Agroecologia
MST é o único a produzir sementes de hortaliças agroecológicas no Brasil
Com unidade de beneficiamento no extremo sul do Brasil, Bionatur completa 28 anos produzindo e vendendo sementes de mais de 30 variedades em escala nacional

Por Flávia Schiochet
Do O Joio e O Trigo
De chapéu e botas, o casal Claudinei Anschau e Carla Schmidt conduz a reportagem do Joio pelo lote de 29 hectares numa tarde de março, apontando em várias direções: “Aqui é abóbora. Lá é pepino. Ali é girassol e melão. Nesse pedaço a gente tá deixando lanceta, cornichão, flor roxa e chirca crescerem pras abelhas.” Os dois se intercalam ao falar, e completam a frase um do outro.
“Ali ainda tá em pousio, a gente vai plantar no inverno do ano que vem. Esse piquete é onde as vacas vêm pastar. Nessa parte, a gente vai semear cenoura em maio e, lá por junho ou julho, cebola”, continuam.
Há dez anos, o casal tem uma produção agroecológica no assentamento em Hulha Negra, no extremo sul do Rio Grande do Sul, a 30 quilômetros de Bagé. Como eles conseguem lembrar exatamente o que precisa ser feito em cada fatia do lote é algo que nem eles sabem responder. “A gente no começo até fazia um mapa”, conta Carla, “mas as coisas mudam, depende do clima também”, completa Claudinei.
No fim do outono, eles vão semear cenoura e cebola em 1,5 hectare. Mas não para colher o que vai crescer debaixo da terra. Vão esperar as plantas darem sementes.

Os Schmidt Anschau são uma das 120 famílias que fornecem sementes para a Bionatur, a primeira empresa latinoamericana de sementes agroecológicas. É gerida pela Cooperativa Agroecológica Nacional Terra e Vida (Conaterra), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e completou 28 anos em janeiro. A unidade de beneficiamento fica em Candiota, a 70 quilômetros de Bagé, no Rio Grande do Sul.
O número de famílias fornecedoras varia: começou com 12 e já chegou a 350, distribuídas em dez estados. Com o estrangulamento de políticas públicas nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, o número caiu. Atualmente, a produção é de cerca de quatro toneladas ao ano, e as sementes vêm de assentados e acampados do MST em seis estados – Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Norte e Ceará –, mas a distribuição é nacional.
A trajetória da Bionatur não foi linear. A cooperativa mudou, experimentou e se organizou de formas diferentes em quase três décadas. Agora, está numa espécie de fim de entressafra, pronta para começar a dar novos frutos. “Nós estamos adequando nosso portfólio à questão comercial, porque não vamos sobreviver produzindo semente adaptada a um local só”, explica Alcemar Inhaia, presidente da Conaterra. O objetivo da Bionatur é, até 2027, produzir oito toneladas de sementes por ano.
Para isso, uma segunda fábrica está sendo projetada na Bahia, para descentralizar o beneficiamento e receber a produção dos estados do nordeste, centro-oeste e norte.
Uma semente produzida no Rio Grande do Sul pode ir para qualquer lugar do Brasil. Mas, dependendo da espécie, ela não vai se adaptar a um clima diferente.
Um exemplo é o Coentro Verdão, uma variedade plantada pelos assentados do MST tanto na Bahia quanto no Rio Grande do Sul. A venda dessas sementes será nos biomas próximos, porque é onde a planta vai se desenvolver melhor. Mas isso não vale para qualquer semente. “Uma vez levamos uma alface aqui do sul para o nordeste. O ciclo dela para dar flor é de cinco meses. Naquele calor, as flores saíram em 20 dias, a planta mal tinha se formado”, relembra Inhaia.

A semente vale mais
A especialidade da cooperativa são as sementes de hortaliças, mais delicadas e, muitas vezes, menores que as de leguminosas e frutas. Uma semente de alface, por exemplo, é tão pequena e leve que pode ser confundida com um cisco. Para produzir o pendão com as flores, as folhas da verdura já amargaram e murcharam.
