Combate à Fome

Cozinhas Solidárias: exemplo de resistência frente ao fracasso do neoliberalismo

Cozinhas Solidárias amplia organização popular das comunidades brasileiras e movimentos sociais, além de permite o acesso a segurança alimentar e nutricional
Cozinha Solidária da Juventude do Barracão no RS. Foto: Isadora Klein

Por Lucas Gertz Monteiro*
Para Página do MST

“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”, Carolina Maria de Jesus.

Recentemente a extrema direita passou a atacar uma das construções mais importantes do último período na luta pelo combate à fome no Brasil, as Cozinhas Populares e Solidárias.

Embora haja experiências históricas de Cozinhas Comunitárias e Restaurantes Populares espalhadas pelo país, muitas vezes relacionadas ao poder público, é com a chegada das Cozinhas Solidárias que se amplia a organização popular das comunidades brasileiras e movimentos sociais, sendo uma ferramenta social fundamental e por vezes a única que permite o acesso a segurança alimentar e nutricional.

Foi durante a pandemia da covid-19 que se tomaram uma proporção generalizada de Norte a Sul do país, expandindo-se pelas comunidades através do trabalho coletivo e voluntário em parceria com movimentos sociais como MST, Levante Popular da Juventude, MTST, MPA, MAB e tantos outros que estiveram na linha de frente da solidariedade por todo país. Somente o Movimento Sem Terra doou cerca de 8 mil toneladas neste período, de alimentos saudáveis produzidos em assentamentos, acampamentos e cooperativas da Reforma Agrária que foram distribuídos para lideranças comunitárias, famílias e associações de moradores, processo este que fomentou a fundação de centenas de Cozinhas Solidárias.

Em maio de 2024 no Rio Grande do Sul, durante a maior tragédia socioambiental do estado, que devastou cidades inteiras e deixou milhares de famílias em situação de vulnerabilidade social, devido à negligência e a falta de investimento em prevenção de desastres ambientais do governo estadual neoliberal, sob a gestão de Eduardo Leite e de prefeituras negacionistas climáticas de extrema direita, como a de Sebastião Melo, em Porto Alegre. Na ocasião foram as Cozinhas Solidárias as primeiras a dar respostas emergenciais para a crise instaurada, oferecendo alimento para os atingidos pela enchente, trabalho que se estendeu e permanece até os dias atuais, totalizando milhares de marmitas produzidas. Tal fato não deve ser subestimado, visto que é um exemplo da potencialidade que a solidariedade oferece para a superação das mazelas que a extrema direita insiste em nos impor.

Segundo o programa Cozinha Solidária do Governo Federal, instituído em 2023 após muita pressão e luta das associações de moradores, cozinhas e demais movimentos sociais, existem mais de 2 mil Cozinhas Solidárias mapeadas e em pleno funcionamento pelo país. Acreditamos que existem inúmeras que ainda não foram mapeadas devido às condições em que se encontram, pois grande parte delas são promovidas na própria casa das voluntárias.

Cozinha Solidária da Vila Jardim no RS. Foto: Rafael Dotti

O papel que as Cozinhas Solidárias têm cumprido ultrapassa o ato da produção de alimentos, tornando-as espaços de compartilhamento e acolhimento entre voluntários e comunidade. É a partir da construção desses laços que muitas abrem caminhos para outras iniciativas como a geração de renda; educação através de turmas de alfabetização, cursinhos pré-vestibulares; atividades culturais. São processos sociais como este que possibilitam a promoção da dignidade e da autonomia humana, social e financeira. Além disso, aproxima trabalhadoras urbanas de trabalhadoras do campo (camponesas que produzem e ofertam produtos saudáveis a estas organizações).

Na contramão da solidariedade, deputados da extrema direita como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Ubiratan Sanderson (PL-RS) vêm construindo uma narrativa que criminaliza as Cozinhas Solidárias e desconsidera o trabalho que vem sendo realizado, especialmente conduzido por mulheres, negras, trabalhadoras, nas periferias dos grandes centros urbanos e em cidades do Interior no combate à fome e na garantia da segurança alimentar. Uma preocupação que deveria partir justamente destes que dizem “representar” o povo brasileiro.

Memória curta ou projeto político?

Vale lembrar que em 2021, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou que o Brasil havia retornado ao mapa da fome. Tal cenário foi resultado da falta ou corte de investimento em políticas públicas e sociais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), no governo Bolsonaro e intensificado pela pandemia da covid-19. Onde estava a preocupação da extrema direita? Ou melhor, aonde está atualmente? Pois nós que estamos na ponta, construindo e fortalecendo o movimento comunitário não os enxergamos.

Ao afirmar que as Cozinhas Solidárias têm produzido “marmitas invisíveis”, a extrema direita só expõe seu desinteresse e desprezo com as comunidades e famílias brasileiras que acessam as cozinhas, independente da etnia, ideologia política, religião, cor, gênero e sexualidade, e daquelas que se auto-organizam para dedicar seu tempo e sua vida para ajudar aquelas se encontram em condições de vulnerabilidade, além de construir novas formas de viver em comunidade. O que temos visto é uma ofensiva ideológica cada vez mais conservadora e violenta que se agrava o âmbito político, social, econômico e ambiental. Da extrema direita nada de bom esperamos, mas fica o recado: as Cozinhas Solidárias seguirão firmes, cada vez mais organizadas e atuantes onde o povo brasileiro mais precisar.

Por fim, cabe ao Governo Federal e ao presidente Lula fortalecer e investir ainda mais em políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional como o PAA e suas modalidades; o programa Cozinha Solidária; e com urgência melhorar estas cozinhas equipando-as, qualificando o serviço realizado e construindo a possibilidade de ajuda de custo para as voluntárias, podendo ser um acréscimo de valor no programa Bolsa Família para aquelas/es voluntárias/os que dedicam seu tempo nas cozinhas. Sobretudo, é necessário defender o legado de solidariedade e compromisso com o povo que as Cozinhas Solidárias têm construído nos últimos anos.

“O povo tem a força, só precisa descobrir

Se eles lá não fazem nada, nós faremos por aqui”, Cidinho & Doca (Rap da Felicidade)

*Militante do Levante Popular da Juventude e do projeto Mãos Solidárias do MST.

**Editado por Solange Engelmann