Colapso Climático
Virando a chave: máquinas chinesas são aposta do MST para alimentar o Brasil
Movimento quer dar escala à agroecologia com o uso de maquinário barato, pensado para pequenas propriedades rurais. Testes acontecem em assentamentos do Nordeste

Por Maíra Mathias
Do O Joio e O Trigo
Às 7 horas da manhã de uma terça-feira de maio de 2025, um barulho diferente tomou conta de um dos campos de arroz do assentamento Diamante Negro Jutaí. Penetrante e monótono, destoava de tudo o que já se ouvira por ali. Mesmo tão cedo, a novidade já atraía público. Cinco homens e uma criança observavam com atenção a origem daquele som. Ele vinha da China – ou melhor, de duas pequenas máquinas fabricadas naquele país. Elas tinham atravessado metade do globo até ali, a cidade de Igarapé do Meio, a 220 quilômetros de São Luís, no Maranhão. As mini colheitadeiras eram um acontecimento por um motivo bem simples: faziam em poucos dias o trabalho que, antes, levava quase um mês.
“Você faz um serviço de 24 dias em apenas dois ou três. Se ela [a máquina] não der problema, em um dia só a gente consegue”, calculou animadamente Railson Sousa Lima, dono da plantação onde as colheitadeiras passeavam para lá e para cá.
As duas máquinas da empresa Shineray– montadora chinesa que, no Brasil, tem uma fábrica de motocicletas no Complexo Industrial de Suape, em Pernambuco – não são iguais. A maiorzinha, do modelo 4lz-1.0lc, tem 15 cavalos de potência e, aproximadamente, o tamanho de um carrinho de golfe. A menor, com 10 cavalos de potência, lembra vagamente um daqueles veículos usados por seguranças de shopping. Com preço médio de 4 mil dólares cada, algo em torno dos R$ 20 mil, as pequenas colheitadeiras são muito mais baratas do que a opção mais próxima vendida no Brasil, a Yanmar YH880, que sai por R$ 550 mil.




As maquininhas não só colhem como adiantam bastante o processo de limpeza do arroz. O grão cresce em cachos. As colheitadeiras sugam esses cachos, separando cada grãozinho e lançando o cereal em sacas. “O arroz sai ‘batido’, só no ponto de secagem”, observou Railson. Aquele momento coroava um trabalho de aproximadamente cem dias que tinha começado em 13 de janeiro, com a preparação da terra para o plantio.
O arroz da família Sousa Lima tinha sido o primeiro a ficar no ponto de colher no assentamento Diamante Negro Jutaí. E o assentamento, por sua vez, tinha sido um dos escolhidos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, para testar a viabilidade de um ambicioso plano: massificar a agroecologia por meio da mecanização da agricultura familiar. E, de quebra, contribuir para a reindustrialização do Brasil.

Diferença gritante
Fundado em janeiro de 1984, o MST surgiu com a pauta da reforma agrária. Mas a partir dos anos 2010, agregou uma palavra à sua bandeira de luta. Começou a falar em reforma agrária popular. As ocupações, que tanto simbolizaram o movimento na década de 1990, continuam acontecendo. Mas o movimento deu um passo adiante na construção da sua imagem, se posicionando como um ator central na produção de alimentos agroecológicos no Brasil.
Mas, se os assentamentos da reforma agrária produzem alimentos, nem sempre isso é feito numa escala suficiente para abastecer o resto da população. Ganhar tração, musculatura, passou a ser um objetivo central. “Quer dizer, sair das experiências-piloto, sair das experiências muito localizadas e, de fato, nacionalizar a agroecologia nos nossos assentamentos, na agricultura camponesa de forma geral”, explica Luiz Zarref que, além de membro do MST, é coordenador para a América Latina da Associação Internacional para a Cooperação Popular – também conhecida como Baobab.
Criada em 2019 por movimentos como o próprio MST, a Baobab tem como foco a cooperação internacional nas áreas de ciência e tecnologia. Para isso, promove intercâmbios de organizações populares com instituições governamentais, institutos de pesquisa, desenvolvedores de tecnologia, financiadores e empreendedores do chamado ‘Sul Global’. Tem escritórios na cidade de Acra, capital de Gana, em São Paulo e em Pequim, onde Zarref mora atualmente.
O endereço não é por acaso. Para ganhar escala, tanto o MST quanto outras organizações que compõem a Baobab veem na mecanização a resposta que precisam. Mas as máquinas para a agricultura familiar precisam ser pequenas e baratas. Reunir essas duas condições não foi fácil. Zarref conta que o movimento fez buscas em países como Itália, Alemanha, Japão e Coreia do Sul. A procura teve que ser fora do Brasil porque os modelos adequados para esse fim não são fabricados por aqui.
“Nos últimos anos, nós descobrimos que, na realidade, seria a China o país que teria as tecnologias mais adequadas para a realidade camponesa brasileira”, diz Zarref. “Na China, são 240 milhões de estabelecimentos no campo, a maioria tem até meio hectare.” O tamanho conta, e muito: em áreas diminutas assim, do porte de meio campo de futebol, máquinas grandes não fazem sentido.
A indústria chinesa, fortemente direcionada pelo Estado, deu uma resposta a essa realidade criando maquinário adequado. Segundo o coordenador da Baobab, o país tem mais de 8 mil fábricas de máquinas agrícolas. “É efetivamente um país que fez a reforma agrária e que industrializou o seu campo, a partir de uma linha política do governo.”
Enquanto isso, no Brasil, no mesmo ano em que a Baobab foi criada, os governadores do Nordeste decidiram fazer um contraponto à atuação desastrosa do governo Jair Bolsonaro na pandemia de covid-19 criando o Consórcio Nordeste. Mais tarde, a entidade, que reúne todos os estados da região, olharia para outras áreas além da saúde, como a agricultura familiar.
Sabendo do interesse do Consórcio Nordeste pelo tema, a Baobab o conectou com pesquisadores e fabricantes chineses de maquinário agrícola. “Foi um grande impacto”, lembra Zarref. A distância entre China e Brasil, especialmente entre a China e o Nordeste brasileiro, se revelou gritante.
Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, de 2017, existem 3,8 milhões de estabelecimentos da agricultura familiar no país. Metade deles fica no Nordeste.

