137 da Abolição

Mais um 13 de maio e a luta por reparação histórica segue

Artigo ressalta que 137 anos após a abolição, o povo negro resiste e exige justiça através da Reforma Agrária Popular e do enfrentamento ao racismo estrutural

Foto: Rovena Rosa /Agência Brasil

No dia 14 de maio eu saí por aí, não tinha trabalho nem casa nem para onde ir…”

– Lazzo Matumbi

Por Grupo de Estudos Étnico-Raciais do MST
Da Página do MST

Mais um 13 de maio e as perguntas seguem: Será mesmo que a liberdade veio nesse dia? Para onde foi o povo negro no pós-abolição? Qual a definição de liberdade trazida contida na Lei Áurea? Porque não houve políticas públicas complementares a essa lei? Porque a liberdade do povo negro chegou tarde, incompleta, silenciosa?

O fato é que o dia 13 de maio de 1888 segue demarcado na história oficial como data da abolição da escravatura no Brasil. A chamada Lei Áurea libertou legalmente mais de quatro milhões de pessoas negras escravizadas. A partir dela, milhões de seres humanos foram jogados(as) Brasil afora, conformando uma procissão de sem-terras a vagar nas esquinas, nas senzalas de concreto e a lutar por sobrevivência, gerando gerações inteiras de vidas marcadas por processos de exclusão.

A liberdade dos corpos e o cativeiro da terra ou o racismo que se reinventa

O fim da escravatura no papel foi se moldando para continuar o processo de exploração do trabalho do povo negro, sob outras formas, sustentadas pela fome e pelo abandono. A Lei Áurea, com apenas dois artigos, não falava de inclusão, de cidadania, de futuro. Não houve qualquer reparação, distribuição de terra, garantia de moradia, trabalho ou dignidade para aqueles(as) que tiveram suas vidas roubadas por séculos. A liberdade foi apenas no papel — na prática, o racismo e a exclusão social continuam moldando a vida da população negra. Era uma abolição sem projeto, sem compromisso com a reconstrução da vida negra fora da escravidão. A elite política, pressionada pelos movimentos abolicionistas e pela economia internacional, tratou o fim da escravidão como um incômodo necessário — não como um acerto histórico.

A Lei de Terras de 1850 representou a mercantilização da terra a partir da introdução do sistema da propriedade privada e normatizando o domínio privado do capital sobre a terra, impedindo as trabalhadoras e os trabalhadores pobres, negras e negros — os que já estavam livres e os que viriam a ser com a abolição — de se transformarem em pequenos proprietários.

A Lei de Terras estruturou duas questões que permanecem: a questão urbana e a questão agrária, tendo a população afrodescendente e indígena como principal vítima das relações sociais aí estabelecidas. O vínculo entre luta de classes, patriarcado e questão racial é um dado concreto na realidade brasileira.

É a partir desse cenário, do processo de desenvolvimento político e econômico consolidado no Brasil, iniciado na invasão e colonização portuguesa, passando pela Lei de Terras de 1850, pela Lei Áurea de 1888, da Monarquia à República, seguindo para a industrialização dependente, a contrarreforma agrária da ditadura empresarial-militar dos anos 1960 e 1970. Os projetos de colonização de fronteiras e, já na década de 1990, a entrada do capital internacional financeiro na agricultura — a propriedade da terra se manteve inalterada.

As leis racistas, dispositivos que impediram reparação às famílias escravizadas e às próximas gerações que seguem lutando contra os resquícios, forneceram meios mínimos para que os negros libertos pudessem integrar-se de forma mais equânime na sociedade.

O fim da escravidão não encerrou o racismo. Ele se reinventou. A ausência de políticas de inclusão criou o ambiente ideal para o surgimento das favelas, da criminalização da pobreza e da marginalização do corpo negro. A estrutura escravista foi substituída por uma lógica de exclusão que permanece até hoje.

As estatísticas são provas vivas dessa continuidade: jovens negros são maioria entre as vítimas de homicídio, entre os encarcerados, entre os desempregados. A cor da pele ainda determina o CEP, o tipo de escola frequentada, o acesso à saúde e até a expectativa de vida. O racismo no Brasil é estrutural porque herdamos uma abolição feita sem rupturas — e, portanto, sem justiça.

