Meio Ambiente
Financeirização da natureza: o processo de cooptação do ar na região Nordeste
Entenda como a financeirização da natureza no Nordeste está a gerar conflitos e desafios, ameaçando a autonomia das comunidades e a sustentabilidade ambiental

Por Matheus Mendes*
Da Página do MST
Em todo o mundo, atravessamos uma crise do modelo de desenvolvimento capitalista. Sua dimensão ambiental tem um grande potencial destrutivo para a reprodução da vida na terra, ameaçando, principalmente, as populações e ecossistemas em situação mais precária. Esse modelo se baseia em megaprojetos destruidores da natureza, como a mineração, o agronegócio, a venda de madeira ilegal e o monocultivo de plantas para produção de energia (cana-de-açúcar e soja, entre outros), que ameaçam as pessoas que vivem nos territórios explorados, seja no campo ou nas cidades.
Nos últimos anos, o que está na mesa de negociação dos países do norte global é o processo de descarbonização do globo terrestre, e com esse debate, traz-se as energias renováveis (eólicas e solar) como sendo a saída para a crise ambiental.
São inúmeros os desafios relacionados à pauta da produção de energia enquanto vivemos uma crise ambiental, econômica e social. O Brasil tem quase 70% de sua matriz energética derivada de combustíveis fósseis, hidrelétrricas ou fontes renováveis. Ao mesmo tempo que temos um elevado nível de produção, existe uma forte dualidade com a desigualdade no acesso à mesma, com muitas comunidades enfrentando diversos desafios para ter acesso à energia.
O incentivo governamental à construção de parques eólicos no Brasil começou em 2001. À época, uma série de apagões país afora colocou em xeque o modelo energético fundado na geração hidrelétrica. O governo federal, então, lançou programas de incentivo à produção eólica e linhas de crédito com juros baixos. Mas o boom dos parques eólicos só viria depois da crise mundial de 2008, causada pelo esgotamento do mercado imobiliário nos Estados Unidos. De 2005 a 2017, tudo mudou. Com um aumento de impressionantes 43.910,3% na capacidade instalada de geração eólica, o Brasil atropelou até mesmo a China, que cresceu 14.839% no período, e se tornou o maior mercado do setor no Sul do mundo, de acordo com dados do Conselho Global de Energia Eólica, o GWEC.
A transição energética é uma das pautas de maior visibilidade no mundo na última década. E no cenário nacional, todos os olhos seguem voltados para os estados do Nordeste. Concebidos como espaços de luta e resistência, territórios ocupados pelos povos do campo, águas e florestas enfrentam novas tensões e conflitos. Trazidos por um inimigo com nova roupagem, através da expansão de empreendimentos de energias renováveis.
O Brasil encerrou 2024 com um crescimento de 10,8% da capacidade instalada de geração eólica em relação ao ano anterior. No final de dezembro último, eram 1.103 parques eólicos e 11.720 aerogeradores em operação, ultrapassando os 33 gigawatts (GW) de capacidade instalada. Os números fazem parte do Boletim Anual 2024 da Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (ABEEólica). A geração eólica é a segunda maior fonte da matriz elétrica brasileira, responsável por 16,1% de toda a capacidade instalada do país. O Nordeste é, de longe, a região com mais parques. São 930 ao todo – 610 em operação, 143 em construção e 177 com licença de instalação concedida.
O modelo capitalista neoliberal, na atual hegemonia do capital financeiro, cria novas e diferentes formas de transformar as contradições (do próprio sistema) em possibilidades de acúmulo de capital na dimensão ambiental. As formas clássicas de exploração dos bens da natureza dão espaço para as formas “verdes”, que se desenham sob a égide do “capitalismo verde”.
Assim, se exploram os bens comuns em detrimento de uma falsa solução para a descarbonização do planeta. Sendo esta uma prática econômica que visa inserir elementos da natureza no processo de financeirização, apresentando-se como um agravante para a crise climática.
