Agro quer tudo
Agronejo: como o sertanejo virou braço cultural do agro e foi usado pela direita
Ao incorporar o discurso do agronegócio, a música sertaneja reforça um novo imaginário rural: lucrativo, moderno e poderoso. Já o setor encontra no agronejo uma forma eficaz de comunicar que “o agro venceu”

Por Hélen Freitas*
Do Repórter Brasil
“EU, EU SOU ROCEIRO, com muito orgulho, do interior. Eu sou boiadeiro, sou puro sangue, do mato, eu sou. O amarelo é a soja, o verde é o pasto, o azul abençoa o branco das cabeça (sic) de gado”.
Lançada em setembro de 2022, a música “Hino agro”, inspirada no canto entoado nos jogos da seleção brasileira de futebol, virou hit poucos dias antes do primeiro turno das últimas eleições presidenciais. Quase três anos depois, a canção de Ana Castela, Léo & Raphael e Dj Chris já acumulou mais de 20 milhões de visualizações no Youtube e mais de 42 milhões de reproduções no Spotify.
A adaptação da versão original cantada nos estádios, no entanto, tem outro tipo de campo como cenário. Na letra e no clipe, o gramado das partidas de futebol é substituído por menções e imagens de gado, tratores, cavalos e picapes. A celebração da seleção canarinho dá lugar à exaltação ao agronegócio.
Batizado de “agronejo”, esse estilo musical une tradição sertaneja a elementos de pop, funk e eletrônico e tem como marcas o reforço da identidade rural e as referências explícitas – e não mais sutis – ao poder do agronegócio. Agora, o agro aparece como protagonista: forte, moderno e símbolo de um Brasil que busca cravar seu espaço como potência política e cultural.
O setor, por sua vez, encontra no agronejo uma forma eficaz de comunicar que “o agro venceu”, analisa o economista Rafael Zincone, pesquisador da Universidade Federal Fluminense. “[A mensagem é que] ganha-se dinheiro no campo, mas se ostenta também nas praias, nas capitais. É uma espécie de contraponto: antes, havia um imaginário da vergonha de ser caipira. Hoje, é o contrário. Eles mostram que têm orgulho, porque o campo agora é sinônimo de lucro e status”, explica.
O jornalista André Piunti, especialista em música sertaneja, avalia que o crescimento do gênero nos últimos anos passa diretamente por sua presença em rodeios e festas agropecuárias financiados pelo agronegócio nas últimas décadas. “Sem rodeios e festas, a música sertaneja não teria o tamanho que tem hoje. Tocar nesses eventos é fundamental para a carreira dos artistas”, afirma.
Segundo ele, tanto as produtoras musicais quanto o setor agropecuário entenderam que aquele espaço atende aos interesses de todos. “Funciona porque é todo mundo junto. É a cultura com a música, com as festas, com os shows, com as provas”.
Em entrevista à jornalista Marília Gabriela, em 2010, o cantor sertanejo Chitãozinho relembrou o momento em que o agronegócio passou a ocupar um lugar central no financiamento de shows e rodeios: “O agronegócio ajudou a gente, mas foi só na década de 1980, quando começaram a acontecer as grandes exposições de gado”, afirmou. “A música sertaneja ficou marcada como a música desse movimento rural do Brasil que deu e dá certo até hoje”.
O agronegócio ‘moderno’ e o investimento na autoimagem
O aprofundamento da conexão entre agronegócio e sertanejo começou a se consolidar a partir da virada dos anos 1990 para os anos 2000, quando um e outro viram seu poder e influência crescerem paulatinamente.
Impulsionado pelo boom das commodities no mercado global e pela crise cambial de 1999, assim como pelo processo gradual de desindustrialização da economia brasileira a partir da década de 1990, o agronegócio passou a ser considerado o pilar da política econômica e do comércio exterior do país.
Ao mesmo tempo, o agro buscava se consolidar como um setor coeso e politicamente influente, argumenta o antropólogo Caio Pompeia em seu artigo “‘O agro é tudo’: simulações no aparato de legitimação do agronegócio”.
