Violências Contra Mulheres

Um papo sobre assédio

Foto: Reprodução
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Por Mayrá Lima
Da Página do MST

Neste curto texto, quero trazer alguns apontamentos sobre o assédio, principalmente nos lugares de militância política. Escrevo ciente de quem vai ler essas linhas: mulheres militantes de um movimento social consolidado. Não pretendo aqui esgotar debate, até pelo curto espaço destinado. Entendo a delicadeza do assunto, tal como o seu potencial polêmico. Então, vamos lá! Despretensiosamente…

Dados dos mais variados tipos mostram que assédio, seja de qual tipo for, trata-se de um fenômeno baseado em relações de poder e que reafirma desigualdades baseadas em gênero nas mais diversas esferas sociais. Numa relação em que há assédio, há como pano de fundo a crença de que o outro está em uma situação hierárquica menor que a do agressor.

Deste modo, condutas qualificam tipos de assédio: se sexual, trata-se do crime (Código Penal art. 216-A), de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual”; se moral, trata-se de conduta abusiva e intencional que busca prejudicar a dignidade, a integridade física ou psicológica de uma pessoa. Já a importunação sexual é a conduta que atenta contra a liberdade e a dignidade sexual das pessoas; ou seja, beijos roubados, apalpar, tocar, lamber, passar a mão nas partes íntimas, ejacular e/ou masturbar-se na frente de pessoas sem consentimento – pode levar de um a cinco anos de prisão.

Assédio acontece na grande maioria das vezes contra mulheres, pois é ação resultante da incidência social das relações patriarcais. Ou para citar uma intelectual já bastante conhecida por muitas de nós, Heleieth Saffioti: onde o acesso ao corpo da mulher é parte do “contrato sexual” que molda relações desiguais de gênero (Gênero Patriarcado Violência – Saffioti, 2015). Há papeis sociais que foram construídos para as mulheres no contrato social que fundamenta as sociedades modernas capitalistas. E nesses papeis, as mulheres são corpos “à disposição” de homens para o trabalho doméstico, o cuidado e subordinação sexual.

É nesse contexto mais sociológico e político que se “justifica” o assédio no mundo do trabalho, lugar construído para as masculinidades, para homens em posições de comando. Porém, não somente. O que dizer do assédio nas organizações políticas e movimentos sociais? Ou mesmo quando se trata de mulheres em posição dirigente tais quais outros homens?

As mulheres militantes têm obstáculos a serem superados nas suas organizações políticas, assim como em qualquer outro lugar social. Ora, qual de nós nunca teve que sair mais cedo de uma reunião, pois o filho/a precisava de cuidados? Será que as conversas fora dos fóruns “oficiais”, comuns à política, considera o que é seguro às mulheres? Quantas jovens foram questionadas em sua atuação política, ou equiparadas a seus relacionamentos afetivos? Se estamos lidando com questões que são sociais, não é de se esperar que casos de assédio também aconteçam em nossos espaços políticos? Infelizmente, sim.

No entanto, há uma sensação de legitimação do assédio como algo corriqueiro. Mulheres militantes são costumeiramente forjadas a “se sair” dessas situações, não problematizar para não as tornar vulneráveis às disputas políticas, ou mesmo para não expor a organização política e as instâncias dirigentes das quais fazem parte. Há vergonha no compartilhamento do que é desagradável e até mesmo certa demora no entendimento da fronteira – nada curta – da “brincadeira” à situação de assédio.

É difícil de conceber que corpos de mulheres podem também não ser respeitados em lugares em que se deposita confiança política. E a forma velada e individualizada como muitas vezes acontece contribui para esta “legitimação” de situação “supérflua”, sem importância. Porém, ao conectarmos com a reflexão acerca das desigualdades de gênero, percebe-se que assédio é uma forma de violência que, de tão comum, deveria ter uma atenção mais apurada.