Essa nova forma de exploração do capital sobre os bens da natureza, através da financeirização, possui um conjunto de mecanismos de mercado, como REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), PSA (Pagamento por Serviços Ambientais), TEBB (Economia dos Ecossistemas e Biodiversidade) e MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo). Eles têm por finalidade mercantilizar e privatizar os bens da natureza, precificando e negociando nas bolsas de valores. Possibilitando que as grandes corporações mundiais adquiram esses títulos para se desresponsabilizar dos crimes ambientais cometidos. Adquirindo o aval para continuar desmatando e destruindo a sociobiodiversidade, passando por cima do clima, de povos, comunidades tradicionais e seus bens tangíveis e intangíveis.
Na corrida pela transição energética, o Estado brasileiro abre uma fronteira no desenvolvimento sobre os bens comuns da natureza por meio do uso extensivo de terras agrícolas, permitindo a implantação de projetos energéticos em larga escala territorial. Desde então, entramos em um novo capítulo da questão agrária e fundiária no país, a partir do protagonismo dos empreendimentos de energia eólica e solar, principalmente na região Nordeste do país.
A territorialização feita pelas empresas de energia, em grande parte sob domínio do capital estrangeiro, traz consigo uma série de consequências além do desequilíbrio ambiental que ocorre nas áreas atingidas, alavancando um processo de apropriação dos territórios e despossessão das famílias camponesas. Desse modo, usando um falso discurso de desenvolvimento e sustentabilidade, as empresas utilizam-se de contratos de arrendamento ou cessão de uso de terra, acessando os territórios. As famílias ficam restritas à gestão de suas terras, em troca de receber da empresa, por tempo determinado, valores irrisórios, que colocam em risco a perda de direitos comopor exemplo, a aposentadoria.
A partir do potencial energético, a apropriação privada dos recursos naturais acarreta diferentes formas de exploração econômica das regiões. Problemas de saúde, fauna, flora, água, acesso à terra, concentração de renda, privatização do sol e do vento englobam um cenário de injustiça e racismo ambiental, contrariando o discurso positivo das renováveis. Agrotóxicos são utilizados para a raspagem do solo durante o processo de instalação de parques de energia eólica e solar. Com isso, há a degradação do solo e a contaminação dos recursos naturais. Assim, os assentados que reproduziam a vida em seus territórios já não podem mais. O avanço desenfreado desse modelo de exploração energética no campo gera também casos de transtornos mentais, insônia, problemas de pele, surdez, entre outras doenças nas populações atingidas. Existe uma interrupção das dinâmicas de vida, ameaçando a permanência das juventudes em seus territórios. E famílias que tanto lutaram para conquistar sua terra veem o êxodo como a única alternativa para encerrar o problema.
A questão energética cumpre um papel importante no Programa Agrário do MST, estando diretamente relacionada com a produção de alimentos e a reprodução dos modos de vida. Na Reforma Agrária Popular, o debate sobre as energias renováveis assume um papel crucial na luta pela terra. É necessário que a produção energética esteja de acordo com as necessidades do povo, na produção de alimentos, na garantia da saúde coletiva e na preservação do meio ambiente.
Um dos aspectos fundamentais na discussão sobre as energias renováveis nos territórios de reforma agrária é a busca pela autonomia energética: primeiro, para a produção e consumo de energia; segundo, para a geração de renda por meio da redução dos custos produtivos. Em contraponto ao modelo de exploração e expulsão das famílias, o movimento defende que a descentralização energética dialoga com o desenvolvimento coletivo, seja por meio de cooperativas ou associações, atendendo ao consumo das famílias, à produção agroindustrial e também aos espaços comunitários, como unidades de saúde, escolas e centros culturais.
Além de promover a autonomia energética, o sistema de produção descentralizado também fortalece as estratégias de produção de alimentos saudáveis. Focar no desenvolvimento social e na sustentabilidade ambiental está estreitamente ligado à prática agroecológica, englobando o cuidado com o solo, a água, a biodiversidade e as relações humanas, estabelecendo uma conexão verdadeira entre o homem e a natureza. Proteger os territórios de reforma agrária e defender uma política de autonomia dos povos é primordial.
*Coletivo do Plano Nacional Plantar Árvores Produzir Alimentos Saudáveis
**Editado por Fernanda Alcântara