Avicultura Saudável
Produção agroecológica é alternativa a sistema cruel de produção de aves, causador de epidemias
Gripe aviária: o modelo industrial de avicultura é sustentado por práticas que ameaçam à vida dos animais e prejudicam a saúde humana; produção caipira agroecológica é a solução

Por Solange Engelmann
Da Página do MST
A gripe aviária novamente tem se manifestado em algumas partes do mundo e ronda o Brasil, mesmo após o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, anunciar na imprensa que não há motivos para alardes. Nessa semana, a imprensa também divulgou oito novos casos suspeitos em galinhas domésticas em quatro estados e mais quatro casos suspeitos em aves silvestres na Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Mas o que é a gripe aviária? Ela é causada principalmente pelo vírus H5N1, que afeta o sistema respiratório das aves e pode ser fatal para elas, mas não oferece risco ao consumo humano de carne ou ovos. Porém, a simples suspeita da doença tem sido suficiente para provocar embargos sanitários à carne e ovos de aves, por vários países que importam esses produtos do Brasil.
O agronegócio está sob estresse constante em relação ao assunto desde maio deste ano, quando foi confirmado o primeiro caso de gripe aviária em uma granja comercial, no Rio Grande do Sul. A grande imprensa fala em “toneladas de carne embargadas e perda de milhões de dólares nas exportações”, mas qual a razão para o aumento de epidemias como essa e da Covid-19 no mundo?
Sistemas de monocultivo e adensamento de animais geram novas epidemias
O engenheiro agrônomo e membro do setor de produção nacional do MST, Bruno Diogo, explica que umas das principais lições deixadas pela pandemia da Covid-19 é que a destruição dos ecossistemas e o modelo industrial de produção de alimentos tem gerado inúmeros desequilíbrios pandêmicos e provocado o surgimento de novas doenças.
“Os episódios recentes de casos de gripe aviária no Brasil só comprovam como estamos suscetíveis a futuros problemas, e infelizmente, em proporções maiores atingindo mais camponeses. As autoridades do Estado Brasileiro até podem minimizar o incidente. Contudo, o que se prevê é que mais recorrentemente teremos novos casos de doenças causadas pelo manejo intensivo e industrial de agricultura, que se tornou hegemônico. A necessidade de cada vez mais atingir escala de produção em menor tempo é o objetivo desse modelo de agricultura desequilibrado”, resume.
“Muito do que se produz nos produtos de origem animal é produto do sofrimento animal. Uma granja convencional de produção de ovos é uma coisa horrível. No caso da avicultura, esses vírus que são altamente transmissíveis causam alta mortalidade estão estreitamente relacionados ao sistema de produção, onde se tem animais melhorados que vêm sempre dos matrizeiros, que pertencem a mesma empresa, com baixa variabilidade genética”, analisa o engenheiro agrônomo e coordenador de equipe de Ater do convênio Mais Gestão, ligado à Cooperativa de Comercialização Camponesa Vale do Ivaí (Cocavi), André Lazzarin.

Pensando na saúde única, que se refere a uma abordagem integrada em que se reconhece a conexão entre a saúde humana, animal, vegetal e ambiental, apontando a necessidade de estarem todas em equilíbrio e saudáveis, a pesquisadora aposentada do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper) e médica veterinária homeopata, Marcia Neves Guelber Sales, pontua que o modelo produtivo industrial de avicultura possui graves problemas sociais e ambientais, gerando doenças e afetando a saúde do planeta, da humanidade e das aves que explora.
“O modelo industrial de avicultura é sustentado por práticas que são ameaças à vida: monoculturas que se implantam à custa da destruição de nossos biomas e ameaçam os meios de vida e a saúde dos povos originários e comunidades camponesas, com agrotóxicos, muitas vezes, derramados sobre a cabeça de crianças nas escolas. A exploração desumana das aves como fábricas de ovos ou carne, instaladas aos milhares em ambientes insalubres e monótonos, cujas práticas de alimentação com grãos obtidos de sementes transgênicas, cultivadas com agrotóxicos e uso recorrente de medicamentos para contenção de doenças infecciosas, impedem a expressão dos comportamentos naturais e comprometem o bem-estar animal.”

