Meio Ambiente

Ambiente para negócios

Mercados de carbono não podem evitar a catástrofe climática

Joseca Yanomami – Sobre a viagem de Davi Kopenawa aos Estados Unidos (2011). Acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP)

Por Pedro Paulo Zahluth Bastos
Do Phenomenal World

Desde a celebração do Protocolo de Kyoto, em 1997, a ideia de comprar e vender direitos de emitir carbono—o chamado mercado de carbono—é a principal aposta da ONU para combater a crise climática. Impulsionados em 2005, quando um número suficiente de países ratificou o protocolo, os mercados de carbono estiveram no centro do Acordo de Paris em 2015 e da COP 29, realizada no ano de 2024 em Baku, no Azerbaijão.

Em Baku, o projeto de administrar um mercado global de carbono—impulsionado pelos países ricos—foi finalmente alcançado. Com ele, as metas de redução de emissões de carbono que os países ricos se comprometem a alcançar podem ser obtidas não pela redução de suas próprias emissões, mas pela compra dos resultados de projetos de redução de emissões realizados em locais onde os custos de mitigação são mais baixos, normalmente países mais pobres e que emitem menos.

A discussão sobre os mercados de carbono nos distrai, no entanto, do que realmente funciona no combate à crise climática: o planejamento público voltado a tornar os sistemas energéticos, produtivos e de infraestrutura independentes de combustíveis fósseis. Como a descarbonização desses sistemas implica a tomada de decisões de investimentos com impactos futuros interdependentes que não podem se refletir nos preços de mercado no presente, esses preços não são capazes de orientar e encadear as decisões de investimento necessárias. Por isso, a estratégia que promove alterações marginais no sistema de preços relativos vigente—nas formas de elevação do preço das emissões de carbono e de redução dos preços das alternativas sustentáveis—para induzir decisões descoordenadas não vem conseguindo alcançar a descarbonização na velocidade e profundidade necessárias em escala global.

O clima vai ao mercado

Os mercados de carbono fazem parte da estratégia de mitigação favorita da governança climática global há décadas: a precificação do carbono para cobrança do custo social das emissões.1. Essa solução parte do diagnóstico (contestado) de que as emissões desenfreadas seriam uma falha de mercado.

Em geral, uma falha de mercado ocorre quando uma transação mercantil gera benefícios ou danos econômicos colaterais sobre partes não envolvidas, fazendo com que esse efeito colateral não seja capturado pelo preço do bem ou serviço negociado—o preço, segundo essa hipótese, dependeria apenas da oferta e da demanda dos atores envolvidos em cada mercado. Uma vez que não são internalizados nos preços e, portanto, não resultam em receitas ou custos para o agente gerador, benefícios e danos colaterais são chamados de externalidades positivas e negativas. Havendo externalidade positiva (negativa), a contribuição social é maior (menor) do que a receita obtida pelo agente privado que oferta o bem ou serviço. Isso seria uma falha de mercado se supusermos que o mercado é normalmente um mecanismo que maximiza a contribuição social dos agentes privados, ou seja, que iguala a contribuição social e privada de cada ofertante de bem ou serviço através da variação dos preços para equilibrar oferta e demanda.2 Se a explicação do problema é limitada ao fato de que os preços de mercado não repassam aos ofertantes a informação exata sobre sua contribuição social, a solução é trazer (ou internalizar, no jargão econômico) as externalidades para os preços, corrigindo a falha. 

Para corrigir essa falha, segundo a lógica dos mercados de carbono, basta precificar o custo social do carbono e cobrá-lo: se as emissões custarem tanto quanto os danos econômicos que causam, seu preço será igual ao custo social do carbono, cuja cobrança igualará a contribuição social e privada do agente econômico poluidor. Uma vez calculado, o custo social do carbono, antes “externo” às atividades econômicas dos agentes ofertantes, poderia ser cobrado de cada um deles. O encarecimento das emissões levaria os agentes econômicos a reverem padrões de produção e consumo para reduzi-las. Como resultado, o consumo e o investimento privados seriam direcionados gradualmente para atividades e produtos de baixo carbono, limitando ou até mesmo revertendo o aquecimento global e melhorando o bem-estar social.

A precificação e cobrança do custo social do carbono podem ser colocadas em prática tanto pelo governo (por meio de impostos) quanto pela iniciativa privada. Todas as formas de precificação e internalização dos custos sociais do carbono, voluntárias ou compulsórias, acarretam custos às empresas envolvidas, tanto para monitorar e relatar suas emissões como para mitigá-las. Como resultado, elas procuram maneiras de reduzir ou compensar suas emissões ao menor custo possível. A redução das emissões envolve investimentos ditos verdes (como ganhos de eficiência energética e tecnologias limpas). A compensação, por sua vez, abrange projetos de mitigação, incluindo projetos de conservação ambiental, ou a participação em mercados de carbono, regulados ou voluntários. Nos mercados regulados, uma unidade política (região, país, estado) estabelece um teto geral de gases de efeito estufa e distribui cotas, permissões ou licenças de emissão para determinados agentes econômicos que podem usá-las ou, se conseguirem emitir menos, vender seus excedentes. Nos mercados voluntários, estabelece-se uma linha de base de emissões para cada tipo de projeto econômico, premiando empresas capazes de emitir menos com créditos de carbono que elas podem vender para empresas que emitem mais.

Se a compensação for mais barata, viável e rápida do que o investimento verde, há fortes incentivos para que as empresas compensem suas emissões “externamente” em vez de mudar tecnologias para reduzi-las “internamente”. O pecado original da compensação como forma de pagamento do custo social do carbono é que, no fim das contas, esse mecanismo contribui para postergar investimentos verdes.

O argumento favorável aos mercados de carbono é que eles seriam a estratégia mais rápida e custo-efetiva de combate às emissões: mais fácil de implementar do que estratégias regulatórias restritivas ou punitivas, mais barata para a sociedade—por mobilizar recursos do setor privado—e mais ágil em produzir resultados de mitigação—por oferecer oportunidades de lucro favoráveis a empresas e setores que desenvolvam soluções de baixo carbono.

