021.
  5. World Health Organization (WHO). Mental Health Gap Action Programme (mhGAP) guideline for mental, neurological and substance use disorders. Geneva: World Health Organization; 2023.

*Primeiro artigo da coluna mensal que o Setor de Saúde do MST irá ocupar na Página do Movimento, com reflexões sobre ações, iniciativas e elaborações em torno da saúde popular nas áreas de Reforma Agrária.

**Editado por Solange Engelmann