Ao olhar para os espaços de militância política, consideramos a preservação da camaradagem. É neste lugar que a observação é mais difícil, pois o não reconhecimento do assédio enquanto prática violenta leva a falta de registro. O não registro dificulta o conhecimento. A falta de conhecimento torna mais difícil a implementação de medidas adequadas ao combate. E mesmo que haja alguma relação trabalhista envolvida, não se espera que espaços em que se cultivem valores que buscam a emancipação humana cause qualquer tipo de violência a nenhum vivente.

O assédio interfere diretamente na potência militante de mulheres, restringe a atuação do corpo e do psicológico. A noção de solidariedade mútua que impulsiona a seguir em frente e em luta por qualquer que seja a causa é quebrada quando o corpo e o ser mulher não são respeitados em suas especificidades. Vamos em partes, mas jamais inteiras

No caso das mulheres negras, isso é ainda mais sensível, pois a raça é interseccionada, ou seja, interage e se sobrepõe a outros fatores sociais. A definição do papel da mulher negra é ainda mais abaixo da escala de valorização daquilo que é considerado digno na sociedade. Exemplifico com as mulheres negras que sofrem violência, às vezes de mulheres brancas, diante dos papéis ainda mais subalternizados que lhe foram historicamente conformados. Ou ainda o corpo sexualizado em insights provocados pela cultura escravocrata e as memórias de corpos antes estuprados por senhores e latifundiários.

O que estamos lidando diz sobre a necessária e constante desconstrução sobre o acesso aos corpos de mulheres como algo público. Também diz sobre mudanças culturais nas compreensões do ser mulher em sociedade nas dimensões do gênero, da raça e até mesmo da sexualidade. Obviamente assédio não é estupro. Mas violência, por mais “branda”, segue violência. E se o objetivo é superar relações de dominação, isso também serve para os espaços onde exercemos a política.

As relações de camaradagem dentro de uma organização política devem normalizar atitudes, atos e maneiras que espelhem aquilo que se busca como resultado de um projeto político. Um projeto político emancipador, por sua vez, requer homens e mulheres solidários, em relações de igualdade plena. Sustentar relações e organizações políticas com o silenciamento de violências, inclusive o assédio, significa sustentar estruturas ancoradas na suportabilidade dessas mesmas violências. Mas o “deixar para lá” tem consequência; apresenta-se no afastamento da militância de mulheres, na mudança de rumos, perspectivas políticas, no enfraquecimento de qualquer projeto político emancipador.

Combater o assédio, minhas caras e, também, meus caros, é uma tarefa que exige resistência e postura militante. É tarefa política coletiva. Uma organização política que busca emancipar verdadeiramente sujeitos não pode ser espaço de reiteração de violência, por menor que seja. Pois violência, quando normalizada, tem a potência destruidora de sonhos, de paixões, do que move pessoas em movimento.

A busca por espaços de confiança entre mulheres permite o que na maior parte das vezes se impõe como um desabafo. Por outro lado, é fundamental que se tenha a sensibilização da organização política para uma educação militante em que a igualdade de gênero seja uma constante construção; onde homens e mulheres compreendem e apreendem atitudes, atos e maneiras que precisam ser refletidas para serem percebidas e rechaçadas pelo simples fato de serem violências.

Quais mecanismos de ação para combater o assédio? Parece-me que a primeira tarefa é reconhecer que se trata de violência. Acolher com atenção e seriedade. Entender os efeitos dos mais variados assédios na ação política de mulheres a partir do registro. Afinal, é preciso conhecer para encontrar saídas e não permitir que mais mulheres se percam da luta porque falhamos em estabelecer espaços plenos para a atuação com confiança.

Talvez não seja sequer preciso reinventar a roda: mas sim promover cotidianamente o debate coletivo e público. Tirar o assédio dessa cortina que o acoberta e que manifesta insalubridades que não somam à luta política. Na verdade, só nos atrasa enquanto ser humano.

Notas
1. Agradeço os gentis comentários de Liu Durães (BA), Laryssa Sampaio (CE) e Lucineia Freitas (MT) para a formulação deste texto.
2. O uso repetitivo da palavra “violência” é intencional.

*Mayrá Lima é Cientista Política/ Setor de Comunicação do MST/ Brigada Adão Pretto

**Editado por Fernanda Alcântara