Seja por impostos ou pelos mercados, a cobrança do custo social do carbono depende da elevação periódica de seu preço para que os agentes sejam incentivados a continuar reduzindo emissões, mesmo depois de já terem se ajustado a elevações de preços anteriores. Na prática, no entanto, a elevação de preços—quando ocorre—é bastante gradual e instável (e, portanto, reversível por prazos imprevisíveis), tanto porque a instabilidade de preços é uma característica dos mercados financeiros que transacionam cotas ou créditos,3 quanto em razão de eficazes pressões políticas corporativas para subordinar o ritmo de degradação ecológica e de aquecimento climático à viabilidade econômica das empresas poluidoras, cobrando impostos baixos e oferecendo muitas licenças.4 Para tentar conciliar a acumulação de capital e a solução gradual da emergência climática, os defensores dos mercados de carbono alegam que os preços cobrados pelas emissões não devem ser nem muito altos nem muito baixos, e devem progredir em um ritmo compatível com os prazos nos quais os países se comprometeram a atingir suas metas climáticas. Níveis de preço muito baixos podem desestimular os agentes a emitir menos, mantendo ou até mesmo elevando a trajetória de emissões da economia. Níveis de preço muito altos, por outro lado, podem afetar desproporcionalmente tanto os consumidores finais, a quem parte dos custos de mitigação é repassada, quanto os setores exportadores, que competem com bens e serviços produzidos em geografias que não necessariamente adotam as mesmas restrições de emissão.

Há claras evidências da falha dos mercados e dos impostos sobre carbono em atribuir às emissões preços compatíveis com as metas de mitigação climática previstas no Acordo de Paris. Em 2017, a Comissão de Alto Nível sobre Precificação de Carbono do Banco Mundial calculou que o preço por tonelada de emissões entre 2020 e 2030 precisaria ser de USD 50-100 (USD 63-127, em valores de 2024) para manter o aquecimento global bem abaixo de 2°C. Em 2024, porém, apenas sete mecanismos de precificação de carbono no mundo inteiro—que, somados, cobriam menos de 1% das emissões globais—atingiam esse preço mínimo. Além disso, os preços de todos os 75 mecanismos de precificação do carbono em vigor5 ficaram abaixo do limite mínimo estabelecido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Em 2015, o IPCC estimou que, para limitar o aquecimento global a 1,5°C, a tonelada de emissões deveria custar USD 170-290 (USD 226-385, em 2024). O imposto sobre o carbono do Uruguai foi o que chegou mais próximo dessa cifra, precificando a emissão de uma tonelada de gases de efeito estufa em USD 167,17. No extremo oposto, porém, o mercado de carbono da Indonésia cobrava apenas USD 0,61 pela mesma tonelada.

A competição internacional para redução de custos é uma característica sistêmica que cria um problema de coordenação para ações coletivas e inviabiliza a formação de um único preço internacional para o carbono (e ainda mais um preço único crescente), problema que não será superado pelo mercado global de carbono aprovado em Baku. A divergência internacional de preços de carbono é suficiente para inviabilizar um sistema eficaz de redução de emissões globais porque induz a realização de operações de arbitragem que buscam menores custos ao invés de maior eficiência no uso do carbono.6

A conta não fecha

A hipótese que justifica a cobrança do custo social do carbono é que seu encarecimento levaria os agentes econômicos a substituir tecnologias intensivas em emissões de carbono por tecnologias verdes. Em termos técnicos, a suposição é que a elasticidade-preço da demanda por tecnologias “sujas” é alta, ou seja, essa demanda tende a cair mais do que proporcionalmente à elevação de seu preço.

O problema é que a hipótese de fácil substituição de tecnologias não se verifica para o mercado de energia. Ao contrário, vários estudos empíricos comprovam que a elasticidade-preço da demanda por tecnologias “sujas” é extremamente baixa. Um estudo que analisa cinco setores para um painel de 39 países da OCDE entre 1990 e 2016, estimando um “preço do carbono ponderado pelas emissões”, demonstra que a introdução da precificação do carbono reduziu o crescimento das emissões de CO2 em apenas 0,6% a 1,5%, em média, em relação às emissões contrafactuais (caso a precificação não ocorresse). Isso se verifica justamente porque a elasticidade-preço da demanda é muito baixa: há uma redução de 0,06% no crescimento das emissões por elevação média de USD 1/tCO2.7 Para alcançar uma redução média projetada de 50% até 2030 (em relação a 2020), em conformidade com o Acordo de Paris, seria necessário um preço de carbono global ponderado por emissões em toda a economia global superior a USD 175/tCO2, valor muito distante dos preços atuais e inviável politicamente por conta dos efeitos inflacionários e da resistência de grupos de interesse.8

Na prática, a inelasticidade-preço da demanda significa que, mesmo que os preços se elevem, usuários de tecnologias sujas e combustíveis fósseis continuam os demandando, ainda que fiquem mais pobres, porque não encontram substitutos factíveis: não há tecnologias e infraestruturas substitutivas facilmente acessíveis, muito menos com custos comparáveis às alternativas fósseis. A estratégia de transição para energias renováveis não pode, portanto, começar com a elevação de preços do carbono, esperando que o mercado ofereça uma solução alternativa a curto prazo. Deve passar, sim, pelo planejamento governamental da oferta de novas tecnologias verdes e infraestruturas substitutas baseadas em energia sustentável. Somente depois que essas tecnologias e infraestruturas estejam acessíveis, a elevação do preço do carbono pode induzir a substituição rápida. Antes disso, consumidores e empresas usuárias são reféns das opções sujas. Uma vez que a rota principal de descarbonização na maior parte dos países passa pela eletrificação de sistemas e pela conversão de energias sustentáveis em fonte principal de eletricidade, os governos não devem confiar no poder mágico do sistema de preços para ofertar redes alternativas do nada. Ao contrário, devem contribuir para a criação de tecnologias e infraestruturas sustentáveis para eletrificação e, depois, criar incentivos de preço para acelerar a transição energética para a rede sustentável.

Um problema central que impede a rápida descarbonização através da ampliação dos investimentos é a baixa lucratividade observada e esperada das empresas de energia renovável. Enquanto a rentabilidade anual da energia verde oscila, em média, entre 6% e 8%, os bancos privados procuram financiar projetos com rentabilidade superior a 10%, cifra normalmente alcançada por corporações produtoras de combustíveis fósseis. O motivo fundamental da rentabilidade pouco atraente tem a ver com a estrutura do mercado de eletricidade, crescentemente separado em mercados de geração, transmissão e distribuição. Enquanto as empresas de petróleo e gás operam em mercados oligopolizados, protegidos pela OPEP e com um conjunto significativo de investimentos já amortizados, as barreiras à entrada na produção de renováveis são muito pequenas, uma vez que os bens de capital necessários estão disponíveis no mercado internacional. Logo, booms curtos de investimento descoordenado são sucedidos por períodos longos de superprodução, preços e taxas de lucro baixos.9

Em vista da competição acirrada, os geradores de energia renovável não têm poder de mercado para impor preços e elevar margens de lucro perante as corporações que dominam a infraestrutura de transmissão, sendo forçados a transferir a redução de custos para os preços, preservando baixas taxas de lucro. Para piorar, a situação da estrutura de mercado, a produção de renováveis (solar e eólica) é mais abundante quando a demanda por energia é menor, o que tende a limitar ainda mais os preços: enquanto a oferta é maior em momentos de iluminação natural durante o dia e nas estações quentes, a demanda é maior em estações frias e momentos escuros do dia imediatamente antes e depois da jornada de trabalho. Como o custo de estocagem da energia renovável é elevado, as empresas precisam despachar a energia quando é gerada, tomando preços desfavoráveis.10 Ademais, a geração renovável é muito intensiva em terra, o que leva os produtores a procurar áreas onde a terra é mais barata—em geral, distantes tanto das redes de transmissão existentes quanto das áreas mais densamente povoadas onde se concentra a demanda. 

