Impunidade

Mais um 20 de novembro e 20 anos sem justiça para Felisburgo

Em 20 de novembro de 2004, o massacre de Felisburgo (MG) resultou na morte de cinco trabalhadores rurais Sem Terra, após uma invasão de jagunços a mando de Adriano Chafik. Vinte anos depois, a terra onde o crime ocorreu ainda não foi destinada à Reforma Agrária.
Foto: Geanini Hackbardt

Por Flora Villela
Da Página do MST

No dia 20 de novembro de 2004, dois anos após a ocupação da fazenda Nova Alegria, no município de Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha mineiro, Adriano Chafik Luedy, seu primo Calixto Luedy e 15 jagunços invadiram o acampamento Terra Prometida. Assassinaram 5 trabalhadores rurais Sem Terra, feriram diversos outros e colocaram fogo em todas as estruturas do acampamento. Vinte anos após o crime conhecido como “massacre de Felisburgo”, a terra, banhada com o sangue desses trabalhadores, ainda não foi transferida formalmente para as famílias que resistem no território.

Apesar de toda a violência, o acampamento Terra Prometida se reergueu. Com muita luta dos trabalhadores, organizados no Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), foi possível a condenação dos envolvidos, hoje cumprindo penas que ultrapassam os 100 anos de prisão. O território, no entanto, ainda carece da desapropriação da terra e de sua destinação às famílias que nela vivem e produzem. Grande parte da fazenda foi comprovada como terra pública, e o restante ainda permanece em nome de Chafik, mandante e assassino condenado.

“Esse conflito é muito emblemático, assim como a resposta, com a condenação do fazendeiro Adriano Chafik, que é de suma importância. Porém, na medida em que os governos são omissos e não solucionam definitivamente esse conflito, transferindo essas terras formalmente para a reforma agrária, eles são coniventes com a violência e deixam margem para que outros massacres possam acontecer”, ressalta Silvio Netto, dirigente nacional do MST.

Para o movimento, a condenação do mandante e executor da chacina é uma grande vitória, mas não é suficiente para que seja feita justiça. “A justiça só se concretiza de fato com a resolução do conflito, e este só terá solução com a desapropriação da terra e o reconhecimento das famílias como assentadas”, reforça o dirigente.

Foto: Acervo MST

A ocupação

A ocupação do território improdutivo aconteceu em meados de maio de 2002. As 230 famílias que ocuparam a fazenda Nova Alegria denunciavam o não cumprimento da função social daquela terra e a existência ali de terras devolutas, públicas, griladas pelo fazendeiro Adriano Chafik. O grileiro então entrou com uma ação de reintegração de posse e fez diversas ameaças aos trabalhadores que ali passaram a viver e produzir.

Afonso Henrique de Miranda Teixeira, procurador de justiça do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e coordenador do Centro de Apoio Operacional de Conflitos Agrários, que acompanhou o caso desde então, relembra que uma equipe de Belo Horizonte foi designada para avaliar a situação do conflito, e que teve início uma ação discriminatória, a partir da denúncia do MST. “Essa ação tem um efeito legal imediato de suspensão de outras ações correlatas, então, com a ação discriminatória, houve a suspensão da ação possessória”, explica o procurador.

Ficou comprovado que, do total de 1700 hectares da fazenda, 515 eram, de fato, terras devolutas. Com isso, a alegação de Adriano de que as terras eram de sua propriedade e a reintegração de posse caíram por terra, o que enfureceu o grileiro. “A ação discriminatória foi o pavio para os atos criminosos que viriam a acontecer”, declara Afonso.

O massacre

Na madrugada do dia 20, o grupo fortemente armado, comandado pelo fazendeiro e recrutado por seu primo, o ex-policial Calixto Luedy, invadiu o acampamento e atraiu os moradores estourando foguetes, um sinal comum para reuniões no MST. A emboscada atraiu as famílias. Homens, mulheres, idosos e crianças contra os quais parte dos pistoleiros abriu fogo indiscriminadamente. O primeiro tiro foi dado por Chafik. O restante dos jagunços tratou de destruir e incendiar tudo o que a comunidade havia construído: lavouras, criações, casas e a escola.

O resultado foi a morte de 5 trabalhadores naquela noite, além de 12 feridos a bala e um sonho incendiado. “Entraram no acampamento Terra Prometida e mataram cinco trabalhadores rurais sem terra, ferindo diversas pessoas, inclusive crianças. Queimaram as casas, os barracos, a escola e promoveram o que foi até hoje a face mais violenta do latifúndio na história da luta pela terra em Minas Gerais”, ressalta Silvio Netto.

Foto: Frei Gilvander Moreira

O crime foi premeditado e teve a conivência de autoridades e fazendeiros locais. Para o procurador do Ministério Público de Minas Gerais, Afonso Teixeira, “20 de novembro de 2004 é um dia que não pode ser esquecido pelo Brasil, o dia da chacina de Felisburgo. Esse é o crime mais grave no âmbito rural do estado de Minas Gerais, e aconteceu após muitas sinalizações dos criminosos, que foram levadas ao conhecimento da polícia local pelos agricultores do MST”, ressalta.

