Artigo
A ocupação de terras no Brasil
O mesmo gesto que rasgou a floresta para plantar capim ou soja hoje ameaça o futuro do clima e dos povos originários. A grilagem mudou de método, mas não de dono: o ‘desenvolvimento’ ainda se escreve com a mesma tinta da violência de 500 anos

Por Samuel Kilsztajn*
Do site A Terra É Redonda
O “descobrimento”
No século XVI, depois de invadir terras do além mar, a coroa portuguesa, por direito de conquista, decidiu declarar virgens todas as terras “descobertas”. Para ocupar e administrar a colônia, o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias, distribuídas a fidalgos donatários, que ficaram encarregados de doar as terras da coroa, na forma de sesmarias, a nobres, militares e funcionários públicos portugueses. Dominadas, escravizadas, desterradas e, em grande parte, exterminadas, as populações nativas recolheram-se continente adentro.
Durante os séculos seguintes, a colonização e o povoamento do Brasil com mão de obra escrava africana ficaram restritos à sua faixa litorânea, com exceção da marcha capitaneada pelos bandeirantes na primeira metade do século XVIII, durante o ciclo do ouro nas Minas Gerais; e do ciclo da borracha na Amazônia em fins do século XIX.
Na segunda metade do século XIX, interrompido o tráfico negreiro, a imigração compulsória de africanos, o Brasil incentivou a imigração de europeus para a produção cafeeira, aproveitando a oportunidade para “melhorar a raça”. Em 1888, ninguém sequer pensou em indenizar a população de origem africana pelo trabalho escravo por gerações e pelo desamparo a que ficaram reduzidos os sobreviventes e seus descendentes. Muito menos em distribuir terras para os libertos. Doar terras para os pobres que precisam dela como meio de vida?!
A marcha para o oeste
Após a Segunda Guerra Mundial, alimentado pelo capital internacional, o progresso tomou conta do imaginário e da política do Brasil. Nos anos 1950, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek prometia 50 anos em 5 e o lema de seu polo industrial era “São Paulo não pode parar”. Neste compasso, o projeto de ocupação das terras do Centro-Oeste foi inaugurado com a mudança da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central. As populações indígenas que habitavam a região, consideradas primitivas e retrógradas, foram, mais uma vez, expulsas de suas terras para dar lugar ao almejado desenvolvimento.
Até então, as terras do sertão da Bahia, Goiás e Mato Grosso não habitadas por indígenas estavam parcamente habitadas por quilombolas e caboclos que cultivavam terras devolutas. Os trabalhadores detinham a posse, mas não tinham títulos de propriedade. O termo posseiro, a princípio, não tem nada de pejorativo. A densidade populacional da região era tão baixa que a posse da terra era mensurada por sua extensão ao longo dos rios, e não por hectare ou alqueire.
Um posseiro dispunha de uma determinada largura ao longo de uma das margens do rio e, em relação ao comprimento, poderia cultivar a terra até onde tivesse disposição para trabalhar.
A ocupação do Centro-Oeste incentivou a formalização de títulos de propriedade e o processo de fechamento da fronteira agrícola do país, a ocupação de todas as suas terras cultiváveis. Os posseiros que trabalhavam as suas modestas terras, em geral, não sabiam escrever, nem ler.
E como entre nós quem fala é o papel, os donos do poder – coronéis, prefeitos e titulares dos cartórios encarregados de registrar os imóveis – forçaram os agricultores a vender a posse da terra por valores irrisórios ou simplesmente providenciaram escrituras baseadas em falsificados documentos “antigos” (grilagem). Por fim, os novos “proprietários”, auxiliados por seus capangas e policiais, expulsaram os autênticos posseiros e se apossaram “legalmente” de suas terras.
Os movimentos populares pela posse da terra sempre foram duramente reprimidos, tanto pelo governo como, diretamente, pelos “proprietários” das terras. Um dos programas que desencadeou o golpe em 1964 foi o da reforma agrária – e a ditadura militar perseguiu as Ligas Camponesas, prendeu e exterminou suas lideranças. Francisco Julião, deputado estadual, cassado e preso, exilou-se no México.
Além do Planalto Central, buscou-se ainda abrir caminho para a ocupação da Bacia Amazônica, com a construção das rodovias Belém-Brasília e Transamazônica. Durante a Ditadura Militar, de 1964 a 1985, o governo se empenhou em garantir que as “terras devolutas”, habitadas por indígenas e sertanejos sem títulos de propriedade, fossem distribuídas para as grandes empresas, que alavancariam o progresso e o desenvolvimento do país. Como estudos de casos, vamos nos ater a duas instituições que abriram frentes de trabalho na Amazônia, o Banco de Crédito Nacional (BCN) e a Volkswagen (VW).