Tudo isso limita a constituição de redes alternativas às fósseis através de mecanismos de mercado, atrasando a descarbonização e reduzindo a elasticidade-preço da demanda por combustíveis sujos. E a inércia estrutural não se limita ao sistema elétrico. Os combustíveis fósseis se integram a um sistema sociotecnológico com enormes interdependências que articulam sistemas energéticos, produtivos, científicos, educacionais, infraestruturais e políticos que resultam em externalidades positivas que “trancam” os usuários na rede existente e, se não inviabilizam, dificultam enormemente que a transição para um sistema alternativo seja feita por meio de sinais de preços.

Escassez de florestas

Em virtude da enorme lucratividade e enraizamento econômico e político dos sistemas energético, produtivo e de infraestrutura baseados em combustíveis fósseis, as corporações produtoras e comercializadoras desses combustíveis resistem à transição sistêmica, enquanto empresas e consumidores usuários não têm alternativas no preço e na escala necessários para induzi-los à descarbonização. Desde o ano do Protocolo de Kyoto (1997) até 2024, o consumo de combustíveis fósseis aumentou 58% (pouco menos da metade do crescimento acumulado do PIB mundial, cerca de 120%).

Como resultado, os ganhos de eficiência energética e uso de tecnologias limpas vêm apenas reduzindo marginalmente a participação de combustíveis fósseis na matriz energética mundial. No ano do Protocolo de Kyoto, a participação dos combustíveis fósseis na matriz energética mundial era de 85,8%, caindo apenas para 81% em 2024.

Em vista desse fracasso, a escala necessária para que os projetos de compensação dos mercados de carbono—através de conservação ambiental, regeneração de florestas ou reflorestamento—assegurem emissões líquidas zero é absolutamente inviável. A compensação não pode funcionar como alternativa para a descarbonização dos sistemas energéticos, produtivos e de infraestrutura simplesmente porque não há terra suficiente para replantar florestas.

A Shell, quarta maior empresa de petróleo e gás por capitalização de mercado do mundo,11 anunciou um projeto de compensação das suas emissões através da compra de créditos de carbono mediante proteção de florestas e reflorestamento que exigiria, entre 2020 e 2030, um território três vezes maior que o dos Países Baixos, onde fica a sede da empresa.12 A própria Shell alegou que seria necessário reflorestar 700 milhões de hectares—um território equivalente ao do Brasil—até o final do século para evitar aquecimento superior a 1,5 ºC, em conjunto com várias outras iniciativas de mitigação (como transição para energia sustentável e restauração florestal). Mesmo crendo que as demais iniciativas sejam exitosas, a estimativa da Shell para o impacto do reflorestamento é bastante irrealista: supõe uma taxa anual de sequestro de 17 toneladas de carbono por hectare, cifra próxima à alcançada durante o crescimento de florestas tropicais nativas e biodiversas.13 Uma vez que a maior parte das oportunidades de reflorestamento está em áreas de florestas temperadas no Hemisfério Norte,14 não há espaço para replantar florestas tropicais nessa escala. Nesse caso, a taxa anual de sequestro de carbono pode cair pela metade (num cenário otimista) ou até menos de um terço da estimativa da Shell (num cenário realista), o que tornaria necessário reflorestar talvez mais do que três Brasis—supondo o sucesso das demais iniciativas de mitigação imaginadas pela empresa.

Mesmo considerando as estimativas de estudos entusiastas da opção pelo reflorestamento e restauração de florestas nativas, a compensação florestal não pode funcionar como alternativa para a descarbonização dos sistemas energéticos, produtivos e de infraestrutura. Segundo Bastin et al.,15 dada a degradação de solos que já abrigaram florestas e os usos concorrentes da terra, seria possível reflorestar no máximo 0,9 bilhão de hectares no mundo inteiro. Em seus cálculos, tal área absorveria 205 bilhões de toneladas de carbono nas décadas necessárias até que as florestas atingissem a maturidade. O problema é que o efeito de décadas de reflorestamento equivale a apenas cinco anos de emissões no ritmo anual atual. Ou seja, o sistema sociotecnológico assentado na emissão de carbono esgotaria em pouco tempo todo o potencial existente de compensação de emissões mediante reflorestamento e restauração florestal.16 Ademais, sem restrições no nível de emissões, a cobertura florestal pode ser reduzida em 223 milhões de hectares em 2050 em razão do impacto do aquecimento global nas florestas tropicais, mesmo que se desconsidere o desmatamento associado ao avanço da fronteira da agropecuária, da mineração e da urbanização—principais responsáveis pela redução de 178 milhões de hectares de florestas no mundo entre 1990 e 2020.17

Tal impacto do aquecimento global nas florestas tropicais significa que a busca de compensações (net zero) através de reflorestamento não é apenas uma alternativa inviável à descarbonização, mas autodestrutiva, caso sirva como uma cortina de fumaça para permitir que empresas lucrem mais tempo no negócio de energias sujas enquanto aparentam compensar suas emissões. Mesmo que as florestas que abrigam projetos específicos de “compensação” não desapareçam em cem anos (levando consigo os projetos que autorizaram emissões), há uma disparidade de duração que inviabiliza uma verdadeira compensação: os projetos de mitigação florestal têm um prazo relativamente curto (no máximo cem anos), mas 40% do gás carbônico emitido permanece na atmosfera por mais de um século—entre 20% e 35% das emissões permanecem de dois a vinte milênios.18

Ainda, a compensação mediante investimentos no “capital natural” é comumente criticada pela dificuldade de verificação técnica da “adicionalidade”—a contribuição efetiva—dos projetos de mitigação florestal. Todos os tipos de compensação florestal contêm riscos, mas eles são menores quando os projetos envolvem “emissões negativas”, associadas à restauração ou ao reflorestamento, e maiores quando incluem apenas “emissões evitadas”, tendo por base de referência uma trajetória contrafactual de emissões que supostamente se verificaria sem o projeto.19

Na prática, inúmeros projetos foram vendidos sem a devida comprovação de sua contribuição efetiva para a conservação de florestas, e outros tantos não conservaram as florestas que prometiam conservar por problemas de administração ou mesmo de fraude. Em 2016, um estudo financiado pela Diretoria Geral da Comissão Europeia para Ação Climática concluiu que 85% dos projetos de mitigação florestal tinham probabilidade baixa de reduções de emissões “adicionais” (não superestimadas), contra apenas 2% com alta probabilidade.20 Em 2023, um estudo do jornal The Guardian e da Corporate Accountability analisou os 50 principais projetos de compensação de emissões no mundo, concluindo que 78% eram inúteis, 16% eram problemáticos, 6% não tinham informações transparentes para permitir julgamento, e nenhum demonstrava contribuição efetiva inequívoca. Além disso, demonstrando ou não a “adicionalidade”, o reflorestamento frequentemente envolve monoculturas florestais que prejudicam a segurança alimentar de comunidades tradicionais voltadas à agricultura familiar e à agroecologia, considerando que as terras voltadas à agroindústria são muito mais caras e, em geral, protegidas legalmente.