Perderam a vida nesta noite: Joaquim José dos Santos (49), Miguel José dos Santos (56), Juvenal Jorge da Silva (65), Francisco Nascimento (72) e Iraguiar Ferreira da Silva (23), que deixou a esposa grávida. Ela também perdeu o pai no massacre.

O processo 

A partir do crime, tem início um longo e complexo processo, ao qual Teixeira acompanhou de perto. Ele relembra a oitiva de mais de 80 testemunhas e a compreensão da necessidade de transferência do julgamento para Belo Horizonte. “O Ministério Público ingressou com o pedido de desaforamento, para que os julgamentos fossem realizados fora de Jequitinhonha, porque ali não havia a menor possibilidade de haver um julgamento imparcial”, afirma o procurador.

Assim, o julgamento de 5 envolvidos aconteceu em Belo Horizonte. Adriano Chafik Luedy foi condenado, nove anos após o massacre, a 115 anos de prisão, mas o assassino ainda ficaria foragido até 2017, quando foi preso em Salvador-BA. Quanto a seu primo, foi o último a ser condenado, em 2019, a 195 anos de prisão, após anos foragido da polícia, tendo sido capturado em Sergipe.

Para Teixeira, o conflito apresenta uma série de contornos de especificidade que fazem com que seja um dos mais emblemáticos do país. “Digo que não há outra solução para a Fazenda Nova Alegria, senão que ela seja efetivamente destinada para esses trabalhadores rurais. Nós estamos falando aqui de lei, a partir do princípio da não remoção. Mas além deste princípio, está colocado aqui um valor fundamental da República Federativa do Brasil, a justiça, de maneira que não há outra saída justa para essa situação, senão que essas famílias permaneçam no local. Esse embate só pode terminar com a destinação da terra para as famílias, que pagaram por aquela terra com suas próprias vidas. Seu sangue correu lá, e foi muito sangue.”

A violência no campo

Para o MST, a chacina de tamanha violência se dá a partir de um contexto histórico de conflitos no campo, que são corresponsabilidade dos latifundiários e do Estado, à medida que o último falha em promover a justiça social no meio rural e a reforma agrária, direito garantido pela Constituição e negado por governos ao longo da história.

Silvio Netto afirma ainda que esse quadro obriga os trabalhadores rurais a se organizarem em protesto, exigindo esse direito em mais uma circunstância de vulnerabilidade para os pobres do campo, que têm de enfrentar cotidianamente a violência. “O massacre é uma circunstância de violência direta, mas ele é consequência de uma violência histórica promovida pela burguesia agrária, pelo latifúndio, que sempre usou da violência para atacar os trabalhadores que ousaram se organizar e contestar o predomínio do latifúndio e a exploração do povo do campo”, denuncia o dirigente do MST em Minas Gerais.

A teimosia dessa gente sem terra

Apesar de todo o sofrimento, o acampamento Terra Prometida segue em luta. As 62 famílias que ainda residem no território dividem sua produção em lavouras individuais (de cada família) e coletivas e consolidaram sua agroindústria, atuando fundamentalmente na cadeia produtiva do mel e da mandioca. “Essas 62 famílias têm o orgulho de ter se reerguido com muita coragem e organização e de ter hoje um território repleto de fartura de alimentos. Esse talvez seja um dos maiores legados da luta pela terra que o MST tenha, não só no estado de Minas Gerais, mas no Brasil”, reafirma o dirigente.

Para o movimento, mesmo diante da face mais violenta do Estado brasileiro e do latifúndio, a persistência é o caminho para a Reforma Agrária Popular. “O Terra Prometida é, para nós, a demonstração de que quem não desiste, quem teima, não abandona a terra e tem coragem de seguir a luta, é vitorioso. Nós, enquanto organização, aprendemos muito com as consequências do massacre de Felisburgo. Até onde chega o ódio do latifúndio contra os trabalhadores, mas também, que a coragem e a organização são capazes de superar a violência. Seguiremos em luta na promoção e na vitória da Reforma Agrária Popular”, complementa o dirigente.

Foto: Giuseppe Rindoni

Justiça para Felisburgo Já!
Completados 20 anos deste que é um dos maiores massacres da história do MST e da luta pela terra no Brasil, aquela terra pública, abandonada e banhada de sangue ainda não foi destinada para a reforma agrária, é o que denuncia o MST. “Nós provamos que os trabalhadores em luta pela terra não desistem e não vão desistir. Essa luta é sagrada, pelo amor que temos pela terra e pelo compromisso com a Reforma Agrária Popular. Aos nossos mortos, caídos em Felisburgo, temos hoje um dia de lembrança, mas também um dia de protesto e mais um dia de luta. Tombaram 5 Sem Terra, mas nós seguimos adiante!” conclui Silvio.

*Editado por Leonardo Correia.