Esse ciclo mais longo requer manter a planta sadia por mais tempo. E o preço pago ao agricultor reflete isso: o quilo da semente é mais valorizado. “Um quilo de sementes de coentro é comprado a R$ 8 pelas empresas sementeiras multinacionais. A gente paga R$ 18”, compara Daniel da Silva, diretor da Bionatur.
O processo de colheita tem algumas particularidades. Nem sempre a madureza se dá ao mesmo tempo. Para colher as sementes de cenoura e cebola, por exemplo, as raízes e os bulbos subterrâneos já passaram do ponto adequado para consumo. A cenoura fica fibrosa e a cebola começa a apodrecer.
Em frutas, as sementes estão prontas quando o fruto começa a mudar de cor. Depois de abrir todas, a quantidade de polpa precisa de um destino. Uma parte é consumida pela família, outra parte pode virar lavagem para porcos ou ração para galinhas.
Depois de extraídas, elas precisam secar. As culturas de verão costumam ser úmidas, como abóbora, melão e melancia. Para separar da mucilagem, aquela substância viscosa que entremeia a polpa, elas ficam de molho em água por cerca de 12 horas. O que boiar é descartado. Depois, são enxaguadas e secas à sombra. As de inverno – como salsa, coentro, cenoura e cebola – secam sobre um pano para permitir a ventilação, também à sombra.
Esses processos nem sempre interessam aos agricultores. A vocação para o trabalho meticuloso parece intrínseco à agroecologia, mas a produção de sementes foi narrada como uma missão por vários camponeses. “Um pé de alface, para comercializar, em 30, 40 dias, dá pra vender. Para a semente, é 5 meses”, compara Inhaia.
Além do manejo agroecológico ser livre de agrotóxicos e fertilizantes químicos no campo, o tratamento para armazenamento e transporte também é bastante diferente do convencional. Em vez de fungicida, as agroecológicas costumam adicionar cinzas às sementes para controle de fungos e bactérias.
Tomate e alface sem royalties
A Bionatur é mantenedora de 29 varietais de domínio público, como cebola, cenoura, couve, alface, tomate, abóbora, rabanete e berinjela, e também guarda mais de 40 espécies crioulas, entre hortaliças, grãos e forrageiras, trocadas ativamente com redes de outros estados e doadas a interessados, sejam do campo ou da cidade.

Antes de ser uma empresa, a Bionatur é um banco de sementes. Essa função de abastecer os agricultores assentados com material genético próprio se mantém. “A formalidade nos garante a segurança de resguardar as variedades”, resume Silva, diretor da Bionatur. O que a cooperativa fez foi dar um passo além: adaptar-se à regra do jogo para enfrentar o status quo.
Uma semente entra em domínio público depois de 15 a 18 anos de seu registro no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), a depender da espécie. São variedades cadastradas como criação de um melhorista ou instituto de pesquisa. Passado este período, não é mais preciso pagar royalties para multiplicar a semente para a venda.
A exclusividade da Bionatur não está nas variedades do portfólio, e sim no manejo: os agricultores têm acompanhamento da equipe técnica para produzir de forma agroecológica, mantendo simultaneamente várias culturas. Além disso, todos os campos de produção de sementes são certificados como orgânicos pela Rede Ecovida de Agroecologia, uma organização que reúne grupos, associações e cooperativas de agricultores, ONGs e associações de consumidores.

Só de sementes de tomates, a Bionatur mantém cerca de 30 variedades; a maior parte, crioulas. Uma delas foi “formalizada” em 2017: o tomate Bio Feliciana, selecionado e cultivado pela agricultora Lourdes Feliciana da Silva por mais de 30 anos. Feliciana é assentada no município de Piratini, a 160 quilômetros de Bagé.

Para registrar uma semente, é preciso selecionar por vários ciclos as que apresentam as mesmas características. “Foram uns cinco anos de pesquisa e adaptação, porque esse tomate tinha uma variabilidade bastante grande. Precisava selecionar as plantas com características que garantam que ela não vai ter muita doença, que o ciclo vai ser longo, e que ela produziria em qualquer lugar do Brasil. E produz mesmo, muito tomate”, detalha Inhaia.