Investimento público compensa mais

Entre as corporações campeãs de emissões, muitas financiaram campanhas políticas e ideológicas voltadas a desacreditar a existência e subestimar os riscos do aquecimento global, assim como para desabonar as políticas públicas voltadas a reverter ou proibir emissões e planejar estratégias de investimento, coordenar decisões e alocar recursos direta ou indiretamente em busca de mudança estrutural. Se isso é um sintoma de sistemas políticos nacionais injustos, em que o poder econômico desinforma e manipula a opinião pública e as decisões governamentais e legislativas, a injustiça internacional é ainda maior. Afinal, a imensa maioria das 90 instituições responsáveis por 63% das emissões de gases de efeito estufa entre 1751 e 2010,21 assim como das 57 responsáveis por 80% das emissões entre 2016 e 2022,22 são corporações globais que têm sede em regiões temperadas menos impactadas pelo aquecimento global—embora também comandem empresas filiais e subcontratadas que produzem com custos salariais e ambientais menores nas áreas do Sul global, que serão mais prejudicadas pelos impactos das mudanças climáticas.

Essas corporações se apropriaram e abusaram de um bem comum mundial: a capacidade de absorção de gases de efeito estufa da atmosfera, dos solos e dos oceanos. Algumas delas pretendem continuar se apropriando sem limite—a ponto de destinarem USD 445 milhões ao financiamento de campanhas eleitorais em 2024 nos Estados Unidos para eleger Donald Trump e outros políticos favoráveis a energias sujas. Outras concordam em “compensar” suas emissões futuras—mas não as passadas—mediante projetos de mitigação que têm uma escala minúscula diante das emissões totais e cuja contribuição efetiva, quando existente, é muito menor que a propalada, ainda mais se considerarmos a escala temporal multissecular em que os gases de efeito estufa, em especial o gás carbônico, permanecem impactando atmosfera e os oceanos. De um modo ou de outro, ambos os grupos prolongam a duração de um sistema sociotecnológico que lhes assegura lucros extraordinários enquanto acumula catástrofes climáticas cada vez maiores.

Isso não quer dizer que a elevação do preço do carbono e os projetos de compensação florestal de emissões devam ser descartados. Depois que um sistema elétrico alternativo for constituído, a elevação do preço do carbono poderá finalmente contribuir para acelerar a substituição sistêmica.23 Desde que subordinados a uma estrutura de “comando e controle” de florestas tropicais, alguns projetos de compensação florestal de emissões podem ser autorizados, caso não estejam exclusivamente sob a fiscalização das certificadoras privadas dos mercados voluntários de carbono e especialmente se apoiarem a bioeconomia da sociobiodiversidade.24 O que se deve descartar é a ideia, dominante na grande imprensa mundial e até mesmo na ONU, de que a cobrança do custo social do carbono e sua “compensação” possam substituir o planejamento público da transição sociotecnológica.

*Esse ensaio é uma adaptação da Nota n. 12 do projeto Transforma, grupo de pesquisa sediado no Instituto de Economia da Unicamp.


Desde a celebração do Protocolo de Kyoto, em 1997, a ideia de comprar e vender direitos de emitir carbono—o chamado mercado de carbono—é a principal aposta da ONU para combater a crise climática. Impulsionados em 2005, quando um número suficiente de países ratificou o protocolo, os mercados de carbono estiveram no centro do Acordo de Paris em 2015 e da COP 29, realizada no ano de 2024 em Baku, no Azerbaijão.

Em Baku, o projeto de administrar um mercado global de carbono—impulsionado pelos países ricos—foi finalmente alcançado. Com ele, as metas de redução de emissões de carbono que os países ricos se comprometem a alcançar podem ser obtidas não pela redução de suas próprias emissões, mas pela compra dos resultados de projetos de redução de emissões realizados em locais onde os custos de mitigação são mais baixos, normalmente países mais pobres e que emitem menos.

A discussão sobre os mercados de carbono nos distrai, no entanto, do que realmente funciona no combate à crise climática: o planejamento público voltado a tornar os sistemas energéticos, produtivos e de infraestrutura independentes de combustíveis fósseis. Como a descarbonização desses sistemas implica a tomada de decisões de investimentos com impactos futuros interdependentes que não podem se refletir nos preços de mercado no presente, esses preços não são capazes de orientar e encadear as decisões de investimento necessárias. Por isso, a estratégia que promove alterações marginais no sistema de preços relativos vigente—nas formas de elevação do preço das emissões de carbono e de redução dos preços das alternativas sustentáveis—para induzir decisões descoordenadas não vem conseguindo alcançar a descarbonização na velocidade e profundidade necessárias em escala global.

O clima vai ao mercado

Os mercados de carbono fazem parte da estratégia de mitigação favorita da governança climática global há décadas: a precificação do carbono para cobrança do custo social das emissões.1. Essa solução parte do diagnóstico (contestado) de que as emissões desenfreadas seriam uma falha de mercado.

Em geral, uma falha de mercado ocorre quando uma transação mercantil gera benefícios ou danos econômicos colaterais sobre partes não envolvidas, fazendo com que esse efeito colateral não seja capturado pelo preço do bem ou serviço negociado—o preço, segundo essa hipótese, dependeria apenas da oferta e da demanda dos atores envolvidos em cada mercado. Uma vez que não são internalizados nos preços e, portanto, não resultam em receitas ou custos para o agente gerador, benefícios e danos colaterais são chamados de externalidades positivas e negativas. Havendo externalidade positiva (negativa), a contribuição social é maior (menor) do que a receita obtida pelo agente privado que oferta o bem ou serviço. Isso seria uma falha de mercado se supusermos que o mercado é normalmente um mecanismo que maximiza a contribuição social dos agentes privados, ou seja, que iguala a contribuição social e privada de cada ofertante de bem ou serviço através da variação dos preços para equilibrar oferta e demanda.2 Se a explicação do problema é limitada ao fato de que os preços de mercado não repassam aos ofertantes a informação exata sobre sua contribuição social, a solução é trazer (ou internalizar, no jargão econômico) as externalidades para os preços, corrigindo a falha. 

