Imitação

‘Árvores fake’ são a nova invenção antiecológica do governo do Pará para receber a COP30

A cidade que sediará o evento do clima da ONU em novembro construiu novas avenidas que aumentaram o desmatamento e violaram direitos da população. Para ‘melhorar’ a arborização, usou árvores de metal

Estruturas de vergalhão que simulam árvores estão sendo instaladas em parques lineares preparados para a COP30 em Belém. Foto: Marcio Nagano/SUMAÚMA

Por Guilherme Guerreiro Neto/Reportagem e texto*
Do Portal Sumaúma

Árvores coloridas despontam no primeiro trecho do novo Parque Linear da Doca, construído em Belém como uma das melhorias planejadas para a COP30. Mais de perto, é possível entender por que elas são tão diferentes das que geralmente brotam do chão. Seus caules, na verdade, são vergalhões de ferro, sobra de material usado em obras da cidade. E estão cobertos por trepadeiras, que serpenteiam até chegar a uma copa formada por vasos de plantas. São árvores fake, ou seja, árvores que imitam árvores, criadas em uma cidade pouco arborizada e que desmatou ainda mais para abrir espaço para receber o evento de clima da ONU.

Apelidadas de ecoárvores pelo governo do Pará, as árvores fake são a nova polêmica antiambiental que envolve a chegada da COP30 a Belém. O governo tem, desde o ano passado, derrubado áreas de Floresta para fazer obras que abrem espaço para a circulação de carros na capital do estado e violam direitos de populações tradicionais na região metropolitana. Depois das críticas, a gestão de Helder Barbalho (MDB) precisou trocar o nome de suas árvores fictícias para jardins suspensos, já que o eco que ressoa, de fato, é mesmo o da falta de árvores reais.

A cidade que sediará a COP30 em novembro foi a quinta capital brasileira que mais perdeu vegetação urbana entre 2003 e 2023, com mais de 500 hectares, de acordo com o MapBiomas. “Para áreas urbanas, isso é muito”, avalia o professor André Farias, do Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (Numa/UFPA). “É dramática a situação de arborização e proteção das áreas verdes em Belém e na região metropolitana. Seja por falta de políticas públicas efetivas, seja pela pressão de grandes empreendimentos, que trazem junto uma especulação imobiliária das áreas.”

Quase 35 hectares de vegetação foram derrubados para a construção da Rua da Marinha, uma das obras de mobilidade para a COP. Foto: Márcio Nagano/SUMAÚMA

Entre as obras recentes, algumas delas para atender ao fluxo de pessoas do evento da ONU, o governo está abrindo na região metropolitana da capital duas novas vias: a Avenida Liberdade e a Rua da Marinha. Para viabilizar a primeira, propôs a derrubada de  68 hectares de uma área onde antes havia Floresta. Na segunda, quase 35 hectares de árvores foram ao chão.

A falta de árvores é sentida no cotidiano de Belém. No ano passado, em novembro, mesmo mês em que acontecerá a COP30, a média da temperatura máxima foi de 35,9 graus Celsius, com pico de 37,9, o maior registrado em 102 anos, desde o início da série histórica de dados.

Ana Modesto, de 41 anos, convive diariamente com os efeitos da falta de verde na cidade. Ela pula da cama antes das 2 horas da manhã para preparar salgados, bolos e abastecer sua bike-lanches para as vendas do dia. Logo que amanhece, chega à entrada do Terminal Hidroviário do Porto de Belém. Às  14 horas do último dia 26, Ana usava uma balaclava para cobrir a cabeça e o pescoço, deixando apenas olhos, nariz e boca de fora. “É por causa do calor. Sem isso aqui, eu não consigo nem ficar parada.”

Da calçada onde Ana tira o sustento, dá para ver o espaço em obras onde foram instaladas as primeiras árvores fake da cidade. O governo do Pará pretende fincar 80 árvores do tipo no Parque Linear da Doca, que recebe aporte financeiro de Itaipu Binacional, e mais 100 no Parque Linear da Tamandaré, financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Doca e Tamandaré eram dois corpos de água que a urbanização sufocante cimentou, transformou em canais e despejou esgoto. Agora, na preparação da cidade para a COP30, vão virar parques, e a solução paisagística celebrada pelo poder público foi pendurar plantas em estruturas de metal nesses locais. “Não precisava ter um troço desse aí artificial. Poderia ser plantado”, opina Ana.

