Alta dos alimentos

Reforma Agrária: caminho necessário para minimizar a inflação dos alimentos no Brasil

A alta dos preços dos alimentos está diretamente relacionada à reconfiguração do uso da terra.

Por Naiara Andreoli Bittencourt e Sílvio Isoppo Porto

Da Página do MST


Áreas antes utilizadas para produção de alimentos foram convertidas à lógica das commodities. Foto: Hannah Letícia / MST MA

O persistente aumento dos preços dos alimentos no Brasil exige uma análise que transcenda os fatores conjunturais e se aprofunde nas estruturas econômicas e agrárias que moldam o sistema alimentar nacional. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de março de 2025 foi de 0,56%, acumulando 5,48% em 12 meses.

Os alimentos e bebidas continuam sendo um dos principais vetores da inflação, com destaque para a elevação dos preços de ovos, café e carnes, o que compromete sensivelmente o poder de compra da população, especialmente da classe trabalhadora, cujos gastos com itens básicos consomem proporcionalmente uma parte maior da renda do que nas classes altas.

É evidente que a inflação alimentar no Brasil não é um fenômeno isolado, ela se manifesta há 18 anos no país, como indica José Baccarin. A inflação está diretamente relacionada à reconfiguração do uso da terra, ao modelo agroexportador hegemônico e à ausência de mecanismos mais robustos de regulação pública do abastecimento alimentar. Nas últimas duas décadas, o país vivenciou uma expansão acelerada da fronteira agrícola voltada para commodities.

Com safra recorde em 2025, área de plantio de soja aumentou quase 400% ao longo de 40 anos. Foto: Silvio Avila/AFP

Em 40 anos, a área plantada com soja aumentou 378,5%. Somente nos últimos 20 anos, a área plantada do grão mais que dobrou: de 17 milhões de hectares em 2003 para mais de 45 milhões em 2023, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Em contrapartida, as áreas destinadas a cultivos essenciais para o consumo interno — como arroz, feijão e hortigranjeiros — foram reduzidas de forma significativa. Em 2022 a área cultivada de feijão foi a menor desde 1976, com 890 mil hectares. A retomada da ampliação do cultivo recomeçou em 2024.

Esse deslocamento produtivo foi acompanhado pelo aumento da especulação, da concentração e do arrendamento de terras da agricultura familiar, especialmente no Sul e Sudeste, antes utilizadas para abastecimento alimentar, convertidas paulatinamente à lógica das commodities, cuja precificação se dá nos mercados internacionais.

O mercado interno tornou-se secundário frente à dinâmica das exportações. Isto é, o preço definido internacionalmente e pactuado em contratos futuros torna-se mais atrativo ao agronegócio do que a comercialização em território nacional.

A ausência de regulação estatal no comércio externo de alimentos contribui para essa vulnerabilidade. A Lei Kandir (Lei Complementar nº 87), em vigor desde 1996, isenta de ICMS as exportações de produtos primários, desonerando as commodities e incentivando ainda mais a priorização do mercado externo, além disso traz impactos severos sobre a capacidade do Estado de financiar políticas públicas direcionadas à produção de alimentos por meio da arrecadação.

O debate sobre a adoção de cotas regulatórias de exportação para produtos agrícolas estratégicos, a fim de garantir o abastecimento interno em momentos de crise ou pressão externa apresenta-se como incontestável na política nacional.

A política agrária brasileira, durante os últimos anos, se afastou dos instrumentos clássicos de regulação de mercado e de promoção do abastecimento. Os estoques reguladores foram desmontados, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) havia sido extinto pelo Governo Bolsonaro e as políticas de incentivo à produção de alimentos básicos foram negligenciadas.

Como essas cadeias agroalimentares são altamente dependentes de insumos oriundos de pacotes tecnológicos, a pandemia da Covid 19 e a guerra na Ucrânia aprofundaram esses efeitos, provocando rupturas nas cadeias globais de suprimentos, em razão do encarecimento de componentes agrícolas.