Para corrigir essa falha, segundo a lógica dos mercados de carbono, basta precificar o custo social do carbono e cobrá-lo: se as emissões custarem tanto quanto os danos econômicos que causam, seu preço será igual ao custo social do carbono, cuja cobrança igualará a contribuição social e privada do agente econômico poluidor. Uma vez calculado, o custo social do carbono, antes “externo” às atividades econômicas dos agentes ofertantes, poderia ser cobrado de cada um deles. O encarecimento das emissões levaria os agentes econômicos a reverem padrões de produção e consumo para reduzi-las. Como resultado, o consumo e o investimento privados seriam direcionados gradualmente para atividades e produtos de baixo carbono, limitando ou até mesmo revertendo o aquecimento global e melhorando o bem-estar social.

A precificação e cobrança do custo social do carbono podem ser colocadas em prática tanto pelo governo (por meio de impostos) quanto pela iniciativa privada. Todas as formas de precificação e internalização dos custos sociais do carbono, voluntárias ou compulsórias, acarretam custos às empresas envolvidas, tanto para monitorar e relatar suas emissões como para mitigá-las. Como resultado, elas procuram maneiras de reduzir ou compensar suas emissões ao menor custo possível. A redução das emissões envolve investimentos ditos verdes (como ganhos de eficiência energética e tecnologias limpas). A compensação, por sua vez, abrange projetos de mitigação, incluindo projetos de conservação ambiental, ou a participação em mercados de carbono, regulados ou voluntários. Nos mercados regulados, uma unidade política (região, país, estado) estabelece um teto geral de gases de efeito estufa e distribui cotas, permissões ou licenças de emissão para determinados agentes econômicos que podem usá-las ou, se conseguirem emitir menos, vender seus excedentes. Nos mercados voluntários, estabelece-se uma linha de base de emissões para cada tipo de projeto econômico, premiando empresas capazes de emitir menos com créditos de carbono que elas podem vender para empresas que emitem mais.

Se a compensação for mais barata, viável e rápida do que o investimento verde, há fortes incentivos para que as empresas compensem suas emissões “externamente” em vez de mudar tecnologias para reduzi-las “internamente”. O pecado original da compensação como forma de pagamento do custo social do carbono é que, no fim das contas, esse mecanismo contribui para postergar investimentos verdes.

O argumento favorável aos mercados de carbono é que eles seriam a estratégia mais rápida e custo-efetiva de combate às emissões: mais fácil de implementar do que estratégias regulatórias restritivas ou punitivas, mais barata para a sociedade—por mobilizar recursos do setor privado—e mais ágil em produzir resultados de mitigação—por oferecer oportunidades de lucro favoráveis a empresas e setores que desenvolvam soluções de baixo carbono.

Seja por impostos ou pelos mercados, a cobrança do custo social do carbono depende da elevação periódica de seu preço para que os agentes sejam incentivados a continuar reduzindo emissões, mesmo depois de já terem se ajustado a elevações de preços anteriores. Na prática, no entanto, a elevação de preços—quando ocorre—é bastante gradual e instável (e, portanto, reversível por prazos imprevisíveis), tanto porque a instabilidade de preços é uma característica dos mercados financeiros que transacionam cotas ou créditos,3 quanto em razão de eficazes pressões políticas corporativas para subordinar o ritmo de degradação ecológica e de aquecimento climático à viabilidade econômica das empresas poluidoras, cobrando impostos baixos e oferecendo muitas licenças.4 Para tentar conciliar a acumulação de capital e a solução gradual da emergência climática, os defensores dos mercados de carbono alegam que os preços cobrados pelas emissões não devem ser nem muito altos nem muito baixos, e devem progredir em um ritmo compatível com os prazos nos quais os países se comprometeram a atingir suas metas climáticas. Níveis de preço muito baixos podem desestimular os agentes a emitir menos, mantendo ou até mesmo elevando a trajetória de emissões da economia. Níveis de preço muito altos, por outro lado, podem afetar desproporcionalmente tanto os consumidores finais, a quem parte dos custos de mitigação é repassada, quanto os setores exportadores, que competem com bens e serviços produzidos em geografias que não necessariamente adotam as mesmas restrições de emissão.

Há claras evidências da falha dos mercados e dos impostos sobre carbono em atribuir às emissões preços compatíveis com as metas de mitigação climática previstas no Acordo de Paris. Em 2017, a Comissão de Alto Nível sobre Precificação de Carbono do Banco Mundial calculou que o preço por tonelada de emissões entre 2020 e 2030 precisaria ser de USD 50-100 (USD 63-127, em valores de 2024) para manter o aquecimento global bem abaixo de 2°C. Em 2024, porém, apenas sete mecanismos de precificação de carbono no mundo inteiro—que, somados, cobriam menos de 1% das emissões globais—atingiam esse preço mínimo. Além disso, os preços de todos os 75 mecanismos de precificação do carbono em vigor5 ficaram abaixo do limite mínimo estabelecido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Em 2015, o IPCC estimou que, para limitar o aquecimento global a 1,5°C, a tonelada de emissões deveria custar USD 170-290 (USD 226-385, em 2024). O imposto sobre o carbono do Uruguai foi o que chegou mais próximo dessa cifra, precificando a emissão de uma tonelada de gases de efeito estufa em USD 167,17. No extremo oposto, porém, o mercado de carbono da Indonésia cobrava apenas USD 0,61 pela mesma tonelada.

A competição internacional para redução de custos é uma característica sistêmica que cria um problema de coordenação para ações coletivas e inviabiliza a formação de um único preço internacional para o carbono (e ainda mais um preço único crescente), problema que não será superado pelo mercado global de carbono aprovado em Baku. A divergência internacional de preços de carbono é suficiente para inviabilizar um sistema eficaz de redução de emissões globais porque induz a realização de operações de arbitragem que buscam menores custos ao invés de maior eficiência no uso do carbono.6

A conta não fecha

A hipótese que justifica a cobrança do custo social do carbono é que seu encarecimento levaria os agentes econômicos a substituir tecnologias intensivas em emissões de carbono por tecnologias verdes. Em termos técnicos, a suposição é que a elasticidade-preço da demanda por tecnologias “sujas” é alta, ou seja, essa demanda tende a cair mais do que proporcionalmente à elevação de seu preço.