O governo do Pará afirma que plantará árvores reais nos locais também. Mas considera as árvores artificiais ecológicas porque os vergalhões foram reaproveitados. A arquiteta responsável pelo projeto, Naira Carvalho, da Secretaria de Obras Públicas do Pará, diz que a inspiração veio das superárvores de Singapura – que, diferentemente da versão paraense, atuam como exaustoras de ar, coletoras de energia solar e de água da chuva – e alega que a ecoárvore traz os benefícios de uma árvore natural. Mas o professor André Farias discorda. “Não é porque está fazendo reaproveitamento de material que é efetivamente ecológica. Quais são os serviços ecológicos de uma árvore?

As árvores fake do governo do Pará são inspiradas nas ‘supertrees’ de Singapura, mas não têm os atributos ecológicos. Foto: Shiny Things/Wikimedia Commons

Existem vários: a sombra, o fruto, a irrigação, o filtro de ar. Não se pode dizer que é ecológica quando uma árvore anula vários desses elementos e só faz sombra.”

Piora da mudança climática

Além de derrubarem árvores, o prolongamento e a duplicação da Rua da Marinha, com extensão de 3,5 quilômetros e financiamento do BNDES, segundo o governo, também causaram danos ambientais ao Parque Ecológico do Município de Belém Gunnar Vingren, segundo o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). Em setembro de 2024, o órgão entrou na Justiça com uma ação civil pública em que pedia a suspensão imediata das obras por falta de licenciamento ambiental municipal, estudo de impacto ambiental e consulta pública. O município de Belém e a Associação dos Moradores do Conjunto Médici, que fica próximo à via, se manifestaram no processo contra a expansão. A obra foi suspensa pelo juiz Raimundo Santana em liminar de 5 de novembro, sob pena de multa diária de 100 mil reais. Oito dias depois, diante da alegação da Procuradoria-Geral do Estado de que a paralisação causaria impacto na realização da COP e no financiamento do BNDES, o desembargador Roberto de Moura, sem analisar o mérito da ação, suspendeu a liminar. O Governo do Estado afirma que houve licenciamento e acompanha os impactos ambientais da área. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o BNDES nega que já tenha liberado o empréstimo.

Já a Avenida Liberdade é uma via intermunicipal de 13,3 quilômetros que vai de Belém a Alça Viária, em Marituba, passando ainda pelo município de Ananindeua. No caminho, a estrada atravessa a Área de Proteção Ambiental da Região Metropolitana (APA Belém) e o Refúgio de Vida Silvestre (Revis Metrópole da Amazônia). Também passa perto do Parque Estadual do Utinga, unidade de conservação estadual onde ficam os lagos Água Preta e Bolonha, que abastecem Belém. Segundo André Farias, da UFPA, o Parque do Utinga, que antes vinha mantendo sua área de Floresta preservada, está ameaçado. “Agora, com a Avenida Liberdade, o parque pode sofrer um processo de degradação ambiental, colocando em risco, além da fauna e da flora, os recursos hídricos.” O Relatório de Impacto Ambiental da Avenida Liberdade identificou três espécies vegetais ameaçadas de extinção na área de influência do projeto: a Ucuuba, a Seringa e o Acapú. Quatro espécies de aves presentes na área estão vulneráveis ou quase ameaçadas de extinção: o Tucano-de-papo-branco, o Tucano-de-bico-preto, a Choca-preta-e-cinza e a Maracanã. O governo do Pará, no entanto,  afirma que a avenida está sendo construída em uma área já habitada, “em que o traçado acompanha um linhão de energia, seguindo a faixa onde a vegetação foi anteriormente suprimida”. Também disse que a obra já estava prevista antes da COP e que “todas as ações de mitigação dos impactos nos corpos d’água e nas áreas direta e indiretamente afetadas estão previstas no Plano de Controle Ambiental”.

