Aromas de Março

A poesia pulsante na luta das Mulheres Sem Terra!

Escrevivências poéticas que ecoam a força, a rebeldia e a ternura das mulheres em marcha contra o capital e pela vida

Arte da Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra em 2025. Imagem: MST

Por Luana Oliveira
Da Página do MST

Teríamos muito a dizer sobre o que foi a Jornada de Luta das Mulheres Sem Terra, em 2025. Dos números, mais de 12 mil mulheres mobilizadas; dos alvos, empresas que com seus negócios destroem o meio ambiente em busca do lucro; das denúncias e do anúncio: agronegócio é violência e crime ambiental, a luta das mulheres é contra o capital!

Entretanto, escolhemos deixar à leitora, ao leitor – mais do que informações do que foram as lutas – uma narrativa de dentro, do front, do sentimento que pulsa na madrugada das mulheres camponesas.

O que você encontrará nas próximas linhas? A coragem das Mulheres no romper das cercas das propriedades privadas, no colorir dos muros, no marchar em busca dos seus direitos. Mas, antes de tudo, a coragem das mulheres que ousam se expressar, poetizar, elas mesmas escreverem sua história.

Os versos do front vêm de mulheres de vários cantos do país. É a apuração dos sentidos no momento da luta direta, no sentir coletivo: É o arrepio que dá na pele ao ouvir o grito de ordem e a resposta em multidão, ocupando o silêncio da noite. É o tremular das bandeiras rompendo a neblina da madrugada, desvelando o céu. É o afeto que verte nos abraços e sorrisos de quem subverteu a rotina e encontrou a si mesma na busca do novo tempo.

Das rebeldes terras amazônicas conheceremos o Alvorecer das mulheres Sem Terra, que canta a fúria e a beleza de quem se levanta para reivindicar o tempo e os sentidos humanos. Versos que também ecoam em coro, em que a juventude amazônica reafirma que não estamos sozinhas, somos Sementes de resistência na construção de um mundo novo.

Do seio da contradição do agro-minério-negócio, as palavras de uma jovem da região sudeste nos carrega para uma ocupação de terra, mostrando Daquilo que as mulheres sabem, a precisão da organização de cada momento da luta e a utopia de quem arranca do horizonte o futuro, fazendo-o tangível à palma das mãos.

Das combativas raízes nordestinas, os Aromas de março e as chitas de todas as cores versam sobre o nosso jeito de lutar, o clamor de quem educa gerações ao se colocar em movimento em defesa do povo e de sua justa causa.

Da resistência do sul do país, uma carta dedicada às Mulheres de Luta, às que partiram, reconhecendo seu legado, que semeou o caminho das que ficaram, e às que assumem a tarefa de seguir cultivando o projeto de uma nova sociedade.

Com seus olhares e vivências, a história que elas fazem, dia a dia e, coletivamente, em cada novo março, é cheia de poesia. Poesia com letra maiúscula, que entra pelos poros e fica. Uma poesia que é viva, pulsante, em Movimento, que expressa e, ao mesmo tempo, constitui o que é ser Sem Terra.

Te convidamos a adentrar esse mundo das Escrevivências Sem Terra do front, sentir o fervilhar destes versos, reconhecer o que já disse o poeta: poesia é flor, mas pode ser pedra. O convite é para se permitir emocionar-se com a poesia presente e fruto da luta das Mulheres.

Alvorecer

(Diva Lopes, março de 2025)

Diva Lopes. Foto: Reprodução

 É março e todos os sentidos se

aguçam.

Arrepia!

O gosto da chuva

A visão do fogo

O cheiro de ervas

O sentir as mãos.

As cores de março dão feição ao belo.

Cabelo, pele, sexo, corpo, coragem.

É não retroceder frente à opressão.

Exigir terra, trabalho, pão e poesia.

Bailar, sorrir, gozar.

Defender a felicidade como um direito para nós e para as que virão.

O alvorecer é de fúria.

É erguer-se diante da dor,

sacudir a sujeira,

dispensar o lamento,

se livrar do fedor…

É disputar o ócio e devolver o veneno aos donos do negócio.

Sou fruto do amor incondicional de um lugar chamado família e comunidade, das terras áridas maranhenses, perto das palmeiras e do rio e bem longe do mar. Sou Maria Divina Lopes, mulher, negra, femisnita, LGBTQIA +, educadora popular, militante do MST. Escrever pra mim é uma forma de respirar. 

Sementes de Resistência

(Kauane Medeiros, Letícia Feitosa e Júlia Fernanda)

Da esquerda para a direira, Julia Fernanda, Kauane Medeiros e Letícia Feitosa. Fotos: Reprodução

Em terras arrasadas pelo agronegócio, onde a vida é reduzida a mercadoria, nós, mulheres, nos levantamos. Com sementes de resistência nas mãos, nós cultivamos a luta, contra o capital que devora, contra a violência que oprime.

