Artigo
O MST e o combate ao memoricídio por meio das “místicas” e sua construção da memória

Por Felipe de Araújo Chersoni* e José Carlos Moreira da Silva Filho
Da Página do MST
Desde sua fundação em 1984, o MST tem sido uma fonte de resistência à concentração de terras e à violência do Estado brasileiro. Nascido em um contexto de redemocratização, o movimento herdou a luta histórica dos camponeses que, desde as Ligas Camponesas nos anos 1950 e 1960, enfrentaram perseguições, torturas e assassinatos durante a ditadura civil-militar. A violência contra os trabalhadores rurais não cessou com o fim do regime autoritário — pelo contrário, se reinventou sob novas formas, acompanhando a expansão do neoliberalismo e do agronegócio. O massacre de Eldorado dos Carajás em 1996, quando 21 trabalhadores sem-terra foram executados pela Polícia Militar do Pará, tornou-se símbolo dessa continuidade repressiva, demonstrando como o Estado segue atuando para proteger os interesses do capital através da violência institucionalizada.
Ao longo de quatro décadas de resistência, o MST transformou a dor histórica em potência de organização. Cada ocupação de terra improdutiva, cada marcha pelas estradas do país, cada ato de enfrentamento ao latifúndio constitui um exercício coletivo de memória viva — uma recusa radical ao esquecimento que os poderes econômicos e estatais tentam impor sobre os crimes cometidos contra os trabalhadores rurais. As místicas, manifestações culturais profundas que sintetizam a identidade do movimento, representam o núcleo pulsante dessa resistência. Nestes momentos de união e reflexão coletiva, o MST não apenas denuncia a violência do capital, mas celebra com alegria militante a vida comunitária, reverencia com orgulho revolucionário seus mártires e reafirma, na prática cotidiana, a legitimidade histórica da luta pela terra.
Enquanto as estruturas de poder insistem em apagar essa memória insurgente, as místicas — com seu poder pedagógico e mobilizador — mantêm a chama acesa, garantindo a perpetuação dessa história de lutas. Assim, alimentam a caminhada obstinada de milhares de famílias que seguem construindo, nas terras conquistadas, os alicerces de uma reforma agrária popular.
As místicas do MST, portanto, são a expressão viva da resistência camponesa, manifestações culturais profundas que unem arte, espiritualidade e política na luta pela terra. Mais do que rituais, essas práticas coletivas fortalecem os laços de identidade entre os Sem Terra, reafirmam os valores da reforma agrária popular e mantêm viva a memória dos que tombaram na caminhada. Em cada ocupação, em cada marcha, em cada encontro formativo, as místicas surgem como momentos sagrados de reflexão e fortalecimento coletivo — seja no gesto de erguer a bandeira do MST em um latifúndio ocupado, seja nas grandes encenações que contam a história da luta pela terra durante os congressos nacionais.
Essas manifestações culturais assumem um papel político fundamental no combate ao memoricídio — o apagamento sistemático das lutas populares promovido pelo Estado e pelas elites. Enquanto o exercício de poder dominante tenta esquecer os massacres e criminalizar os movimentos sociais, o MST transforma suas místicas em instrumentos de preservação da memória coletiva. Um desses exemplos marcantes são as místicas anuais em torno do massacre de Eldorado dos Carajás. Todos os anos, a “Curva do S” — local do massacre — se transforma em palco de emocionantes atos políticos onde os Sem Terra reencenam a violência sofrida e a luta pela terra naquele Estado, denunciam a impunidade e reafirmam que a luta continua. São as vozes de sobreviventes e seus familiares, que dão carne e sangue a essas memórias, transformando a dor em força de organização.
A potência política das místicas revela-se em sua capacidade singular de transmutar vivências em poderosas narrativas coletivas de resistência. Quando as vozes dos Sem Terra ecoam os versos de Zé Pinto, por exemplo — “Os companheiros que tombaram no caminho serão lembrados sempre pela estrada afora” — não se trata de mera rememoração, mas da construção ativa de uma pedagogia revolucionária que se perpetua entre gerações.
Essa memória militante se materializa cotidianamente nos espaços formativos do movimento: nas escolas dos assentamentos, nos centros de formação que forjam novas lideranças, nos acampamentos pedagógicos onde a juventude se reconhece como herdeira dessa tradição combativa. A prática de batizar assentamentos com nomes de mártires como Oziel Alves — criança de sete anos brutalmente torturada e executada no massacre de Eldorado dos Carajás — não é simbólica, mas uma geografia viva da resistência, onde cada nome gritado no presente ressignifica o passado e projeta o futuro da luta.
A criminologia crítica nos ajuda a compreender como a batalha pela memória constitui parte fundamental da resistência à violência de Estado. Desde a ditadura civil-militar, quando as Ligas Camponesas foram persegidas e seus líderes assassinados, até os dias atuais, com o aumento da criminalização dos movimentos populares e a atuação das agromilícias, o Estado policial brasileiro mantém uma continuidade repressiva que busca silenciar as vozes do campo. As místicas do MST surgem, então, como trincheiras socioculturais contra esse projeto repressivo, que também se articula por meio do esquecimento, garantindo que cada gota de sangue derramada na luta pela terra continue a irrigar as sementes da resistência. É um basta.
Por isso, quando os Sem Terra se reúnem em torno do fogo para compartilhar suas histórias, quando encenam nas místicas os dramas da expulsão da terra e da violência do latifúndio, estão fazendo muito mais que preservar o passado — estão construindo as ferramentas simbólicas para transformar o presente. Como dizia Dom Pedro Casaldáliga, bispo que dedicou sua vida à luta dos povos do Araguaia: “Malditas sejam todas as cercas que nos privam de viver e amar!” As místicas do MST são justamente essa recusa radical às cercas do esquecimento, essa afirmação jubilosa de que a memória dos lutadores e lutadoras do povo seguirá viva, alimentando as novas batalhas pela terra, pela dignidade e pela reforma agrária popular.
Este breve texto é uma síntese livre do artigo “O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil e o combate ao memoricídio por meio das ‘místicas’ e sua construção da memória”, publicado na Revista Crítica Penal y Poder. Para ler a versão completa, acesse: https://revistes.ub.edu/index.php/CriticaPenalPoder/article/view/49063/43831
*Doutorando em Ciências Criminais pela Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Mestre em Direito na Linha de Direitos Humanos pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD-UNESC). Advogado Popular.
** Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, na Escola de Direito e na Escola de Humanidades (Curso de Relações Internacionais) da PUCRS / Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq / Sócio-Fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD / Membro do Conselho Diretor da Coalizão Brasil por Verdade, Memória, Justiça ,Reparação e Democracia/ Vice-Presidente e Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2007/2016)/ Vice-Presidente e Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (2023 – ).
***Editado por Fernanda Alcântara