A avenida Liberdade rasga, ainda, as proximidades do Quilombo Abacatal, em Ananindeua, que resiste há mais de 300 anos, apesar da pressão de lixões, linhões e outras formas de sufocamento do território causadas pelo mundo urbano. Arthur Cardoso, coordenador da juventude do quilombo, conta que o governo não respeitou a consulta nem as compensações prometidas à comunidade. O governo nega. “Eles vieram, desmataram tudo ao redor. Muitas pessoas da comunidade vivem do extrativismo, vivem da pesca, vivem da caça. Com o desmatamento ao redor da comunidade, isso acaba.”

Arthur, que tem 17 anos, virou universitário de relações internacionais em janeiro. No ano em que Belém recebe negociadores de todo o planeta para a Conferência da ONU sobre Mudança do Clima. No ano em que seu quilombo enfrenta mais um fim de mundo. A luta do jovem Quilombola continua, como a de seus ancestrais, para que o território não desapareça. O legado de obras como a da Avenida Liberdade para Arthur e toda a gente da região metropolitana de Belém, de acordo com o professor da UFPA, tende a ser o agravamento dos processos locais de mudança climática. “Quando você soma o aumento de áreas impermeabilizadas, a tendência vai ser aumentar as ilhas de calor, a tendência vai ser aumentar os alagamentos.”

Em nota, o governo do Pará diz que a obra impactará positivamente a qualidade de vida de cerca de 2 milhões de pessoas. “A redução do tempo médio de deslocamento no trânsito representa qualidade de vida, além de resultar na redução de 17,7 mil toneladas de CO2 por ano, contribuindo para a diminuição da emissão de combustíveis fósseis provenientes de veículos”. E garante que está “implementando diversas soluções estratégicas para assegurar a sustentabilidade da via, incluindo a construção de ciclovias, a utilização de energia solar para sua iluminação e a implantação de 34 passagens de vida silvestre ao longo do percurso para permitir o livre tráfego da fauna local”.

Mais obras, menos verde

O que ainda garante respiro à Floresta em Belém são algumas de suas ilhas. Na área continental da cidade, a vegetação urbana sofre para seguir viva. A derrubada de árvores dos canteiros centrais da Avenida Rômulo Maiorana, antiga Avenida 25 de Setembro, é outra que tem preocupado pessoas que vivem no entorno. Desde 2022, integrantes do Coletivo Canteiros Verdes, Cidade Viva participam de reuniões com a prefeitura de Belém sobre o projeto de reurbanização da via. Após questionamentos do coletivo, a administração municipal informou aos moradores que 80% da arborização seria mantida e que, para cada árvore que precisasse ser retirada, seriam plantadas três no lugar.

A empresa responsável pela obra e a prefeitura não dão explicações a quem vive ali sobre a previsão do replantio de árvores em substituição às que foram arrancadas. Enquanto faltam árvores, sobra angústia climática. “Meu sentimento é de angústia diante da possibilidade de a gestão pública não fazer um replantio adequado que reforce essa via como um corredor verde. Não conseguem enxergar nem a carga simbólica em pleno ano de COP30 em Belém? Isso, certamente, seria um marketing político muito melhor do que esse recurso enganoso que recebeu o nome de ecoárvore”, afirma a moradora Angela Gemaque, que faz parte do coletivo.

Desde janeiro, o prefeito de Belém é Igor Normando, primo de segundo grau do governador do Pará, Helder Barbalho, ambos do MDB. SUMAÚMA questionou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma) sobre o cumprimento do que fora acordado pela administração anterior, de Edmilson Rodrigues, do PSOL, e pediu um detalhamento do número de árvores derrubadas e do número de árvores plantadas na Avenida 25 de Setembro, como ainda é chamada na cidade. A Semma respondeu que realizou vistoria no local, constatou que de fato houve retirada excessiva de vegetação e está tomando providências para garantir o cumprimento das condicionantes.

