Cultura

Rap, Reforma Agrária e a luta por dignidade

Djonga de apresenta nesta sexta (9), à partir das 19h30, no Palco Arena, na programação da 5ª Feira Nacional, que ocupa o Parque da Água Branca, em São Paulo

Show de Yago Opróprio, na IV Feira Nacional da Reforma Agrária. Foto: Matheus Alves

Por Fernanda Alcântara/Equipe de texto da Feira
Da Página do MST

É que eles têm medo do novo
A chama que acende o farol
Seremos Deus e o diabo na terra do Sol”

Djonga – Deus e o Diabo na terra do Sol

Uma das expressões musicais mais aguerridas do mundo não poderia ficar de fora da 5ª Feira Nacional da Reforma Agrária, que começou nesta quinta-feira (8) e até domingo (11), ocupa o Parque da Água Branca, em São Paulo. Nascido nas ruas do Bronx, nos EUA, o estilo musical conhecido mundialmente como “rap” surgiu como expressão cultural de comunidades marginalizadas, a partir de vozes daqueles sistematicamente silenciados. Seus primórdios estão ligados à denúncia da violência policial, do racismo e da exclusão econômica, mantendo um diálogo direto com a realidade das periferias.

Desde suas origens, o rap funcionou como um microfone aberto para as lutas dos socialmente excluídos. Nos EUA, denunciou o racismo e a violência policial; no Brasil, tornou-se voz das periferias, mas também ecoou demandas historicamente silenciadas, sem nunca perder o caráter combativo, amplificando lutas contra as desigualdades. Nos EUA, nomes como Kendrick Lamar e J. Cole abordam desde o encarceramento em massa até a herança colonial, enquanto rappers europeus, como o francês Médine, criticam a xenofobia e a segregação urbana. No Brasil, artistas como Emicida, Djonga e Drik Barbosa são conhecidos por suas letras que expõem a brutalidade do Estado, a falta de oportunidades e a resistência negra e periférica.

Embora o rap brasileiro raramente aborde explicitamente o termo “Reforma Agrária”, suas letras desenvolvem uma crítica estrutural ao latifúndio e à desigualdade territorial por meio de três eixos temáticos principais: a denúncia da concentração de riqueza; o uso de metáforas sobre exclusão espacial; e a construção de paralelos entre a violência sofrida nas periferias urbanas e a repressão no campo. Essa abordagem indireta, porém orgânica, permite que artistas como Djonga, Sabotage e Facção Central articulem uma contestação ao modelo fundiário brasileiro sem necessariamente mencionar diretamente a questão agrária, mantendo a coerência com a linguagem cifrada característica do gênero.

Além disso, artistas como Racionais MC’s, já nos anos 1990, relacionavam a opressão nas favelas com a desigualdade entre os mais ricos, como em versos como “Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é/ Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé” (em “Negro Drama”). Grupos como Facção Central, conhecidos por suas letras agressivas e críticas sociais, e artistas como Sabotage, em músicas como “Um Bom Lugar”, abordaram indiretamente a questão agrária ao falar sobre exclusão, violência estrutural e a necessidade de redistribuição de riquezas. 

Desigualdades compartilhadas

Tenha medo de quem tá vivo e respeito por quem tá morto”.

Djonga – Bença

Movimentos populares como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por sua vez, encontraram no rap um aliado cultural. O paralelo é claro uma vez que, assim como o rap confronta a segregação nas áreas urbanas, a luta pela Reforma Agrária desafia o latifúndio e o agronegócio. Ambas as lutas enfrentam repressão e criminalização, mas seguem resistindo – uma nas quebradas, outra nos assentamentos. Seja no beat ou no grito do campo, o que une esses fronts é a mesma demanda: direito ao espaço, dignidade e futuro.

É trazendo todo este paralelo que o rapper Djonga, atração de destaque no palco Arena desta Feira Nacional da Reforma Agrária. Filho de Rosângela e Ronaldo Marques, cresceu ouvindo samba e funk até se tornar um dos principais nomes do rap brasileiro. Hoje, o mineiro é conhecido por suas letras afiadas que denunciam desigualdades e celebram a resistência negra e periférica, trazendo para o palco sua música engajada que dialoga diretamente com as lutas do campo e da cidade.

Djonga na Virada Cultural. Foto: Leandro Couri/EM

A trajetória do rapper Djonga reflete uma consciência política que vai além das fronteiras das periferias urbanas, alcançando pautas estruturantes como a Reforma Agrária. Na música “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de autoria de Djonga com o rapper Filipe Ret, ele lembra “Não adianta inspirar vida se você expira vala”, pode ser interpretada como uma crítica à forma como a terra é utilizada e distribuída no Brasil. A letra é inspirada no filme brasileiro homônimo, de 1964, dirigido por Glauber Rocha. Considerado um marco do cinema novo, o filme retrata a situação de miséria do sertão nordestino e as duas principais alternativas aparentes para superar tal condição: o messianismo e o cangaço, ou Deus e o Diabo, respectivamente.

E quando falamos de cultura Sem Terra e este lugar de pertencimento, e de uma nova ideia de dignidade. Djonga, em seu disco “Quanto Mais Eu Como, Mais Fome Eu Sinto !” (2025) traz reflexões sobre ancestralidade, território e resistência, temas que ecoam as reivindicações do MST por democratização da terra e soberania alimentar. Na música “Ponto de Vista”, do mesmo álbum, o cantor fala sobre sobrevivência e resistência, conceitos que tanto os Sem Terra quanto um jovem preto da periferia compreendem na prática. “No quartinho de despejo, se aprende que a fome também é professora (…)/ Quero o melhor lugar na mesa, porque eu sei que esses cara preferem nos ver servindo”.

E neste jogo de palavras e trajetórias, Djonga demonstra como o rap contemporâneo amplifica pautas que transcendem o asfalto. Ao conectar sua narrativa pessoal com as lutas do campo, ele reforça que a desigualdade no Brasil tem dono – e que a transformação só virá com união entre favelas, roçados e aldeias. Assim como o MST, Djonga entende que a terra, a moradia e a dignidade são direitos inegociáveis – e sua música é um grito de alerta para quem ainda acha que essas lutas estão separadas.

Se, como Djonga diz em Deus e Diabo na terra do Sol, “Tamo coberto de lama perguntando quanto VALE(…)/ Não é Eduardo e Mônica, é Brumadinho e Mariana na lama /Indecência por grana/ Aonde quem pensa apanha“, vamos continuar pensando, agindo, resistindo.

*Editado por Solange Engelmann