Dia da Alimentação

Elisabetta Recine fala sobre Dia Mundial da Alimentação para o Marmitas da Terra (PR)

Neste 16 de outubro celebramos o Dia Mundial da Alimentação, e conversamos com a Presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e assessora da Presidência da República, para falar sobre esse tema fundamental nos dias de hoje
Elisabetta Recine. Foto: Consea

Por Jan Schoenfelder, do Coletivo Marmitas da Terra
Da Página do MST

O Dia Mundial da Alimentação (16/10) foi uma data criada para gerar reflexão sobre a situação alimentar global e iluminar o óbvio: a comida não chega até boa parte da população, e a que chega deixa muito a desejar em valores nutricionais.

Os dois casos se entrelaçam, atingindo por excesso ou falta a dieta e a saúde de ricos e pobres. Por um lado, o agronegócio e a indústria contaminam o solo, envenenam o planeta e forjam um cenário de crise fantasiada de abundância. Por outro lado, alternativas como a alimentação orgânica, a agrofloresta e a agricultura familiar, que se ocupam com o que é saudável para a terra e para quem come, sem a lógica do lucro a qualquer custo, lutam contra a falta de consciência de que o planeta e as pessoas vão quebrar no ritmo atual do consumo.

Para falar sobre o tema, Marmitas da Terra conversou com Elisabetta Recine, Presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Confira abaixo:

MARMITAS DA TERRA – A busca por justiça social e redução das desigualdades é histórica. O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) é uma gota no oceano?

ELISABETTA RECINE – Na verdade, justiça social, redução das desigualdades e a garantia do direito humano à alimentação adequada são gotas do mesmo oceano. E o Consea é um dos guardiões da Comida de Verdade, defendendo e valorizando nossas culturas alimentares, que também são expressões dos territórios urbanos, rurais, de povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana/povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, comunidades tradicionais, agricultoras e agricultores familiares, camponesas e camponeses, trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais.

Nossa gota se expressa pela defesa das terras e territórios, da transição agroecológica, do controle de agrotóxicos, e defendemos a saúde, a divisão justa do que o sistema alimentar gera de riqueza, da cultura e tradição. Que a articulação cidade-campo se fortaleça, para que as cidades também plantem seus alimentos e para que cada comunidade tenha sua feira, seu mercado de produtor. Para que o cuidar da alimentação saudável não seja um fardo para as mulheres e sim um cuidado compartilhado por todas e todos.

Atuamos pelo fortalecimento do Sistema e Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, pela articulação com outros sistemas de políticas públicas como o SUS e o SUAS. De 2019 a 2022 enfrentamos uma grande tempestade: ameaça à democracia, destruição de políticas públicas, pandemia, pobreza, violência, extinção do Consea Nacional. Ações antidemocráticas que tentaram paralisar a sociedade civil, mas não conseguiram.

Ressignificamos o verbo “resistir”. À medida da deterioração de valores, dos parâmetros de diálogo, das condições de vida e da própria existência ameaçada, foram sendo também criadas, nas organizações movimentos e comunidades, novas formas de apoio, articulação e prática.

Dedicamos o melhor de nós para reabrirmos as portas em 2023, com esperança e entusiasmo. Foi assim que, em 28 de fevereiro de 2023, o Consea Nacional foi reinstalado e assumimos a única alternativa possível: reforçar a luta para erradicar a fome e garantir direitos com comida de verdade, democracia e equidade. E, assim, seguimos fortes enfrentando realidades cada vez mais desafiadoras.

O presidente Lula ressaltou, durante a premiação Goalkeepers, em Nova York, que “A fome no mundo não é falta de dinheiro, é falta de vergonha”. Admitindo essa premissa, como chegar a esse dinheiro, quebrando a barreira que nos separa dele?

ELISABETTA RECINE – Cada vez fica mais evidente que o sinônimo de fome não é pobreza e sim riqueza. O Consea aprovou recentemente uma recomendação à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e ao Ministério da Fazenda (MF) solicitando esforços para que a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza seja pautada e orientada pelo Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e, um dos pilares que destacamos, foi a questão do financiamento.

O Brasil precisa fortalecer a defesa e encontrar caminhos para que os sistemas de financiamento para a Aliança Global sejam mais justos e remetam à reparação dos povos e comunidades que sofrem com as consequências das relações espoliadoras entre o Norte e o Sul. Não é coincidência que os países mais endividados são aqueles com maiores índices de fome e piores condições de vida. Na prática, como podemos alcançar esse objetivo? A Aliança precisa promover mecanismos de troca de dívida (debt swap) dos países pelo financiamento da cooperação e implementação de políticas de enfrentamento da fome e da pobreza e/ou mecanismos para o cancelamento da dívida com vistas a superar as causas estruturais das violações ao DHAA.

Outra medida sugerida pelo Consea é a implementação de mecanismos de taxação global, associados a fundos para a superação da fome e da pobreza; o alinhamento de critérios de financiamento de fundos financeiros, instituições filantrópicas, dentre outros agentes financeiros, aos princípios do DHAA, objetivos e diretrizes da Aliança Global e aos critérios da cesta de políticas, reconhecendo a premente necessidade de reverter a atual fragmentação e o foco dos principais financiamentos existentes para que busquem alinhar-se ao compromisso de enfrentar a fome e a pobreza.