O tomate Bio Feliciana é do tipo cereja graúdo. Seu sabor equilibra o doce e o ácido, e a variedade se adapta bem a sistemas de cultivo agroecológicos e orgânicos. Variedades mais próximas da origem crioula costumam ser mais rústicas.
“Geralmente as crioulas produzem mais haste, tronco, biomassa. As variedades desenvolvidas para a agricultura comercial são selecionadas para ter menos estrutura e fruto maior. Aí a planta acaba ficando frágil, é mais atacada por fungo, bactérias. Isso diminui a nutrição da planta e também a impede de cumprir sua parte no solo”, detalha Silva, diretor da Bionatur.
Por enquanto, o tomate Bio Feliciana é a única semente de propriedade intelectual da Bionatur – as demais variedades foram desenvolvidas pela Embrapa ou pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e a Bionatur detém a licença de comercialização. Mas, ao registrar o tomate Bio Feliciana, a Bionatur optou por abdicar dos royalties. Ou seja, quem quiser, pode multiplicar as sementes do Bio Feliciana para vender, sem pagar tributo à cooperativa.
Nos últimos anos, a Bionatur tem trabalhado para registrar sua segunda variedade própria, o alface Bio Rainha, nos mesmos moldes.
Do calote à nacionalização
Claudinei e Carla são filhos de agricultores assentados pelo MST. Os pais de ambos fugiram da família para se juntarem aos acampamentos do movimento, nos anos 1980. Os Anschau são do noroeste do estado, e os Schmidt, do sul.

As primeiras famílias vieram no final dos anos 1980; a maior parte, do norte do estado. Atualmente, 1.700 famílias vivem em 57 assentamentos nas cidades de Candiota, Hulha Negra e Pinheiro Machado, a região com mais assentados do estado.
Claudinei e Carla se conheceram no início dos anos 2010, e se mudaram para um lote no assentamento de Hulha Negra em 2014. “Se vocês conhecessem em 2014, não queriam nem de presente. Era um lote de fundo, três metros de altura só de chirca e vassoura branca, não tinha estrada até aqui. Em 20 anos, passaram no mínimo umas 20 famílias”, relembra Claudinei.
Na verdade, a permanência de agricultores em toda a região do extremo-sul foi desafiadora por décadas. A região de Bagé havia sido forte na produção de trigo até os anos 1970. “Na época, era milho e trigo, o básico, mas eram pequenos agricultores. Também produziam outras coisas, como batata, mandioca e abóboras para subsistência”, recorda o agricultor nativo da região, Luís Flávio Soares Abreu, conhecido como Kiki.
A concentração fundiária e a modernização da agricultura no estado causaram um êxodo rural que, só na década de 1970, deslocou mais de 1,2 milhão de pessoas do campo para a cidade. A mãe e os irmãos de Kiki, inclusos. “Ficamos eu e meu pai. Os dois que restam no campo ainda”. Ele tem 61 anos e uma filha professora.

Na década seguinte, surgem movimentos de luta por direitos sociais, como o MST. No Rio Grande do Sul, a ocupação da Fazenda Annoni foi um marco. Sete mil pessoas de 33 municípios vizinhos a Sarandi, no noroeste do estado, ocuparam a fazenda em 1985. A pressão funcionou: em 1993, todas as famílias já estavam assentadas. Parte delas ficou na própria fazenda. E outra parte, foi para o extremo-sul em 1989, nos primeiros assentamentos em Candiota e Hulha Negra.
Chegaram sem entender o solo e o clima, o que plantar e como trabalhar a terra. O solo é duro, o inverno, seco, e as ferramentas de trabalho à época, inexistentes. Arar e revirar os campos eram a partir da força humana. Que espécies plantar e em que período, aprenderam aos poucos.