O termo agronegócio, derivado do agribusiness, criado nos Estados Unidos nos anos 1950 com a intenção de abranger todo o sistema de produção de alimentos, ganha força no Brasil justamente nos anos 1990, impulsionado em grande parte pela Abag (Associação Brasileira do Agronegócio) e outras associações.
Aproveitando a conjuntura econômica favorável ao agronegócio, o setor passa a investir na construção de uma imagem moderna, de forma a afastar percepções negativas associadas a problemas históricos como trabalho análogo à escravidão, grilagem de terra e relação com a ditadura militar, analisa o cientista social Caique Carvalho, que estuda a relação entre o sertanejo e o agronegócio no Brasil. Na tentativa de se consolidar também como força cultural, encontrou na música sertaneja um “link identificativo”, define ele.
A consolidação dessa conexão acontece no mesmo momento em que o sertanejo começa a ganhar projeção nacional, tornando-se, ao longo dos anos seguintes, o gênero mais popular do Brasil. Segundo dados da Crowley Broadcast Analysis, empresa especializada no monitoramento de emissoras de rádio, em 2004 apenas três faixas sertanejas figuravam entre as dez mais tocadas. Vinte anos depois, o cenário se inverteu: em 2024, todas as músicas no Top 10 eram do gênero, que também dominou a lista das 100 mais tocadas, com 91 canções.
Paralelamente, estatísticas sobre a contribuição do agronegócio para o PIB (Produto Interno Bruto) e a geração de empregos tornaram-se instrumentos centrais de sua legitimação política. “Ao evidenciarem a participação do agribusiness (como noção) na economia nacional, muito superior à da agricultura tomada isoladamente, esses atores têm conseguido angariar credibilidade perante parte da opinião pública e, com isso, obter maior potencial de convencimento e pressão sobre o Estado”, afirma Pompeia em seu artigo.
Um agro mais jovem
No início da década de 2010, o agronegócio passou a expressar com mais clareza o desejo de reformular a própria imagem. Em uma carta política redigida em parceria com a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e a Abag, o setor declarava a intenção de promover uma “visão triunfalista dos agronegócios”.
Essa estratégia se materializou em campanhas publicitárias como a pouca lembrada “Movimento Sou Agro” e a bem-sucedida “Agro é Tech”, promovida e veiculada pelo Grupo Globo de Comunicação, e na associação com cantores sertanejos para divulgar carnes, insumos agrícolas e tratores, entre outros produtos agropecuários.
A pandemia intensificou essa aproximação: enquanto faziam shows em lives para milhões de pessoas, os artistas promoviam, ao mesmo tempo, os produtos de seus patrocinadores do setor.
Em um evento da Associação Nacional dos Distribuidores de Insumos Agrícolas e Veterinários em 2023, o presidente da ABMRA (Associação Brasileira de Marketing Rural e Agro), Ricardo Nicodemos, afirmou que o agronegócio dominava a comunicação “dentro de uma bolha”, com uma estrutura que incluía emissoras de TV, programas de rádio, revistas e portais especializados. No entanto, ele apontava que o desafio era romper essa bolha e alcançar as novas gerações.

A preocupação tem fundamento. Pesquisa realizada pela própria ABMRA em 2022 indicou que 30% dos brasileiros tinham uma visão desfavorável do setor. Entre eles, 51% eram jovens entre 15 e 29 anos. Para Nicodemos, essa rejeição é alimentada pelo distanciamento físico e simbólico do público urbano, além da ausência de uma narrativa mais próxima. “Sem contar sua história e sem se comunicar com a população urbana, o setor convive com mitos e vira refém de ataques de detratores daqui e do exterior”, afirma na carta de abertura do estudo.
É aí que entra o agronejo, uma vertente do sertanejo universitário que eleva a propaganda do campo a um novo patamar. Se nas canções de rodeio dos anos 1990 ou nas baladas dos anos 2000 o sucesso agropecuário aparecia de forma indireta, agora a mensagem é escancarada: o agronegócio é símbolo de poder, riqueza e identidade.
Na música “Tipo Yellowstone”, Léo e Raphael cantam: “Cabeça de gado, nóis tem mais de mil. Corre prova de laço em todo o Brasil. Sicredi ligando, tem crédito, viu? Nóis vive a série que você assistiu. Tipo Yellowstone, nóis tem camionete, tem fazenda e usa camisa da Tommy [Hilfiger]”.