Nossas vozes ecoam pelas veredas, denunciando o crime ambiental, que destrói nossas comunidades, e sufoca a vida na terra.

Mas não estamos sozinhas, nós somos a semente da mudança, que brota em cada canto, e floresce em cada luta.

Vamos juntas, mulheres guerreiras, construir um mundo novo, onde a terra seja respeitada, e a vida seja valorizada.

Não ao agronegócio, não à violência, não ao capital.

Sim à vida, sim à terra, sim às mulheres.

Julia Fernanda, 22 anos, da direção estadual da Juventude. Kauani de Medeiros, 18  anos, do Coletivo de Juventude. Leticia Feitosa, 21 anos, do Setor de Saúde. Somos militantes do MST do estado do Maranhão, da Brigada Oziel Alves da região Amazônica, atuamos em diferentes trincheiras e carregamos a poesia e a literatura como uma ferramenta de luta. 

Daquilo que as mulheres sabem

(Renata Menezes, aos cuidados da Frente Palavras Rebeldes)

Renata Menezes. Foto: Reprodução

“É a véspera da lua cheia

É a preparação dos lenços de chita

É o estudo dos nossos inimigos

É o dia antes da queda do monocultivo”

(Nossos inimigos dizem – Bertold Brecht, adaptado para a Ocupação das Mulheres Sem Terra nas terras da Suzano/ES em 13 de março de 2025).

“A gente precisa encorajar as nossas mulheres!”

Costumeiramente em roda, todas elas brilhavam os olhos. Estava faltando alguém chegar com aquela oração, a mística ainda não dita, que agita os corações ternamente, e desperta a astúcia e a emoção por algo que algumas ainda nem tinham vivenciado, ainda. Sob a mesma lua, outras mulheres em outro canto liam a expressão: “velhas perigosas!”. Marielle Franco, a lua cheia que se aproximava e a mulherada rebelde pareciam se alinhar cosmicamente, nos mistérios que só o mês de março carrega.

Velhas de idade ou de sabedoria, jovens em espírito e entrega, todas elas, sob a mesma lua, lenço de chita e uma madrugada que acolhia; desciam de seus ônibus para dar colorido à imensidão do deserto verde e estéril, na dialética da ação de cortar o eucalipto para renascer a vida. “É lindo né, ver como as mulheres encheram de cor e vida aqui?”

Não havia um pássaro nas árvores, apenas cobras e escorpiões amarelos com quem se convivia no terreno hostil. Com a entrada daquelas mulheres, o verde monótono se preenchia de canto, tambores e enxadas, amplificando as vozes e sons em contraste ao silenciamento causado pelo monocultivo.

Quem sabe os rios e nascentes roubados e represados pela transnacional se revoltariam, retornariam aos seus percursos, depois de ouvirem que há vida que luta por pulsar novamente? Quem sabe as matas, derrubadas pela ganância, rebrotassem violentamente contra as árvores do monocultivo, para dizer que eucalipto sozinho não faz floresta e as demais plantas, em sua diversidade, ainda estão ali? Quem sabe os animais, atentos pelas clareiras abertas, em conspiração com o sol e os bichos venenosos que resistiam ali, resolvesse retomar o que é deles? Os ventos sopravam um segredo fresco e antigo: é preciso conspiração e cultivo para a semente brotar. É preciso continuar a luta para libertar a terra, os povos e a natureza.

Do outro lado do mundo, mulheres de África, na luta contra o monocultivo de dendezeiro dizem: bravo! A solidariedade internacional é sempre mística, mas ouvir as mulheres do continente-mãe, é como um afago carinhoso e fraterno em nossos próprios cabelos, carregados de emoção pela herança ancestral que corre em nossas veias, em nossa cor, e isso faz com que a terra acolha as lágrimas sinceras pelo reconhecimento.

Se o que comemos forma o que somos, então aquelas mulheres eram feitas da simplicidade mais complexa do sabor, do arroz com feijão e mandioca mais gostosos, do tempero marcante, exclusivo de quem tem coragem. E assim seguia toda a organização: do barraco de lona mais bem feito, das práticas de saúde mais acolhedoras, do estudo mais bem preparado, da divisão de tarefas mais precisamente distribuída, tudo cuidadosamente planejado. A ocupação tinha rosto e mãos de mulher, de todas as mulheres.

Nesta ocupação de mulheres, onde cada uma vai se reconhecendo na luta da outra em diferentes lugares, em vários países, se alimenta a chama da rebeldia, a indignação visceral contra a violência e os crimes do capital sobre a vida, a humanidade e a natureza. A teimosia da semente que busca pela superfície para seguir nascendo é a expressão dessa resistência própria, singular: mesmo na aridez do deserto e da destruição, a luta segue brotando e florescendo com fúria e ternura.