Os agricultores locais, como a família de Kiki, trabalhavam para as grandes empresas sementeiras ou de monocultivo. Por gerações, trabalharam a terra com esterco de animal, adubação verde, pousio e variedades plantadas juntas. Eles não sabiam à época, mas sua forma de produzir era agroecológica. “Aí, nós, que estávamos aqui, nos incorporamos ao movimento [sem terra]. Já se discutia a agroecologia, e a gente ficava meio assim. Aí começamos a compreender o que era e que nós também fazíamos isso. Não por consciência, mas por uma necessidade”, relembra Kiki.
As primeiras oportunidades de trabalho chegaram pelas empresas produtoras de sementes, que já estavam instaladas no Pampa gaúcho.
A localização não é à toa: os dias mais longos e as estações demarcadas são ideais para o ciclo das hortaliças. Assim, elas cumprem seu ciclo completo de desenvolvimento na terra: brotam, crescem, dão flores, frutos e produzem sementes.
Isso significa economia para a produção comercial: em latitudes mais próximas à Linha do Equador, a cenoura nem chega a florescer. Nessas localidades, a raiz precisa ser colhida e submetida a cerca de 40 dias de vernalização, um período em que fica em uma câmara fria para que a planta complete seu desenvolvimento. O processo encarece a produção e não compete com a produtividade do clima e fotoperíodo no Pampa. Lá, um hectare rende 800 quilos de sementes de cenoura e 350 quilos de sementes de cebola num ano sem granizo, nem seca.

Cebola, cenoura e salsa
Sem estradas de acesso, sem luz, e ainda morando em barracas de lona preta, os assentados passaram a produzir sementes para as grandes empresas da região. No início, eram cebola, cenoura e salsa. Foram cerca de três anos neste arranjo, até as empresas alegarem problemas de germinação e pararem de pagar. E não devolveram as sementes aos agricultores, que poderiam ser usadas para produzir alimentos.
Depois do calote, 12 famílias se reuniram para começar a produção por conta própria. Em 1997, abriram um setor de sementes dentro da cooperativa de leite que existia à época, no Assentamento Conquista da Fronteira, em Hulha Negra. Desde o início, a ideia era produzir sementes de hortaliças de forma agroecológica. No ano seguinte, colhiam a primeira safra sob o nome Bionatur.
“Era precária a situação. As pessoas colavam manualmente os sachês de sementes em casa, à luz do lampião, porque não tinha luz elétrica”, diz Kiki. Uma dessas famílias era Hélio Anschau e Lucia Baches Anschau, os pais de Claudinei.
A produção circulava entre os agricultores familiares, como um banco de sementes, agregando também forrageiras, grãos, flores e plantas ornamentais.
Nos anos 2000, a Bionatur se mudou para as dependências do Centro de Educação Popular e Pesquisa em Agroecologia (CEPPA), no assentamento Roça Nova, em Candiota, cidade vizinha a Hulha Negra. A localização facilitou a logística de receber e enviar sementes.
Em 2005, criaram uma nova cooperativa, a Conaterra, para gerir a Bionatur. Discussões internas no MST definiram que a estratégia para nacionalizar a produção era aumentar o número de famílias produtoras. A decisão também servia como uma resposta à recém-publicada Lei de Biossegurança, que dispensou a necessidade de análises de saúde e meio ambiente para a aprovação de um organismo transgênico. As sementes eram centrais na discussão sobre soberania alimentar e autonomia do agricultor, e sua produção de forma agroecológica foi definida como prioridade para todo o movimento, do Oiapoque ao Chuí.
Os assentamentos trabalhavam de forma local, conduzindo suas produções de sementes e trocando entre si. Mas logo se percebeu que, sem uma coordenação central, a nacionalização não iria adiante.
“Tem que ter alguém orientando, porque não é só pegar a semente e multiplicar. Tradicionalmente, os agricultores conhecem milho, feijão e arroz. Tu larga em qualquer lugar e ela vai se multiplicar. Agora, como se multiplicam alface, rúcula, almeirão?”, questiona Inhaia. A escolha de sementes também era estratégica: era preciso variedade, e ofertar um mix que competisse com a produção comercial das multinacionais.