O problema é que a hipótese de fácil substituição de tecnologias não se verifica para o mercado de energia. Ao contrário, vários estudos empíricos comprovam que a elasticidade-preço da demanda por tecnologias “sujas” é extremamente baixa. Um estudo que analisa cinco setores para um painel de 39 países da OCDE entre 1990 e 2016, estimando um “preço do carbono ponderado pelas emissões”, demonstra que a introdução da precificação do carbono reduziu o crescimento das emissões de CO2 em apenas 0,6% a 1,5%, em média, em relação às emissões contrafactuais (caso a precificação não ocorresse). Isso se verifica justamente porque a elasticidade-preço da demanda é muito baixa: há uma redução de 0,06% no crescimento das emissões por elevação média de USD 1/tCO2.7 Para alcançar uma redução média projetada de 50% até 2030 (em relação a 2020), em conformidade com o Acordo de Paris, seria necessário um preço de carbono global ponderado por emissões em toda a economia global superior a USD 175/tCO2, valor muito distante dos preços atuais e inviável politicamente por conta dos efeitos inflacionários e da resistência de grupos de interesse.8

Na prática, a inelasticidade-preço da demanda significa que, mesmo que os preços se elevem, usuários de tecnologias sujas e combustíveis fósseis continuam os demandando, ainda que fiquem mais pobres, porque não encontram substitutos factíveis: não há tecnologias e infraestruturas substitutivas facilmente acessíveis, muito menos com custos comparáveis às alternativas fósseis. A estratégia de transição para energias renováveis não pode, portanto, começar com a elevação de preços do carbono, esperando que o mercado ofereça uma solução alternativa a curto prazo. Deve passar, sim, pelo planejamento governamental da oferta de novas tecnologias verdes e infraestruturas substitutas baseadas em energia sustentável. Somente depois que essas tecnologias e infraestruturas estejam acessíveis, a elevação do preço do carbono pode induzir a substituição rápida. Antes disso, consumidores e empresas usuárias são reféns das opções sujas. Uma vez que a rota principal de descarbonização na maior parte dos países passa pela eletrificação de sistemas e pela conversão de energias sustentáveis em fonte principal de eletricidade, os governos não devem confiar no poder mágico do sistema de preços para ofertar redes alternativas do nada. Ao contrário, devem contribuir para a criação de tecnologias e infraestruturas sustentáveis para eletrificação e, depois, criar incentivos de preço para acelerar a transição energética para a rede sustentável.

Um problema central que impede a rápida descarbonização através da ampliação dos investimentos é a baixa lucratividade observada e esperada das empresas de energia renovável. Enquanto a rentabilidade anual da energia verde oscila, em média, entre 6% e 8%, os bancos privados procuram financiar projetos com rentabilidade superior a 10%, cifra normalmente alcançada por corporações produtoras de combustíveis fósseis. O motivo fundamental da rentabilidade pouco atraente tem a ver com a estrutura do mercado de eletricidade, crescentemente separado em mercados de geração, transmissão e distribuição. Enquanto as empresas de petróleo e gás operam em mercados oligopolizados, protegidos pela OPEP e com um conjunto significativo de investimentos já amortizados, as barreiras à entrada na produção de renováveis são muito pequenas, uma vez que os bens de capital necessários estão disponíveis no mercado internacional. Logo, booms curtos de investimento descoordenado são sucedidos por períodos longos de superprodução, preços e taxas de lucro baixos.9

Em vista da competição acirrada, os geradores de energia renovável não têm poder de mercado para impor preços e elevar margens de lucro perante as corporações que dominam a infraestrutura de transmissão, sendo forçados a transferir a redução de custos para os preços, preservando baixas taxas de lucro. Para piorar, a situação da estrutura de mercado, a produção de renováveis (solar e eólica) é mais abundante quando a demanda por energia é menor, o que tende a limitar ainda mais os preços: enquanto a oferta é maior em momentos de iluminação natural durante o dia e nas estações quentes, a demanda é maior em estações frias e momentos escuros do dia imediatamente antes e depois da jornada de trabalho. Como o custo de estocagem da energia renovável é elevado, as empresas precisam despachar a energia quando é gerada, tomando preços desfavoráveis.10 Ademais, a geração renovável é muito intensiva em terra, o que leva os produtores a procurar áreas onde a terra é mais barata—em geral, distantes tanto das redes de transmissão existentes quanto das áreas mais densamente povoadas onde se concentra a demanda. 

Tudo isso limita a constituição de redes alternativas às fósseis através de mecanismos de mercado, atrasando a descarbonização e reduzindo a elasticidade-preço da demanda por combustíveis sujos. E a inércia estrutural não se limita ao sistema elétrico. Os combustíveis fósseis se integram a um sistema sociotecnológico com enormes interdependências que articulam sistemas energéticos, produtivos, científicos, educacionais, infraestruturais e políticos que resultam em externalidades positivas que “trancam” os usuários na rede existente e, se não inviabilizam, dificultam enormemente que a transição para um sistema alternativo seja feita por meio de sinais de preços.

Escassez de florestas

Em virtude da enorme lucratividade e enraizamento econômico e político dos sistemas energético, produtivo e de infraestrutura baseados em combustíveis fósseis, as corporações produtoras e comercializadoras desses combustíveis resistem à transição sistêmica, enquanto empresas e consumidores usuários não têm alternativas no preço e na escala necessários para induzi-los à descarbonização. Desde o ano do Protocolo de Kyoto (1997) até 2024, o consumo de combustíveis fósseis aumentou 58% (pouco menos da metade do crescimento acumulado do PIB mundial, cerca de 120%).

Como resultado, os ganhos de eficiência energética e uso de tecnologias limpas vêm apenas reduzindo marginalmente a participação de combustíveis fósseis na matriz energética mundial. No ano do Protocolo de Kyoto, a participação dos combustíveis fósseis na matriz energética mundial era de 85,8%, caindo apenas para 81% em 2024.

Em vista desse fracasso, a escala necessária para que os projetos de compensação dos mercados de carbono—através de conservação ambiental, regeneração de florestas ou reflorestamento—assegurem emissões líquidas zero é absolutamente inviável. A compensação não pode funcionar como alternativa para a descarbonização dos sistemas energéticos, produtivos e de infraestrutura simplesmente porque não há terra suficiente para replantar florestas.

A Shell, quarta maior empresa de petróleo e gás por capitalização de mercado do mundo,11 anunciou um projeto de compensação das suas emissões através da compra de créditos de carbono mediante proteção de florestas e reflorestamento que exigiria, entre 2020 e 2030, um território três vezes maior que o dos Países Baixos, onde fica a sede da empresa.12 A própria Shell alegou que seria necessário reflorestar 700 milhões de hectares—um território equivalente ao do Brasil—até o final do século para evitar aquecimento superior a 1,5 ºC, em conjunto com várias outras iniciativas de mitigação (como transição para energia sustentável e restauração florestal). Mesmo crendo que as demais iniciativas sejam exitosas, a estimativa da Shell para o impacto do reflorestamento é bastante irrealista: supõe uma taxa anual de sequestro de 17 toneladas de carbono por hectare, cifra próxima à alcançada durante o crescimento de florestas tropicais nativas e biodiversas.13 Uma vez que a maior parte das oportunidades de reflorestamento está em áreas de florestas temperadas no Hemisfério Norte,14 não há espaço para replantar florestas tropicais nessa escala. Nesse caso, a taxa anual de sequestro de carbono pode cair pela metade (num cenário otimista) ou até menos de um terço da estimativa da Shell (num cenário realista), o que tornaria necessário reflorestar talvez mais do que três Brasis—supondo o sucesso das demais iniciativas de mitigação imaginadas pela empresa.