A pesquisadora também destaca que, a produção da avicultura com diversidade na agricultura familiar e camponesa, geralmente também é uma forma de garantir renda e o protagonismo feminino, pois grande parte da produção é feita por mulheres em quintais produtivos e outros espaços próximos das casas, mas que a legislação sanitária do país impõe uma série de restrições. “Embora sem estatísticas, cada vez mais as mulheres veem na implantação de sistemas de criação agroecológicos uma oportunidade para comercialização de ovos e frangos caipiras, fomentando uma economia própria e identitária, mas o cumprimento de exigências para comercialização em função destas normativas, funciona como mais uma barreira para aceder aos mercados institucionais”, afirma Marcia.

Outra problemática em relação a isso está no avanço de sistemas de integração para produção de aves, adotado por grandes empresas, que eliminam a autonomia dos agricultores familiares, impondo modelos de monocultivos e aprisionando o processo de produção e comercialização: “O modelo de integração entre as grandes empresas do ramo de produção (Sadia, Perdigão, PIF e PAF, entre outras), com os pequenos produtores de aves, induz e engessa a forma de produzir. São contratos onde as empresas fornecem todos os insumos, em troca da fidelidade da entrega dos produtos finais, obedecendo os modelos de produção vigentes, que orientam um adensamento de animais por metro quadrado, onde a proliferação de doenças, ou mesmo, a criação de resistências aos antibióticos podem produzir super microrganismos”, relata Bruno.
Produção em sistemas caipiras e orgânicos como solução
Nesse contexto, é importante pensar em como a gripe aviária pode afetar a produção de aves dos camponeses e agricultores familiares, nos territórios de Reforma Agrária e comunidades rurais, já que, de fato, são estes/as agricultores/as que produzem 70% dos alimentos que vão para a mesa dos brasileiros, incluindo carne e ovos de frango. A maior parte dessa produção resulta de sistemas de produção caipiras e orgânicas, com produtos mais saudáveis, majoritariamente, fornecidos para o mercado interno.
A pesquisadora Marcia Sales denuncia que o conjunto de medidas oficiais, determinadas pela legislação e protocolos brasileiros em relação ao controle e vigilância sanitária, pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), para a produção de alimentos de origem animal no país, principalmente de aves, vem afetando negativamente a criação de animais na agricultura familiar. Isso ocorre, segundo ela, “por não reconhecer a importância destes sistemas familiares como garantidores da segurança e soberania alimentar e também como portadores de soluções para o desenho de sistemas alimentares saudáveis. Essas exigências contribuem para desfigurar os sistemas tradicionais de criação, naturalmente inteligentes, ecológicos e autônomos, para transformá-los em uma cópia dos sistemas industriais.”
A zootecnista e mestre em Agroecologia, Lilian Faria, concorda com a pesquisadora. Lilian acompanha um projeto de produção de ovos da Cooperativa de Comercialização Camponesa Vale do Ivaí (Cocavi), no assentamento 8 de Abril, em Jardim Alegre, no norte do Paraná. Ela explica que, devido a posição do estado no mercado, desde o ano passado os produtores têm sido orientados em relação a gripe aviária. E como medidas preventivas, em março deste ano a portaria 782, publicada pelo MAPA estabelece, entre outras coisas, a suspensão de criação de aves ao ar livre, com acesso a piquetes sem telas na parte superior. O que piora as condições de bem-estar de aves criadas em sistemas caipiras, por exemplo.

“O sistema de produção dos produtores da Cocavi é de aves livre de gaiola, com acesso a piquetes de pastoreio, sem a tela na parte superior, então desde a publicação da portaria as aves estão presas sem acesso ao ar livre. Isso obviamente causa estresse nos animais que estão acostumados a sair para o ar livre”, enfatiza.
Experiência de ovos caipiras e orgânicos de Cooperativa da Reforma Agrária
Atualmente o projeto de ovos da Cocavi se encontra na primeira fase de implantação, com 17 famílias cooperadas produzindo em sistema caipira e caipira orgânicos. Por outro lado, outras 35 famílias já estão inscritas para iniciarem na segunda fase do projeto. O projeto prevê 400 aves por família, com renda mensal líquida de R$ 3.160,00.
Nesse momento, cada família ainda possui 200 aves, com uma produção média total de 255 dúzias de ovos por dia, volume que deve aumentar na segunda fase do projeto. Entre as famílias produtoras, Lilian destaca que oito famílias já conquistaram o certificado de produção orgânica, produzindo ovos caipiras orgânicos, enquanto outras nove famílias trabalham com a produção de ovos caipiras.