E mais, a política fiscal travada pelos Estados Unidos indica cenário de agravamento da tendência de concentração produtiva e de terras voltada para a exportação: a demanda chinesa por milho e soja brasileiros pode intensificar-se, comprometendo a oferta interna de insumos fundamentais para a produção de proteínas animais.

O resultado é a elevação dos preços de carnes e ovos, que têm impacto direto na inflação percebida pela população. Isto é, mais concentração agrícola em razão das maiores demandas internacionais por produtos agrícolas brasileiros, menor disponibilidade de oferta alimentar humana e animal.

Um dos aspectos centrais dessa crise estrutural é a concentração fundiária no Brasil. Dados do Censo Agropecuário (IBGE, 2017) revelam que apenas 1% dos estabelecimentos rurais controlam cerca de 47,5% da área total. Em contrapartida, a agricultura familiar, que responde por parcela significativa dos alimentos consumidos no país, possui acesso a apenas 23% da área agrícola e enfrenta sérios obstáculos no que se refere a crédito, assistência técnica, acesso à terra e políticas de comercialização.

Neste passado recente a reforma agrária foi absolutamente paralisada e as lutas sociais pela democratização da terra criminalizadas. Apesar da retomada da reforma agrária, com importantes e históricas desapropriações, o orçamento é reduzido e a pressão do agronegócio exponencial.


Redistribuição da terra permite a ampliação da base produtiva voltada ao mercado interno. Foto: Hannah Letícia/MST MA

Retomar as políticas sociais e agrárias, em novo molde, não é tarefa simples.

Desde 2023, o Governo Federal do Presidente Lula tem buscado reverter esse cenário por meio de uma série de iniciativas combinadas. A tentativa de recomposição dos estoques públicos de grãos pela Conab tem como objetivo mitigar a volatilidade de preços e assegurar reservas estratégicas. O programa “Arroz da Gente” visa incentivar a produção diversificada de arroz em regiões fora do eixo Sul, promovendo a desconcentração produtiva.

Os Contratos de Opção de Venda (COV), utilizados como instrumentos de política agrícola, foram retomados para garantir a formação de estoques públicos reguladores e previsibilidade para alimentos básicos, como o arroz. Tais medidas contribuíram para baixar os preços aos consumidores, comparado aos últimos 12 meses, do arroz (-11%) e do feijão (-13% do carioca e -26% do preto).

Além disso, houve a simplificação das normas para a comercialização interestadual de mel, leite e ovos, o que representa um avanço significativo na facilitação de mercado para a agricultura familiar e pode influenciar a abertura normativa para outros produtos. O monitoramento de preços da nova cesta básica brasileira, elaborado pela Conab e pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, também é um passo importante ao reconhecer a diversidade regional e nutricional da cultura alimentar brasileira e avaliar o acesso aos alimentos básicos regionais.

Ainda assim, é preciso avançar para além do imediato. A construção do Plano Nacional de Abastecimento Alimentar, assegurando orçamento robusto e protagonismo na implementação, articulado com políticas de ordenamento territorial, transição agroecológica, segurança alimentar e enfrentamento às mudanças climáticas, é imperativa.

Contudo, ele deve ser acompanhado de um conjunto de políticas públicas estruturadas, voltadas para a redução do uso de agrotóxicos e transgênicos – como o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos -, incentivo à agroecologia e valorização dos circuitos locais e regionais de produção e comercialização de alimentos – especialmente em mercados institucionais e regionais.

Mas sem mudar a estrutura fundiária nacional, com garantia do acesso à terra e aos territórios e à água, não haverá soberania e tampouco as políticas alimentares surtirão efeito. A reforma agrária, a demarcação e a titulação de terras se impõem nesse contexto, não apenas como uma demanda histórica de justiça socioambiental, mas como estratégia econômica racional.

A redistribuição da terra permite a ampliação da base produtiva voltada ao mercado interno, o fortalecimento da agricultura familiar e a construção de sistemas alimentares resilientes às flutuações do mercado internacional. Trata-se de um instrumento indispensável para reduzir a inflação dos alimentos, promover a soberania alimentar e assegurar o direito humano à alimentação adequada.

* Editado por Mariana Castro