Meio Ambiente

Nem privados nem públicos. Os bens são comuns

Confira entrevista com Gaël Giraud, publicada pelo portal italiano La Lettura

Foto: Porapak Apichodilok/Pexels

Por Marco Ventura
Do La Lettura / IHU

Parisiense, matemático, economista e jesuíta de 55 anos, Gaël Giraud publicou o livro Composer un monde en commun. Uma théologie politique de l’anthropocène (Seuil, 2022) há três anos para propor os “bens comuns” como alternativa à tendência, por ele denunciada, de uma privatização sem limites. O livro nasce da tese de doutorado defendida em 2020 nas Universidades dos Jesuítas de Paris. A primeira parte do texto será publicada na Itália em 9 de setembro, em coedição entre a Piemme e a Libreria Editrice Vaticana, sob o título “Costruire un mondo comune. E Dio non benedisse la proprietà privata” (Construir um mundo comum. E Deus não abençoou a propriedade privada, em tradução livre, com prefácio de Carlo Petrini, tradução de Pier Maria Mazzola). Um segundo volume, contendo o restante do livro francês, está previsto para 2026. O autor conversa online com “la Lettura” de Bruxelas, onde trabalha para a representação jesuíta junto às autoridades europeias e assessora o Padre Geral dos jesuíta em questões de justiça ambiental.

A entrevista é de Marco Ventura, publicada por la Lettura, 31-08-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Por que esse livro? Por que promover os bens comuns?

Há cerca de quarenta anos, o Ocidente se move, na política, na sociedade e na cultura, em direção a uma privatização cada vez maior do mundo. Há uma tendência a privatizar tudo o que pode ser privatizado: a propriedade intelectual, o fundo do oceano, a biodiversidade, o clima, a saúde. Ora, no debate clássico, a categoria oposta à da privatização é a coisa pública. A res publica do direito romano. Mas eu proponho outra categoria, a dos ‘comuns’.

Essa categoria também remonta ao direito romano.

Na Roma antiga, a res communis era o tipo de propriedade mais nobre, mais elevada, acima da res publica. Porque a res communis é aquilo que pertence a todos e pela qual todos somos responsáveis. Reabilitar os bens comuns, os ‘comuns’, é uma resposta política, social, mas também jurídica e, em última análise, espiritual à crise ecológica e à crise da própria democracia.

Os “comuns”, escreve o senhor, são os bens cujo destino devemos decidir juntos, em comum, precisamente.

Existe a propriedade privada: se possuo algo, tenho o direito de excluir qualquer outra pessoa de usá-lo. Além disso, há a propriedade pública, a do Estado. Depois, há a coisa comum da qual é proprietária uma comunidade. No livro, tento explicar que, para compreender as várias categorias, devemos levar em consideração o estatuto hermenêutico — isto é, a forma de interpretação — das regras que uma comunidade adota para gerir um recurso.

Em que sentido?

Se essas regras são submetidas à deliberação democrática, se podem ser questionadas por todos os membros da comunidade, então elas se tornam um ‘comum hermenêutico’. Minha tese é que é precisamente isso que caracteriza os bens comuns: são tais todos os recursos simbólicos, culturais, materiais e ecológicos que queremos gerir em conjunto por meio de regras que são, elas próprias, submetidas à deliberação. Os bens comuns estão, portanto, vinculados a um estatuto de ’comum hermenêutico’, no qual pode ser identificado o próprio fundamento da democracia.

De onde vem essa reflexão?

Comecei pelo estudo da matemática e da economia. Trabalhei como consultor de bancos, especialista em mercados financeiros. Antes de me tornar jesuíta. Mas o projeto de ser jesuíta é antigo. Tenho mantido as duas dimensões unidas há muito tempo. Ser padre e jesuíta significa interessar-se por todo o ser humano, por toda a humanidade, por toda a criação. E hoje a economia assumiu um lugar muito importante. Não posso, como padre e como jesuíta, deixar de me interessar também pelas questões econômicas.

A interpretação da Bíblia é fundamental em seu livro. O senhor se concentra em particular na Ascensão de Jesus ressuscitado ao céu.

