Religiosidade
Entre o Kwanza e o Natal: Reflexões sobre Identidade, no final de 2024
Da Página do MST
As ruas, comunidades e as diversas vizinhanças ganham iluminação especial, o clima de “solidariedade” é evocado, em meio a toda alienação dos outros meses do ano. Nessa época, muitas famílias se reúnem em torno da tradição cristã que celebra o nascimento de Jesus, ou Massacre dos Inocentes, que renasce em meio ao povo.
No entanto, há uma resistência frente a hegemonia cultural cristã aqui no “Evangelistão”, há um Jesus do povo, preto e periférico, não podemos nos furtar disso. Precisamos entender que há outros sentidos de pertencimento e celebração que emergem em meio às chuvas que mudam a cara do cerrado e são sinal de vida nova, como o Kwanzaa. Essa festa valoriza a cultura, a história e as tradições africanas e afrodiásporicas, encontro dessas perspectivas levanta questões fundamentais sobre a identidade do povo brasileiro e a resistência no contexto de guerra cultural.
O Kwanzaa, celebrado de 26 de dezembro a 1º de janeiro, nasce nos Estados Unidos da América nos anos 1960, durante o movimento negro pelos direitos civis para trazer a reflexão da africanidade nas festas do final do ano. Criado por Maulana Karenga, a festividade busca reforçar laços culturais e comunitários entre pessoas negras, com princípios como unidade (umoja), autodeterminação (kujichagulia) e cooperação econômica (ujamaa). Embora seja mais comumente associado às comunidades afro-americanas, o Kwanzaa ressoa com as experiências da diáspora africana ao redor do mundo, incluindo o Brasil, o segundo maior país negro do mundo.
Por outro lado, o natal no Brasil, profundamente enraizado na herança colonial portuguesa, é um reflexo da imposição de valores brancos, cristãos e europeus. Essa tradição, em muitos casos, silenciou ou marginalizou celebrações e espiritualidades de origem africana, que foram estigmatizadas e perseguidas ao longo de toda história até os dias atuais. Apesar disso, comunidades negras brasileiras têm resistido e reimaginado suas próprias formas de celebrar, mesclando elementos culturais e espirituais em um ato constante de reinvenção identitária e resistência.
No final de 2024, essas reflexões se tornam ainda mais urgentes em um país que enfrenta os desafios em constante ascendência em relação ao racismo estrutural e sua reprodução na sociedade, não é novidade e segue urgente.
No campo político, os avanços na discussão sobre o reconhecimento e a valorização da cultura negra, que representa a maioria da população, convivem com retrocessos e resistências reacionárias. Setores que buscam homogeneizar a identidade nacional em torno de narrativas eurocêntricas e brancas, as mais fortes bancadas do parlamento, os BBB’s (boi, bala e bíblia) estão nesse bastião de conservadorismo e destruição,em nome dos interesses do capital, que precisa do racismo de apagamento para fortalecer sua reprodução.
Perguntar o que se comemora no final do ano é, então, mais do que uma questão sobre festas ou preferências pessoais. É um convite à reflexão, como construímos e negociamos nossas identidades em um país marcado por tensões raciais estruturais. Celebrar o Kwanzaa ou o Natal, ou até mesmo ambos, não precisam ser excludente; podem ser um caminho para dialogar com as múltiplas camadas que compõem a experiência negra no Brasil.
Que possamos construir um natal sem fome, como já apontaram diversas campanhas do MST na história. Que o mundo nos inspire a superar a hipocrisia do consumismo, frente a fonte que assola as pessoas. Não só de alimento, mas de humanidade.
Assim, o final de 2024 traz consigo a oportunidade de resignificar as celebrações de fim de ano como atos de resistência e reafirmação cultural do povo brasileiro em todas suas expressões. Ao contemplar tanto o Kwanzaa quanto/ou o Natal, reconheçamos o desafio reconhecer a riqueza de nossas heranças e a construir espaços onde diferentes tradições possam coexistir e se fortalecer mutuamente pelo bem de uma sociedade plural, como preconizado pela Constituição. Afinal, a identidade brasileira é feita dessas sobreposições, onde o passado e o presente se encontram para moldar o futuro.
*Editado por Fernanda Alcântara