Sou Renata Menezes, militante do MST e cria da Ciranda Infantil. Gosto das coisas simples, de pessoas, suas histórias e a possibilidade de contá-las. Ansiava pelas histórias contadas por meu pai e os livros trazidos por minha mãe, que me incentivaram muito na leitura e na literatura. Por isso, me encantei com a palavra em O menino que lia o mundo, e senti o peso da luta pelo que é justo nos dilemas de Antígona. Escrevo entre encontros e estradas.

Sobre os aromas de março e as chitas de todas as cores

(Rosa Negra- 12 de março de 2025)

Rosa Negra. Foto: MST

Os aromas de março e as chitas de todas as cores 

Vem, mais uma vez, reafirmar 

Que não vamos mais guardar tantas dores

Que nos impedem de ter uma vida verdadeira. 

Os aromas de março e as chitas de todas as cores

Trazem uma boniteza que nos explicita

Que não vão nos impedir de sonhar, 

Mostram o quanto é indescritível o nosso jeito de lutar.

É indescritível a fúria de quem busca justiça ambiental. 

Há potência e firmeza quando nos colocamos em defesa da mãe-natureza

É indescritível o olhar das mulheres quando empunham as suas bandeiras.

Sim, é indescritível a nossa fúria

E a indignação que nos faz bem

E se guia pela justa causa do povo

Não há meio termo para a fúria de quem luta pelo bem!

Os aromas de março reafirmam que não poderão nos pedir paciência

Nos dizem que não recuaremos um centímetro da nossa decisão de lutar. 

Os aromas de março dizem da urgência de construir Reforma Agrária Popular

Sou Rosa Negra, feminista, militante do MST, mãe, historiadora, geógrafa e poeta. A minha relação com a literatura acontece em função das vivências nas lutas camponesas no Brasil e também no enfrentamento ao racismo e ao patriarcado. A minha relação com a literatura tem a ver com essa forma como me movo no mundo.

Mulheres de Luta

(Rosmeri Witcel, com aromas de março de 2025)

Rosmeri Witcel. Foto: MST

Nas veias das Mulheres de Luta correm as memórias e as histórias das que nos antecederam. Em nossas gargantas, ecoam suas vozes. Nossos silêncios guardam suas noites mal dormidas e os sussurros que murmuram seus nomes.

Nas veias dessas Mulheres de Luta pulsam sonhos que não se calam. Seus punhos cerrados tecem a aurora que rompe muralhas. Em seus olhares surgem estrelas que dão luzes e incendeiam a calmaria das ruas.

Elas costuram suas próprias trilhas, fazendo versos clandestinos e desafiando o dito “destino”. Assim são elas, Mulheres de Luta, feito fogo que não há vento que apague, feito semente que brota, feito poesia que habita um mundo que se inventa e se cria no dia a dia.

Essas Mulheres de Luta são como raízes que dão sustentação à toda floresta. Elas fazem de suas cicatrizes, as bandeiras que enfrentam a tirania. Essas mulheres seguem em passos firmes que retumbam os nomes das que não estão mais aqui.

Por elas, por nós, por todas nós, elas entoam o cântico que nasce de sua obra, externando o futuro.

Elas são como os rios: não há cercas que as impeçam de seguir adiante; quando se juntam, não há margens que as comprima. Com mãos unidas e punho forte, as Mulheres de Luta ousam sonhar e ousam iluminar a escuridão.  Elas se transformam juntas em uma grande avalanche de justiça e flores de rebeldia. Elas são um chamado à memória e ao futuro.

Essas Mulheres de Luta, as mulheres do MST, são alegres. Elas brilham e brotam como sementes. Elas lançam seu olhar longe para mirar o que de perto não se vê, elas cantam, fazem poesias, marcham, ocupam, cortam as cercas, fazem o roçado, e ganham fôlego pra seguir mais um tanto. Do suor da luta, elas regam a terra fértil. De seus sonhos e de sua labuta, advém a colheita de um projeto de uma nova sociedade.

Viva o oito de março de luta das Mulheres Sem Terra!

Sou Rosmeri Witcel militante Sem Terra. Na vida acadêmica, graduada em história, mestrado em geografia (TerritoriAL), especialista em psicanálise e psicanalista em formação. Não sou escritora nem poetisa, mas na luta de classes fui aprendendo que as palavras e a escrita são um bem comum de todas/os. O que busco plantar com as palavras, são nossos sonhos e esperançares. É na escrita da luta coletiva (escriluta) que busco registrar as belezas dela, e ir pingando mínimas sementes de paixões e emoções. E talvez possibilidades.

Agronegócio é violência e crime ambiental. A luta das mulheres é contra o capital!

*Da Frente Palavras Rebeldes, frente de literatura do MST.

**Edição: Erica Vanzin