No entanto, é válido ressaltar que antes da caneta da princesa, houve o açoite, o quilombo, o levante. Houve resistência. Zumbi, Dandara, Luísa Mahin, e tantos outros que lutaram quando o país insistia em negar-lhes a humanidade. A abolição não foi um presente, foi conquista de um povo que nunca se rendeu. Ainda assim, o 13 de maio não selou a justiça: foi apenas uma pausa na longa caminhada por dignidade, reparação e verdadeira liberdade.

Por isso, afirmamos: a resistência é nosso legado. Os quilombos espalhados pelo país, os navios negreiros enfrentados com rebeliões, os cultos protegidos sob o manto do silêncio, os saberes preservados em segredo. Houve mães que pariram na senzala e criaram guerreiros para a liberdade. Houve homens e mulheres que se negaram a morrer sem lutar. A liberdade não chegou pela mão da monarquia. Ela foi arrancada. A história oficial muitas vezes ignora que o povo negro não foi sujeito passivo da própria libertação. Ao contrário, foram protagonistas de uma das maiores lutas por justiça da história do Brasil.

Reforma Agrária Popular como política de reparação: uma urgência histórica

Mais de um século depois da abolição, ainda falta ao Brasil um projeto de reparação real. As cotas raciais, as ações afirmativas, o reconhecimento de territórios quilombolas e as políticas de inclusão educacional são conquistas recentes — e muitas vezes questionadas. O racismo insiste em negar até mesmo as pequenas vitórias de um povo que segue na linha de frente da luta por igualdade.

Reparar não é “dar privilégio”. É reconhecer o abismo construído ao longo de séculos. É assumir que liberdade sem oportunidade é ilusão. É entender que a dívida não é simbólica — ela é concreta, material, social. E não se paga com homenagens ocasionais, mas com justiça estrutural.

Falar do 13 de maio é debater e lutar pela Reforma Agrária Popular que propõe muito mais do que a simples divisão de terras: é resgatar na história a identidade do povo negro Sem Terra. É importante demarcar que o Brasil, local de maior tráfico negreiro do mundo, é o único país da América Latina em que a escravidão perdurou por mais de três séculos, moldando uma sociedade profundamente desigual, com grande concentração de terra, mantida através da violência contra pessoas e bens comuns. Mas também estamos falando de um cenário de constantes e intensos conflitos que, em alguns casos, atingiram grandes proporções.

A Reforma Agrária Popular é projeto de país, de uma forma diferente de viver e se relacionar com a terra. Nasce da necessidade de garantir que as famílias camponesas tenham acesso à terra para produzir alimentos saudáveis, viver com dignidade, respeitando o meio ambiente e preservar os saberes ancestrais dos territórios.

A reforma agrária popular é um projeto de reparação histórica necessária para a sociedade brasileira lidar com a espinha dorsal da desigualdade que a constitui.

Nesse sentido, compreendemos que não é possível retroceder. É por respeito a quem veio antes que seguimos em frente. Com mais consciência, mais coragem e mais voz. O 13 de maio, para nós, é o dia de lembrar que a liberdade não se assina: se constrói, nos quilombos, nos espaços.

A luta por liberdade segue

Enquanto houver desigualdade racial, enquanto a cor da pele for critério de exclusão, enquanto a história oficial continuar apagando os nomes que resistiram, a luta por liberdade segue. A esperança nos guia nessa marcha. Ela se faz presente em cada punho erguido, em cada latifúndio ocupado, nas lutas de abril, a cada vez que nossa bandeira é hasteada. Está nos passos firmes da juventude negra que ocupa a universidade, nos coletivos que ecoam nas periferias, nas mães solo que criam seus filhos para construir uma nova realidade. A luta segue porque o 13 de maio é apenas uma página. E o povo negro continua escrevendo a história — agora, com sua própria voz.

Até lá, o 13 de maio segue sendo nosso: não como festa, mas como memória e como força. Porque ainda estamos aqui. E isso, por si só, já é um ato de resistência. Por isso, se faz necessário trazer presente esse legado de resistência de lutadores(as) que não se curvaram diante de um regime colonial escravista: Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela, Francisco José do Nascimento, Zumbi dos Palmares, Luiza Mahin, Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis e todos(as) que vieram antes e lhes abriram os caminhos da luta. Sim: nossos passos vêm de longe.

*Editado por Fernanda Alcântara