“Os sistemas são adotados permitindo que as aves expressem seu comportamento natural e não sofram com estresse, medo e desconforto, além de colaborar para que sejam mais saudáveis naturalmente. Os dois sistemas devem permitir que as galinhas poedeiras circulem com liberdade dentro dos galpões ou aviários. A utilização de gaiolas é proibida, então as galinhas são criadas livres em alojamentos onde podem manifestar comportamentos naturais como ciscar, tomar banhos de areia, bater as asas e botar ovos em ninhos”, relata Lilian.
Nos dois sistemas de produção e criação de galinhas poedeiras a preocupação é com a alimentação, o manejo e as formas de prover o bem-estar das aves. Porém, existem algumas diferenças em relação ao sistema caipira e orgânico de produção, em relação às exigências no manejo adotado para a produção de ovos, que precisam estar adequadas à legislação vigente, que regula as granjas de recria e postura com a adoção de cuidados mínimos de biosseguridade.
“Os galpões devem oferecer alimentação e água, bem como dispor de ninhos para a atividade de postura, protegidos do ambiente externo, o espaço precisa fornecer o mínimo de 6 horas contínuas de escuro e 8 horas contínuas de luz e a alimentação deve ser balanceada, bem como livre de antibióticos e de promotores de crescimento. Ambos os sistemas exigem que as aves tenham acesso a uma área externa na parte do dia e sejam recolhidas nos galpões à noite. Existe um cuidado com a densidade de aves dentro dos galpões e no caso de ovos orgânicos, a dieta além de ser balanceada, os ingredientes devem ser totalmente livres de agrotóxicos, produtos químicos ou insumos transgênicos,” resume.
A eminência de novos surtos da gripe aviária no mundo evidencia, portanto, a urgência na implantação de políticas públicas para a massificação da produção caipira e agroecológica na avicultura, por parte da agricultura familiar e camponesa. A alternativa pode ser fundamental para mitigar os efeitos de novas epidemias e da crise ambiental, além de possibilitar à população brasileira o direito de consumir alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos e de toxinas de medicamentos.


“Historicamente, a agricultura familiar vem nos ensinando como produzir a favor da natureza, sem destruir ou poluir, uma alimentação saudável e abundante proveniente de animais que co-evoluíram no ambiente em perfeita conexão com as famílias e a natureza. A avicultura industrial não trouxe comida farta e saudável para todos e agravou a crise ambiental. Resgatar a avicultura camponesa não significa voltar ao passado, mas aprender com ela para realizar uma transição a sistemas agroecológicos de criação de aves, que possam contribuir para as soluções que o momento exige, frente ao aumento da fome no mundo e às mudanças climáticas”, enfatiza Marcia.
Nesse sentido, a experiência de produção de ovos e aves em sistemas caipiras e caipiras orgânicos da Cocavi demonstra ser possível a criação de aves poedeiras em sistemas de produção com maior bem-estar e alinhadas às experiências do MST, em relação ao papel da agroecologia, para o avanço da Reforma Agrária Popular, projeta André Lazzarin.
Assim, quanto a importância da produção de avicultura em sistemas agroecológicos pela agricultura familiar e camponesa, em assentamentos de Reforma Agrária, Bruno, destaca a necessidade de avançar nessa produção, considerando que as proteínas de aves e ovos são fundamentais no debate da segurança alimentar e nutricional do Brasil.
“Existem várias experiências reconhecidas de produção agroecológica de carne e ovos, que levam em consideração o fornecimento e qualidade dos grãos fornecidos às aves, e o bem-estar desses animais que não são expostos a superlotações ou maus tratos. Já apresentamos ao MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar] um programa de produção de ovos agroecológicos. Uma política de fomento à organização dessa cadeia produtiva poderia contribuir no combate à fome com o aumento da oferta desse alimento e, consequentemente, a diminuição de seu preço, e no fortalecimento e incentivo ao manejo agroecológico. Infelizmente esse programa ainda não saiu do papel”, conclui Bruno.
*Editado por Fernanda Alcântara