Mesmo considerando as estimativas de estudos entusiastas da opção pelo reflorestamento e restauração de florestas nativas, a compensação florestal não pode funcionar como alternativa para a descarbonização dos sistemas energéticos, produtivos e de infraestrutura. Segundo Bastin et al.,15 dada a degradação de solos que já abrigaram florestas e os usos concorrentes da terra, seria possível reflorestar no máximo 0,9 bilhão de hectares no mundo inteiro. Em seus cálculos, tal área absorveria 205 bilhões de toneladas de carbono nas décadas necessárias até que as florestas atingissem a maturidade. O problema é que o efeito de décadas de reflorestamento equivale a apenas cinco anos de emissões no ritmo anual atual. Ou seja, o sistema sociotecnológico assentado na emissão de carbono esgotaria em pouco tempo todo o potencial existente de compensação de emissões mediante reflorestamento e restauração florestal.16 Ademais, sem restrições no nível de emissões, a cobertura florestal pode ser reduzida em 223 milhões de hectares em 2050 em razão do impacto do aquecimento global nas florestas tropicais, mesmo que se desconsidere o desmatamento associado ao avanço da fronteira da agropecuária, da mineração e da urbanização—principais responsáveis pela redução de 178 milhões de hectares de florestas no mundo entre 1990 e 2020.17

Tal impacto do aquecimento global nas florestas tropicais significa que a busca de compensações (net zero) através de reflorestamento não é apenas uma alternativa inviável à descarbonização, mas autodestrutiva, caso sirva como uma cortina de fumaça para permitir que empresas lucrem mais tempo no negócio de energias sujas enquanto aparentam compensar suas emissões. Mesmo que as florestas que abrigam projetos específicos de “compensação” não desapareçam em cem anos (levando consigo os projetos que autorizaram emissões), há uma disparidade de duração que inviabiliza uma verdadeira compensação: os projetos de mitigação florestal têm um prazo relativamente curto (no máximo cem anos), mas 40% do gás carbônico emitido permanece na atmosfera por mais de um século—entre 20% e 35% das emissões permanecem de dois a vinte milênios.18

Ainda, a compensação mediante investimentos no “capital natural” é comumente criticada pela dificuldade de verificação técnica da “adicionalidade”—a contribuição efetiva—dos projetos de mitigação florestal. Todos os tipos de compensação florestal contêm riscos, mas eles são menores quando os projetos envolvem “emissões negativas”, associadas à restauração ou ao reflorestamento, e maiores quando incluem apenas “emissões evitadas”, tendo por base de referência uma trajetória contrafactual de emissões que supostamente se verificaria sem o projeto.19

Na prática, inúmeros projetos foram vendidos sem a devida comprovação de sua contribuição efetiva para a conservação de florestas, e outros tantos não conservaram as florestas que prometiam conservar por problemas de administração ou mesmo de fraude. Em 2016, um estudo financiado pela Diretoria Geral da Comissão Europeia para Ação Climática concluiu que 85% dos projetos de mitigação florestal tinham probabilidade baixa de reduções de emissões “adicionais” (não superestimadas), contra apenas 2% com alta probabilidade.20 Em 2023, um estudo do jornal The Guardian e da Corporate Accountability analisou os 50 principais projetos de compensação de emissões no mundo, concluindo que 78% eram inúteis, 16% eram problemáticos, 6% não tinham informações transparentes para permitir julgamento, e nenhum demonstrava contribuição efetiva inequívoca. Além disso, demonstrando ou não a “adicionalidade”, o reflorestamento frequentemente envolve monoculturas florestais que prejudicam a segurança alimentar de comunidades tradicionais voltadas à agricultura familiar e à agroecologia, considerando que as terras voltadas à agroindústria são muito mais caras e, em geral, protegidas legalmente.

Investimento público compensa mais

Entre as corporações campeãs de emissões, muitas financiaram campanhas políticas e ideológicas voltadas a desacreditar a existência e subestimar os riscos do aquecimento global, assim como para desabonar as políticas públicas voltadas a reverter ou proibir emissões e planejar estratégias de investimento, coordenar decisões e alocar recursos direta ou indiretamente em busca de mudança estrutural. Se isso é um sintoma de sistemas políticos nacionais injustos, em que o poder econômico desinforma e manipula a opinião pública e as decisões governamentais e legislativas, a injustiça internacional é ainda maior. Afinal, a imensa maioria das 90 instituições responsáveis por 63% das emissões de gases de efeito estufa entre 1751 e 2010,21 assim como das 57 responsáveis por 80% das emissões entre 2016 e 2022,22 são corporações globais que têm sede em regiões temperadas menos impactadas pelo aquecimento global—embora também comandem empresas filiais e subcontratadas que produzem com custos salariais e ambientais menores nas áreas do Sul global, que serão mais prejudicadas pelos impactos das mudanças climáticas.

Essas corporações se apropriaram e abusaram de um bem comum mundial: a capacidade de absorção de gases de efeito estufa da atmosfera, dos solos e dos oceanos. Algumas delas pretendem continuar se apropriando sem limite—a ponto de destinarem USD 445 milhões ao financiamento de campanhas eleitorais em 2024 nos Estados Unidos para eleger Donald Trump e outros políticos favoráveis a energias sujas. Outras concordam em “compensar” suas emissões futuras—mas não as passadas—mediante projetos de mitigação que têm uma escala minúscula diante das emissões totais e cuja contribuição efetiva, quando existente, é muito menor que a propalada, ainda mais se considerarmos a escala temporal multissecular em que os gases de efeito estufa, em especial o gás carbônico, permanecem impactando atmosfera e os oceanos. De um modo ou de outro, ambos os grupos prolongam a duração de um sistema sociotecnológico que lhes assegura lucros extraordinários enquanto acumula catástrofes climáticas cada vez maiores.