Em 1966, em Santa Terezinha do Araguaia, o BCN criou a Companhia do Desenvolvimento do Araguaia – Codeara. A empresa, que se transformou no maior criador de gado do Mato Grosso, era acusada de escravizar e assassinar os seus peões e instigar conflitos armados. Os agentes da Pastoral de São Félix do Araguaia defendiam os indígenas, os posseiros e os peões das fazendas.
O conflito com os moradores do povoado de Santa Terezinha motivou a prisão do Padre François Jacques (Francisco) Jentel, que foi condenado a 10 anos de prisão. Padre Jentel foi mais tarde posto em liberdade e expulso do país.
A Volkswagen, em 1973, criou a fazenda do Vale Cristalino em Santana do Araguaia, Pará. A indústria automobilística havia decidido criar gado no meio da selva, numa área de 140 mil hectares (o município de São Paulo tem 152 mil hectares). Para o desmatamento da fazenda, foram contratados trabalhadores temporários, transformados em escravos, vítimas de ameaças e violência, impedidos de deixar a fazenda por supostas dívidas.
Os que tentavam fugir eram espancados, amarrados, passavam a trabalhar sob a mira de armas ou eram assassinados. Os padres da Comissão Pastoral da Terra, que defendiam os trabalhadores, eram ameaçados de morte. A Volkswagen vendeu a fazenda em 1986, um ano após o fim da ditadura militar no Brasil. O administrador da fazenda à época, procurado em 2022, contrariado, declarou, “Isso é um absurdo. Como se não houvesse nada mais importante hoje do que melhorar o passado.” Não vamos conseguir mitigar as feridas nem ressuscitar os mortos. Mas a questão não é melhorar o passado, mas passar o passado a limpo para melhorar o presente e o futuro.
O país, nos anos 1980, finalmente fechou a sua fronteira agrícola, só restando aberta a Bacia Amazônica em processo de desmatamento (facilitado com a transformação de todos os territórios da Amazônia Legal em estados, o Acre em 1962, Rondônia em 1982 e Roraima e Amapá em 1988).
Ailton Krenak, em 1987, de terno branco, num gesto heroico, pintou seu rosto de preto enquanto proferia o histórico discurso na Assembleia Constituinte em defesa do direito dos indígenas às suas terras.
Dois meses após a promulgação da Constituição de 1988, que estabeleceu a Reforma Agrária no país, membros da União Democrática Ruralista (UDR) mataram Chico Mendes, eterno defensor da Amazônia e dos povos da floresta, da reforma agrária, das reservas florestais, das populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, seringalistas e demais extrativistas dedicados à coleta não predatória. Os assassinos de Chico Mendes só foram penalizados em decorrência do testemunho de um “afilhado” de 13 anos de idade do mandante do crime.
Ordem e progresso
A partir da segunda metade do século XX, as elites do país, tal qual os donatários das sesmarias, se encarregaram de ocupar o Centro-Oeste e a Amazônia, expulsando as populações que obstaculizam o desenvolvimento econômico do país.
Entre todos os crimes contra os povos da floresta, desequilíbrios ecológicos e desastres ambientais em curso – invasão de reservas indígenas e extrativistas, desmatamento, garimpo, mineração, poluição do solo e das águas –, a recuperação e pavimentação da Rodovia BR-319 da ditadura militar, entre Manaus e Porto Velho, só não foi ainda implementada por falta de recursos. Durante a pandemia do coronavírus, o governador do estado do Amazonas se lamentou pela impossibilidade de vacinar os moradores da região da BR-319, como se a rodovia, caso recuperada, não fosse, por excelência, a porta principal de entrada do vírus e como se a exposição de seus habitantes aos ávidos forasteiros não fosse mais danosa do que o próprio vírus.
Embora a Reforma Agrária tenha sido estabelecida pela constituição de 1988, regulamentada em 1993, e apesar dos assentamentos promovidos pelo INCRA, grande parte da população rural segue sem acesso às extensas terras do Brasil. Sem chão e sem meios de vida, os trabalhadores rurais compõem uma reserva populacional (superpopulação relativa) que garante mão de obra barata no campo e o funcional êxodo rural que alimenta as cidades, pressiona os salários urbanos e perpetua a concentração da renda, a desigualdade social e a cultura do privilégio.
Sem constituir, concretamente, uma ameaça aos grandes agricultores, o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra já assentou 450 mil famílias e agrega hoje 90 mil famílias acampadas. O assentamento tem garantido emprego aos trabalhadores dedicados a uma agricultura responsável, ecológica e orgânica. Contribuindo para erradicar a pobreza e a desigualdade social, o movimento também desenvolve um projeto de educação do campo, com mais de 2000 escolas e 200 mil alunos, além da Escola Nacional Florestan Fernandes.
Ao propiciar terras para aqueles que precisam dela como meio de vida, a redistribuição e democratização do acesso à terra representa um contraponto ao grande capital empenhado no agronegócio, na medida em que, sem concentração, produz riqueza e não promove desmatamentos e poluição do meio ambiente, nem põe em risco o ecossistema e as populações indígenas.
*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de 1968, sonhos e pesadelos.