Ou seja, é essencial que a Aliança Global assegure uma governança inclusiva, democrática, participativa e transparente em nível internacional para o fortalecimento do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) das Nações Unidas, como espaço principal de coordenação multilateral da ação política desta agenda.

Com que propostas (e resultados) o Brasil vai inspirar as discussões da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, na Cúpula de Líderes em novembro?

ELISABETTA RECINE – Os sucessos e os retrocessos do Brasil na superação da fome nos habilitam a problematizar o que é necessário para avanços sustentáveis, nosso país tem experiência para este intercâmbio internacional para impulsionar a realização do direito à alimentação adequada. O Brasil, desde 2010, prevê o direito à alimentação na Constituição Federal. Temos legislação específica, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional para implementar este direito, que prevê articulação de setores de governo e participação social.

Este processo não é nada simples, pelo contrário, mas temos dados passos que nos diferenciam de grande parte das experiências internacionais que ainda são fragmentadas e possuem pouco ou nenhum diálogo com a sociedade civil. Aprendemos todos os dias que para além de bons programas precisamos mudar a forma como pensamos, planejamos e executamos políticas públicas.

A interlocução com a sociedade civil organizada precisa ultrapassar a etapa da consulta e avançar para a definição compartilhada de prioridades, definição de orçamento e monitoramento de resultados. A chave da mudança está em como as políticas públicas devem ser implementadas. Por que tantos anúncios de acabar com a fome fracassam? Porque os compromissos são retóricos e não se articulam com os sujeitos de direito. São as forças populares organizadas que sustentam as mudanças necessárias.

Nós precisamos não apenas mudar as regras do jogo, mas o jogo em si e isso não é utopia, é uma emergência mundial. A Aliança Global pode ser uma oportunidade para seguirmos com esta defesa no âmbito global.

As famílias atendidas pelo Bolsa Família passaram a consumir e a sofrer os efeitos de alimentos ultraprocessados, como sobrepeso e obesidade. Um mal elimina o outro?

ELISABETTA RECINE – Primeiro é importante ficarmos atentas/os a como nos referimos às pessoas e famílias atendidas por programas sociais.

Não são beneficiárias, pois estas ações não são benefícios e sim direitos. Todo direito humano tem a dimensão do provimento, isto é, se as pessoas por diferentes motivos, não têm condições de realizar o seu direito de maneira independente, é obrigação do Estado, dos governos, proverem este direito, juntamente com ações que promovam e protejam os direitos.

Assim, para ficar mais adequado, “as famílias atendidas pelo Bolsa Família” aumentam o consumo de todos os alimentos, inclusive produtos ultraprocessados. Isto acontece por diferentes motivos. Primeiro porque os ultraprocessados já estão relativamente mais baratos que os produtos frescos, além disso, têm esquemas de distribuição e comercialização que os disponibilizam em diferentes canais de varejo.

Há também um apelo de marketing intenso que os torna extremamente atrativos e desejados. É só prestar atenção, por exemplo, nas peças publicitárias, que estimulam a compra não de um produto, mas de um estilo de vida, status, felicidade etc. É mais do que urgente ampliar a produção, oferta e acesso a alimentos frescos, saudáveis, produzidos de maneira sustentável.

Por isso é tão festejado o lançamento do Plano Nacional de Abastecimento que deverá capilarizar as feiras, o comércio local, mercados de produtores familiares e estimular a produção agroecológica. Pensando nisso, o Consea aprovou em março, duas recomendações ao Ministério da Fazenda sobre a inserção dos alimentos ultraprocessados e dos agrotóxicos no novo Imposto Seletivo, proposto no texto da Reforma Tributária.

Recomendamos ao Ministério da Fazenda: que seja previsto na Cesta Básica Nacional de Alimentos com fins tributários apenas alimentos in natura ou minimamente processados e alimentos processados selecionados e que, no rol de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente a serem tributados com o imposto seletivo, insira-se os produtos alimentícios ultraprocessados.

A incidência de um imposto superior à média torna os ultraprocessados menos atraentes economicamente, desencorajando o seu consumo. Também indicamos que nas leis complementares sejam estabelecidos mecanismos tributários que promovam a produção e o consumo de alimentos saudáveis, agroecológicos e oriundos da sociobiodiversidade produzidos localmente pela agricultura familiar. Ainda reforçamos que o Guia Alimentar para a População Brasileira seja diretriz para a construção da política tributária, contribuindo para a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada.

O Brasil também avançou com medidas para controlar o uso de agrotóxicos, aprovando em julho a ampliação da taxa cobrada pela Anvisa e Ibama para registro de produtos com base na periculosidade. Essa é uma experiência recente e que precisa ser monitorada para que seus efeitos positivos sejam amplificados. Impostos com alíquotas progressivas ao grau de toxicidade já existem em diversos países e se configuram como um importante instrumento para a transição agroecológica.

* Elisabetta Recine é presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) 2023-2025 – que reúne representantes da sociedade civil e do governo e assessora a Presidência da República – cargo que também ocupou em 2017-2018. Também é professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB).

*Editado por Fernanda Alcântara