Isso não quer dizer que a elevação do preço do carbono e os projetos de compensação florestal de emissões devam ser descartados. Depois que um sistema elétrico alternativo for constituído, a elevação do preço do carbono poderá finalmente contribuir para acelerar a substituição sistêmica.23 Desde que subordinados a uma estrutura de “comando e controle” de florestas tropicais, alguns projetos de compensação florestal de emissões podem ser autorizados, caso não estejam exclusivamente sob a fiscalização das certificadoras privadas dos mercados voluntários de carbono e especialmente se apoiarem a bioeconomia da sociobiodiversidade.24 O que se deve descartar é a ideia, dominante na grande imprensa mundial e até mesmo na ONU, de que a cobrança do custo social do carbono e sua “compensação” possam substituir o planejamento público da transição sociotecnológica.

Esse ensaio é uma adaptação da Nota n. 12 do projeto Transforma, grupo de pesquisa sediado no Instituto de Economia da Unicamp.

Notas de Rodapé

1. Nos referimos a “carbono”, e não ao conjunto de gases de efeito estufa, por facilidade de exposição. A rigor, porém, a expressão “carbono” aqui diz respeito ao gás carbônico equivalente (CO2e), uma métrica empregada para comparar e poder padronizar a contribuição dos diferentes tipos de emissão para o aquecimento global. Nela, cada gás de efeito estufa é equiparado ao principal deles, o gás carbônico (CO2), em função de seu potencial de aquecimento global (GWP, na sigla em inglês). (Back)

2. Na escola neoclássica de economia, isso é chamado de “ótimo de Pareto”. Ver: Hill, R., & Myatt, T. (2022). The Microeconomics Anti-Textbook: A Critical Thinker’s Guide (2nd ed.). London: Zed Books. (Back)

3. Hache, F. (2019, May). 50 Shades of Green Part II: The Fallacy of Environmental Markets. Green Finance Observatory, Policy Report. http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3547414(Back)

4. Luke, T.W. (2006). The system of sustainable degradation. Capitalism Nature Socialism17(1), 99-112. (Back)

5. World Bank (2024). State and Trends of Carbon Pricing 2024. Washington, DC: World Bank. http://hdl.handle.net/10986/41544(Back)

6. Stiglitz, J. E. (2013). Sharing the burden of saving the planet: Global social justice for sustainable Development. Lessons from the theory of public finance. In:  Stiglitz, J. E., & Kaldor, M. (Eds.). The quest for security: Protection without protectionism and the challenge of global governance. Columbia University Press (pp. 161-204). (Back)

7. Rafaty, R., Dolphin, G., & Pretis, F. (2025). Carbon pricing and the elasticity of CO2 emissions. Energy Economics, 108298. (Back)

8. Ver também: Lilliestam, J., Patt, A., & Bersalli, G. (2021). The effect of carbon pricing on technological change for full energy decarbonization: A review of empirical ex‐post evidence. Wiley Interdisciplinary Reviews: Climate Change12(1), e681. (Back)

9. Christophers, B. (2024). The Price is Wrong: Why Capitalism Won’t Save the Planet. Verso Books. Capítulos 4 e 7. (Back)

10. Christophers, B. (2024). The Price is Wrong: Why Capitalism Won’t Save the Planet. Verso Books. Capítulo 5. (Back)

11. Conforme o ranking da CompaniesMarketCap (2025). (Back)

12. ActionAid International. (2021). Not-their-lands: The land impact of Royal Dutch Shell’s net zero climate target(Back)

13. Ibid. Em 2023, a Shell abandonou projetos pouco lucrativos em energia renovável e anunciou grande expansão da exploração de petróleo e gás (Christophers, op. cit., loc. 3985). Em fevereiro de 2025, a BP noticiou corte de 70% nos investimentos em renováveis para focar em combustíveis fósseis: Moore, M. & Wilson, T. (2025, February 26). BP pivots back to oil and gas after ‘misplaced’ faith in green energy. Financial Times. https://www.ft.com/content/8bcf131f-c820-493f-8ea6-6a35440facd3(Back)

14. Bastin, J. F., Finegold, Y., Garcia, C., Mollicone, D., Rezende, M., Routh, D., . . . & Crowther, T. W. (2019). The global tree restoration potential. Science365(6448), 76-79. (Back)

15. Ibid. (Back)

16. O estudo de Lewis, Wheeler, Mitchard e Koch (2019) é mais pessimista que o de Bastin et al. (2019), estimando a absorção de 42 bilhões de toneladas de carbono até 2100, um valor próximo ao das emissões de carbono em 2024. E isso na melhor das hipóteses: a de que a estratégia preferida pelos governos não seja a plantação lucrativa de monoculturas florestais, e, sim, a restauração de florestas naturais. Pelo cálculo dos autores, monoculturas florestais absorveriam apenas 1 bilhão de toneladas de carbono, e operações agroflorestais, 7 bilhões. Logo, na pior das hipóteses, todo o potencial global de reflorestamento mediante monoculturas só compensaria nove (9) dias das emissões de carbono de 2024. Ver: Lewis, S. L., Wheeler, C. E., Mitchard, E. T., & Koch, A. (2019). Regenerate natural forests to store carbon. Nature, 568(7750), 25-28. (Back)

17. FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations. (2020). Global Forest Resources Assessment 2020 – Key findings. Rome: FAO. https://doi.org/10.4060/ca8753en(Back)

18. Mackey, B., Prentice, I., Steffen, W. et al. (2013). Untangling the confusion around land carbon science and climate change mitigation policy. Nature Climate Change, 3, 552-557. (Back)

19. Bumpus, A. G., & Liverman, D. M. (2008). Accumulation by Decarbonization and the Governance of Carbon Offsets. Economic Geography, 84(2), 127-155. (Back)

20. Cames, M., Harthan, R. O., Füssler, J., Lazarus, M., Lee, C. M., Erickson, P., & Spalding-Fecher, R. (2016). How additional is the clean development mechanism: analysis of the application of current tools and proposed alternatives. Berlin: Institute for Applied Ecology. (Back)

21. Heede, R. (2014). Tracing anthropogenic carbon dioxide and methane emissions to fossil fuel and cement producers, 1854–2010. Climatic Change122(1), 229-241. (Back)

22. InfluenceMap. (2024, April). The Carbon Majors Database: Launch Reporthttps://influencemap.org/briefing/The-Carbon-Majors-Database-26913(Back)

23. Lonergan, E., & Sawers, C. (2022). Supercharge me: net zero faster. Agenda Publishing. (Back)

24. Fernandes, D. A., Costa, F. D. A., Folhes, R., Silva, H., & Ventura Neto, R. (2022). Por uma bioeconomia da socio-biodiversidade na Amazônia: lições do passado e perspectivas para o futuro. Nota de Política Econômica n. 23. São Paulo: Made-USP; Bastos, P. P. Z. (2023) Fundo Amazônia e desenvolvimento socioambiental inclusivo: problemas e recomendações. Nota Técnica n. 20. CECON-Unicamp – Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Universidade Estadual de Campinas. (Back)