Outra questão para acertar era a rotatividade da equipe técnica da Bionatur. A extensão rural para a agroecologia é mais detalhista e integrada. A frequência de visitas dos técnicos agrônomos da Bionatur, inclusive, é maior, chegando a seis por ano, três vezes mais que a extensão rural convencional, em muitos casos. “Nós trabalhamos com todo o sistema complexo do lote, desde a produção de frutas, flores, animais, mel, sementes. Tudo isso está interligado”, relata Violeta Cavalheiro, técnica da Bionatur.
A maturidade veio após o lançamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), em 2003. A Bionatur passou a acessar a modalidade de doação simultânea em 2007. Dali até 2010, registrou os maiores volumes de produção, variedades de sementes e número de famílias fornecedoras. Até hoje, 8 em cada 10 sementes vendidas são para o mercado institucional.
Em 2013, com a Operação Agro Fantasma, que investigava supostos desvios no PAA, o acesso ao programa se tornou mais burocrático. Foi criada uma modalidade específica, o PAA Sementes, e exigido um intermediador para fazer a solicitação. Uma cooperativa ou associação só poderia comprar sementes de outra se, por exemplo, uma prefeitura, assistência técnica ou órgão do governo solicitasse.
“As sementes fazem parte de um campo de disputa muito profundo pelas empresas transnacionais, pelo agronegócio. Qualquer coisa que fortaleça uma semente que não é a industrial, você tá brigando com todo um sistema regulatório”, analisa Naiara Bittencourt, da assessoria da Diretoria de Política Agrícola e Informações da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
A mudança desmobilizou a atuação de várias associações de agricultores. Mas não a Bionatur: como já atuava de forma comercial, a dificuldade não foi enfrentar a burocracia, mas ter destinatário para as sementes.
Quando Michel Temer assumiu a presidência após o impeachment de Dilma Rousseff, todas as modalidades do PAA tiveram diminuição de orçamento. No governo de Jair Bolsonaro, o programa foi rebatizado e o orçamento, extinto. Por anos, o PAA operou com emenda parlamentar.
Foi o período mais minguado para a cooperativa: diminuíram as vendas e a compra da produção de sementes dos assentados. A recuperação veio em 2023, com a recriação da compra de sementes pela modalidade de doação simultânea, retirando uma série de burocracias criadas após a Operação Agro Fantasma. A demanda voltou a crescer, bem a tempo de mitigar os estragos das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul em 2024.
“Nós entregamos toda a nossa semente de cebola para os produtores que perderam suas lavouras. Agora, estamos enviando mais de R$ 300 mil em kits com umas 20 variedades para esses agricultores plantarem”, detalha Violeta Cavalheiro, técnica da Bionatur.
Sistema formal e erosão genética
A reprodução vegetal é generosa por natureza: a colheita de sementes de um hectare de rabanete enche uma bombona de 20 litros no Pampa gaúcho – esse volume vai semear centenas de outros campos.
O agricultor precisa de duas coisas: terra e sementes. A primeira foi transformada em propriedade privada há séculos. Mas as sementes, até pouco tempo atrás, eram insumos de uso comum.
A primeira lei que regulamenta a venda de sementes no Brasil é a 4.727, de 1965, com o objetivo de garantir uma padronização. Mesma década em que a Revolução Verde mudou a produção no campo com seu pacote tecnológico – fertilizantes químicos, agrotóxicos e maquinário agrícola.

As sementes foram fundamentais nesse processo. As mesmas indústrias que desenvolveram o pacote tecnológico, passaram a trabalhar na seleção de variedades com maior produtividade. Isso, e ciclos de vida mais curtos, são as características desejadas comercialmente até hoje.
Se antes cada agricultor tinha sua “biblioteca” própria de sementes, que já estavam adaptadas às condições de clima e solo de sua região, a pressão por aumento de produção, a lei exigindo padrão e o surgimento das cultivares das indústrias sementeiras fez muitos agricultores deixarem de guardar, trocar ou vender sementes próprias. Passaram a usar as das sementeiras multinacionais, fossem elas variedades selecionadas ou híbridas.