Pesquisadores da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), em um acordo de cooperação com a Semma, que segue até 2028, fazem, desde 2022, um levantamento florístico dos bairros de Belém. As árvores são identificadas por espécie, passam por avaliação de saúde e de risco de queda. Os problemas da urbanização que as afetam também são avaliados. Os pesquisadores fazem ainda um mapeamento por GPS dos indivíduos, que é como eles chamam as árvores. Esse mapa é repassado à Secretaria Municipal. O trabalho já inventariou a arborização de quatro bairros de Belém.

“No levantamento, a gente vê que Belém realmente necessita muito ainda de arborização. Muitas árvores têm que ser plantadas para que a gente comece a ter um melhor conforto térmico. Se isso não for feito de imediato, a gente vai ter consequências muito graves de temperatura”, afirma o professor Cândido Ferreira Neto, que coordena o levantamento e o grupo Estudos da Biodiversidade em Plantas Superiores.

Na obra da Avenida Rômulo Maiorana, os moradores denunciam e a prefeitura reconhece que houve corte excessivo de árvores. Foto: Márcio Nagano/SUMAÚMA

A queda das Mangueiras

Conhecida como Cidade das Mangueiras, por conta das frondosas espécies frutíferas que desde o século 19 passaram a ser plantadas em vias centrais da cidade, formando túneis arborizados, Belém tem perdido muitas de suas árvores-símbolo, adoecidas pelo domínio do concreto e do asfalto. “As raízes dessas plantas vieram sofrendo ataques. Foram retiradas muitas raízes para fazer pavimentação, o que está causando um encharcamento do solo. Elas estão apodrecendo e não estão se expandindo, não estão segurando”, explica Cândido Ferreira Neto. O pesquisador da Universidade Federal Rural da Amazônia considera importante diversificar espécies, plantando em cada bairro árvores adequadas àquela área.

A trágica ironia das árvores fake, captada pelo professor André Farias, da UFPA, é a solução artificial ser pensada como alternativa em uma cidade que precisa, e muito, de árvores reais. “Enquanto, de um lado, se perde arborização, áreas verdes pelas obras, de outro, se apresenta uma árvore daquela, que praticamente não tem função ecológica.” Em nota pública, a coalização COP do Povo, formada por organizações de base, considerou que as árvores fake revelam uma desconexão com a Amazônia e uma afronta aos marcos globais de ação climática.

SUMAÚMA perguntou ao Programa Cidades Verdes Resilientes, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), como avalia a utilização desse tipo de árvore. O MMA afirmou que plantas trepadeiras devem ser associadas preferencialmente a estruturas já existentes, que têm de ser utilizadas como intervenção complementar a outras ações para ampliar a vegetação urbana, e que árvores nativas geram mais benefícios que outras formas de vida vegetais, contribuindo com a redução da temperatura e a promoção da biodiversidade.

Em resposta enviada a SUMAÚMA, a Secretaria de Obras Públicas do Pará alterou o nome dado às estruturas: em vez de ecoárvores, passou a chamá-las de jardins suspensos. O órgão alega que a solução foi pensada para criar espaços de sombra porque a Doca não teria solo natural disponível, por ter sido urbanizada desde a década de 1970 como canal retificado, com calçadas de concreto, ruas de asfalto e pequenos espaços de canteiros. Informa ainda que a rede de drenagem no subsolo que corta a Doca não deixa profundidade de solo disponível. A Secretaria diz que a Nova Doca tem espaços para receber o plantio de 180 árvores naturais, algumas já plantadas. A nota não cita o Parque Linear da Tamandaré.

No Porto Tamandaré, Ida Martins, de 61 anos, tenta se preparar para o dia que tiver que deixar para trás sua casa e seu restaurante. A área Ribeirinha em que ela vive está perdendo espaço para o parque linear que está chegando. “Estivador, carpinteiro, calafeteiro, pintor. Tudo tem aí nessa beira, há anos que trabalham aí. Pra onde que vai esse pessoal?” Talvez dali, da várzea amazônica, pudessem vir as ideias para nos proteger das mudanças climáticas e deixar a capital da COP30 respirar.

Belém está perdendo as poucas áreas verdes para que em seu lugar passem asfalto, carros e as obras da COP30. Foto: Márcio Nagano/SUMAÚMA

*Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
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