Já em “Fazendinha Session”, a dupla Us Agroboy exalta a juventude rural como integrante da elite econômica: “Minha munheca já tá cansada de assinar carteira de trabalho, nóis dá trabalho no Paraná. E o agro, como é que tá? Não para, não para, não para, não para. Vinte e poucos anos, vinte e tantas ligações perdidas. A gerente da Sicredi querendo ser minha amiga. Quem é esse agroboy que tem mais de uma milha? É eu, é claro que é eu”. Raphael ainda emenda: “Não é à toa que PIB começa com P (pecuária), sertanejo começa com S, S de soja”.
Sem lugar para divergências
No fim dos anos 1980, ainda era comum o lançamento de músicas que criticavam o modelo agrícola dominante e defendiam a reforma agrária, como “Quero terra”, do cantor Dalvan, e “Grande esperança (reforma agrária)”, de Chico Rey & Paraná e Mary Terezinha.
Hoje, em uma cena sertaneja dominada pelo agronejo, no entanto, as canções não apenas celebram o agro que venceu, mas também ajudam a construir uma narrativa em que não há margem para críticas ao modelo de produção do agronegócio ou a seus aliados, como o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Historicamente, o gênero já esteve associado a diferentes projetos políticos ao longo do tempo, e sua trajetória acompanha tanto as mudanças sociais do país quanto as estratégias da indústria musical, dizem especialistas ouvidos pela reportagem. Segundo eles, a aproximação recente com o bolsonarismo e com setores da extrema direita deve ser entendida como parte de um processo de alinhamento a forças que compartilham afinidades econômicas, simbólicas e territoriais com o agronegócio.
Para o pesquisador Caique Carvalho, a inserção do gênero na indústria cultural mainstream limita a presença de temas como a reforma agrária ou as dificuldades da vida no campo, assuntos que batem de frente com os interesses do setor. “Quando a música sertaneja se transforma nesse mercado eloquente a partir desse processo de [maior] circulação, ela constrói um elo [com o agronegócio] que gera dependência e restringe a autonomia tanto da arte quanto do artista”, afirma.
Carvalho lembra o exemplo da cantora Marília Mendonça, morta em 2021 em um acidente aéreo. Ao aderir à campanha “#Elenão”, protesto que se opunha à candidatura de Bolsonaro à presidência em 2018, ela declarou, em um vídeo publicado nas redes sociais, que sua postura não era questão de opção política, mas sim de bom senso. “A gente não precisa desse retrocesso, eu sou uma mulher que batalhou bastante dentro do sertanejo para quebrar todo o preconceito de um mercado completamente machista.” Pouco depois, a artista apagou a postagem após ser alvo de xingamentos e ameaças à sua família.
Mesmo quem não é do gênero sofre represálias. Também dependente das estruturas geridas pelo agronegócio para fazer seus shows, João Gomes, cantor de piseiro, estilo derivado do forró, teve sua participação cancelada em um festival em Imperatriz (MA) após puxar coro contra o então presidente Bolsonaro em sua apresentação no Rock in Rio, em setembro de 2022.
Dirigentes do Sindicato Rural de Imperatriz, que administra o local do evento, publicaram um vídeo em que justificavam o cancelamento. “Nós negamos [o show] em virtude do comportamento dele de tratar mal a figura do nosso presidente Bolsonaro”. A apresentação foi realizada em outro local.
Para o historiador Gustavo Alonso, autor do livro “Cowboys do asfalto”, a ligação entre sertanejo, agronegócio e política, no entanto, não é uma simples manipulação de um pelo outro, mas sim um reflexo profundo das dinâmicas sociais, econômicas, culturais e políticas do Brasil.
Ele afirma que a música sertaneja, em sua natureza “antropofágica”, absorve e expressa essas transformações e contradições sociais. “Uma leitura puramente economicista que liga diretamente o agronegócio ao surgimento ou sucesso do sertanejo seria simplista.”
*Edição Igor Ojeda e Diego Junqueira