No Novo Testamento, encontramos um duplo relato da Ascensão. No final do Evangelho de Lucas e no início dos Atos dos Apóstolos, dos quais Lucas também é o autor. É surpreendente que, apesar dessa insistência, o episódio tenha sido pouco comentado pelos Padres da Igreja e pelos teólogos. Para mim, porém, parece absolutamente fundamental para nós hoje, e tentei oferecer uma interpretação.

Qual?

No início dos Atos, os apóstolos perguntam ao Cristo ressuscitado se ele agora restabelecerá o Reino de Davi. Deve-se lembrar que o programa messiânico na Palestina daquela época era expulsar os romanos e restabelecer o Reino de Davi, o Reino de Israel. Cristo limita-se a dizer: ‘Não vos compete saber os tempos ou as épocas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade, mas recebereis o poder’, o Espírito Santo, e tendo dito isso, desaparece no céu. Ele, portanto, deixa vazio o trono de Davi.

Como interpreta o episódio?

Uma primeira interpretação diz: Cristo foi sentar-se no trono do Pai e cumpriu sua missão, a redenção do gênero humano. Portanto, em certo sentido, fechou a história. A história está terminada. Eu chamo essa interpretação de ‘gloriosa’ porque vê a Ascensão como uma apoteose. No entanto, levanta um problema teológico: se a história que nos separa daquele evento não interessa mais, se tudo já foi cumprido, por que nos enviar o Espírito Santo?”

O senhor prefere uma segunda interpretação.

Cristo recusou-se a sentar-se no trono de Davi para deixá-lo vazio. Na Europa Oriental, mas também em muitas igrejas na Itália, existe uma iconografia que retrata o trono do juízo vazio. Isso indica que Cristo ainda não se sentou no trono em que sentará no fim dos tempos. Isso dá uma profundidade histórica ao tempo em que estamos agora. Proponho, então, pensar que Cristo se recusa a sentar-se no trono de Davi para nos dar tempo de inventar aquelas figuras do vínculo social, aquelas figuras políticas, que se sentam no trono de Davi no lugar de Cristo.

A responsabilidade do governo recai sobre nós.

É a definição de santidade mencionada no livro do Apocalipse, quando diz que aqueles que passaram no teste da santidade irão sentar-se no trono do Pai juntamente com Cristo. O poder absoluto de Deus Pai é compartilhado; Deus quer compartilhar seu poder conosco, mas precisamos aprender a fazê-lo. Mas, em vez disso, não queremos. Em vez disso, eu quero sentar-me naquele trono, mas sozinho. Sem Cristo, sem a Cruz. Portanto, o tempo em que nos encontramos, que é o tempo do Espírito, é um tempo de preparação, de aprendizado, no qual aprendemos, pouco a pouco, a consentir nos sentarmos no trono do Pai com Cristo.

Como vincula essa interpretação com a questão dos “comuns”?

A conexão reside nas diversas figuras do vínculo social que podemos imaginar para ocupar aquele trono de Davi que Jesus deixou vazio. E aqui retornamos às diferentes categorias. À res privata, à res publica, à res communis. E a categoria por excelência do cristianismo, creio eu, é a dos bens comuns.

Por quê?

Nos Atos dos Apóstolos, Lucas descreve a Igreja primitiva nestes termos: ‘colocavam tudo em comum’, ‘compartilhavam tudo’. Esse aprendizado de compartilhar é, em última análise, o aprendizado do compartilhamento do poder com Deus. E é também o aprendizado da democracia, das regras da convivência que nos damos, mas que também são submetidas à deliberação. Forçando um pouco a questão, eu diria que a Ascensão é o ato fundador cristão da democracia.

Após examinar as Escrituras, sua investigação se direciona para os teólogos.

São Tomás diz claramente que a propriedade mais nobre é a res communis. Mas não é fácil para os humanos: é preciso discutir, chegar a acordos. Então, se concede a propriedade privada, no entanto, precisamente por ser concessão, não é de direito natural. A res communis é de direito natural. Enquanto a propriedade privada é de direito positivo.