No primeiro caso, os agricultores até conseguem guardar as sementes e produzir em anos seguintes. Mas conforme passam as safras, novas combinações genéticas fazem com que as plantas percam o padrão das características iniciais – esse processo, chamado de segregação, é natural. No segundo caso, o vigor híbrido, que traz mais produtividade para a planta, diminui a cada ciclo, e novas sementes precisam ser compradas para manter o mesmo nível de produtividade.
Duas décadas após a Revolução Verde começar, os pesquisadores e melhoristas já percebiam a diminuição acentuada de variabilidade genética. Irajá Antunes, engenheiro agrônomo especializado em melhoramento vegetal da Embrapa Clima Temperado, relata que nos anos 1980, começou um movimento internacional para coleta e preservação de materiais genéticos crioulos.
“Com o advento dessa agricultura que eu chamo de sintética, a agricultura moderna, o processo de erosão genética estava muito acelerado”, diz. “E quanto mais diverso for um ecossistema, mais resiliência ele terá. No momento de mudanças climáticas que estamos vivendo, necessitamos cada vez mais da diversidade genética nos campos”.
Segundo os especialistas ouvidos pelo Joio, essa diversidade não tem sido incentivada em políticas públicas além do PAA Sementes, que consideram insuficiente. E a legislação brasileira tampouco ajuda.
Em 1997, a Lei de Proteção de Cultivares (9.456) passou a reconhecer o direito à propriedade intelectual. Em 2003, a Lei de Sementes e Mudas (10.711) complementa o arcabouço legal com normas para a produção, beneficiamento e comercialização, cria o Registro Nacional de Sementes (Renasem) e traz uma série de padrões que as sementes precisam apresentar, comprovados por laudos em laboratório, como vigor, germinação e pureza. É, também, a primeira vez que uma legislação reconhece as sementes crioulas.
“De um modo geral, a lei 10.711 foi boa por trazer a definição de semente crioula, só que deveria ter sido feito de outra forma, para a proteção da biodiversidade. A lógica é a de mercado, muito empresarial. E o agricultor vira um consumidor, quando ele deveria ser o protagonista”, critica Katya Isaguirre-Torres, professora de Direito Agrário e Direito Ambiental da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
As crioulas são dispensadas de cadastro no Renasem – também por isso, não há nenhum banco de dados sobre a quantidade existente no Brasil. Tampouco há um mapeamento oficial de bancos ou casas de sementes comunitárias. É da natureza da dinâmica camponesa tradicional que esses arranjos sejam locais, descentralizados e dinâmicos.
“Hoje, como está estruturada a normativa brasileira, especialmente a Lei de Sementes e Mudas, permite-se que exista um mercado de sementes crioulas, que exista um mercado da agricultura familiar, contanto que ele fique ensimesmado, nele mesmo”, observa Naiara Bittencourt, da Conab.
Se a perda das variedades crioulas é um ponto de atenção, o mesmo vale para varietais. “E quando a semente cai em domínio público, quem é que vai manter essa reserva? Porque, se não for mais lucrativo, a empresa vai deixar de produzir semente e a gente vai ter uma erosão genética”, alerta Katya.
Nesse cenário de lacunas institucionais e ameaça à conservação da biodiversidade, experiências como a da Bionatur mostram um caminho possível – e híbrido.
Com um pé fincado no campo agroecológico e o outro no sistema formal comercial de sementes, a Bionatur agora enfrenta três desafios, e eles estão encadeados. O primeiro é garantir assistência técnica especializada para os produtores de todo o Brasil. Com isso, aumenta a produção e o estoque de sementes. E, por fim, a comercialização de um maior volume aumenta a renda no campo. Kiki, o mais velho da turma olha para isso com otimismo: “A cooperativa é jovem. Tem muito pra construir e só vai melhorar”.