Em 1891, a “Rerum novarum” de Leão XIII parece, em vez disso, abençoar a propriedade privada.

A encíclica Rerum novarum é como um tecido com dois tipos de fios. Um fio vem de Tomás de Aquino, que celebra a res communis e apresenta a propriedade privada como uma concessão à finitude da natureza humana. O outro fio vem de John Locke, que proclama a propriedade privada como um direito inalienável e sagrado. A Rerum novarum é uma espécie de compromisso que une as duas visões. Com esse compromisso, continuamos a viver na Igreja.

Pode fornecer um esclarecimento?

Tento argumentar que o Papa Francisco, mesmo sem o dizer explicitamente, tentou promover novamente os ‘comuns’ nos grandes textos como Laudato si’, Fratelli tutti, Laudate Deum e Querida Amazônia. Como podemos imaginar que a Amazônia se torne um ‘comum’ global? Como podemos garantir que a água se torne um ‘comum’? Estamos avançando na Igreja, mas também fora dela, na promoção dos ‘comuns’. Não para substituir a propriedade privada, certamente não para aboli-la, mas para dar aos ‘comuns’ aquele lugar que nos permita resolver os grandes problemas de hoje.

Confia, portanto, no legado do Papa Francisco.

O Papa Francisco iniciou em grande parte o trabalho não apenas nos grandes textos que mencionei, mas também no Sínodo sobre a sinodalidade. A sinodalidade, em última análise, reintroduz o ‘comum hermenêutico’ em nossa Igreja. Deixa as grandes decisões que devemos tomar para a deliberação comum dentro da Igreja.

E Leão XIV?

Desde sua primeira aparição na sacada, Leão XIV mencionou a sinodalidade. Acredito, portanto, que continuará nessa direção. Onde podemos esperar uma inovação de sua parte é no direito canônico. Ao contrário do Papa Francisco, o Papa Leão é um canonista. Ele pode empreender, creio que já começou, uma revisão do direito canônico para que se abra à sinodalidade e se torne um ‘comum hermenêutico’, enquanto, em vez disso, como apresento no livro, o direito canônico atual ainda é o herdeiro da reforma gregoriana, portanto da Igreja como res publica, como Estado.

Em 1925, exatamente cem anos atrás, Pio XI instituiu a festa de Cristo Rei.

A festa de Cristo Rei é a festa de um Deus cristão que quer compartilhar seu poder.

O senhor critica a absolutização pós-liberal do privado, mas também a absolutização pós-democrática do público.

Vamos olhar novamente para os Atos dos Apóstolos. No capítulo 5, há a história de Ananias e Safira, um casal rico que não deu tudo à comunidade. Bem, eles caem imediatamente mortos. Depois, no capítulo 12, encontramos o Rei Herodes que se senta no trono – ele sim, ao contrário de Jesus – e se faz aclamar como se fosse Deus. Ele também é imediatamente morto. A Igreja primitiva nos alerta. A absolutização da propriedade privada é muito grave, mas a absolutização da propriedade pública também o é.

Tem certeza de que sua “teologia política” não é um convite ao comunismo?

O comunismo é a absorção da sociedade como um todo na esfera pública. Tudo se torna público. É Herodes. É o totalitarismo. Os bens comuns são uma terceira via. Não é o Estado que é proprietário. O comunismo não tem nada a ver. As comunidades de energia que visitei na Itália não são comunismo. São comunidades da sociedade civil que reúnem determinados recursos. O verdadeiro ator da res communis é a sociedade civil, não o Estado. Qualquer um que me criticasse por apoiar um cristianismo criptocomunista não estaria entendendo justamente a questão. O que proponho é uma terceira via: nem tudo privado, nem tudo público, mas a sociedade civil na linha de frente para a invenção dos ‘comuns’.

Em seu cristianismo dos “comuns”, não há o risco de perder a transcendência?

A sinodalidade não vale apenas para a Igreja. Vale também para a democracia. A transcendência está presente quando sentimos a necessidade, para chegar a um acordo, de uma referência que, embora não se chame Deus, nos supera a todos e é comum a todos.