O censo não oferece uma média da mecanização nessa categoria de propriedade, mas traz dados por alguns tipos de máquinas. Se a medida for a mais comum delas – o trator –, a mecanização alcança 12% dos estabelecimentos da agricultura familiar. Já no Nordeste, o índice é de 1,3%. “Na China, [a mecanização média] chega a 72%. Em algumas cadeias produtivas chega a 83%”, compara Zarref.

A vontade de mudar o jogo rendeu frutos. Em setembro de 2022, foi assinado um memorando de entendimento entre a Baobab, o Consórcio Nordeste, o Instituto Belt and Road, da Universidade Agrícola da China, e a Associação de Fabricantes de Máquinas Agrícolas daquele país.
Depois de um levantamento de quais cadeias produtivas poderiam ser alavancadas com o maquinário fabricado na China (hortaliças, milho, feijão e arroz), 31 máquinas desembarcaram no Brasil em fevereiro de 2024 com destino e objetivo certos: seriam testadas em assentamentos do MST nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Maranhão.
Participação massiva
No dia 4 de maio de 2025, um belo domingo de sol, Maria de Jesus acordou cedo, deu café para os filhos e partiu para a sede da Cooperativa Mista das Áreas de Reforma Agrária do Vale do Itapecuru (Coopevi). Chegando lá, as horas passariam rápido, como numa corrida contra o tempo. É que a Feira Nacional da Reforma Agrária – um evento do MST realizado em São Paulo que serve de vitrine para a produção de alimentos em assentamentos do país inteiro – seria dali a alguns dias. Dijé, como Maria de Jesus é conhecida, se uniu à força-tarefa para aprontar os produtos que partiriam para a capital paulista. Tapioca, farinha, xarope, geleia, limão, abóbora… Mas, principalmente, arroz.

A primeira colheita com máquinas chinesas tinha sido a daquele arroz e acontecido um ano antes, ali mesmo no assentamento Cristina Alves, localizado em Itapecuru-Mirim, município a 119 quilômetros de São Luís. Dijé foi a única mulher dos assentamentos do Nordeste a pilotar uma máquina chinesa, a maior das colheitadeiras Shineray.
“Eu peguei para tentar ver se conseguia [guiar]. Aí quando eu consegui, eu fiz várias voltas lá, cortando arroz. E foi um momento muito bom, viu? A gente se sentiu muito alegre com isso”, relembrou.
Para Dijé, assim como para Railson, o choque vinha do tempo economizado na colheita, e também na limpeza, já que o grão sai sem a palha. “Já vem no ponto de a gente colocar no sol e levar para a piladeira. E eu passava um dia todo pra cortar seis sacos, com palha, com tudo. [Com a máquina] em quatro minutos, cinco, a gente está com um saco de cinquenta quilos cheio. Uma diferença boa, e muito grande. E aí eu me animei, porque sempre participava do campo de arroz, mas nunca tinha colocado o meu próprio.”
É mais interessante para a reforma agrária popular, para a agroecologia, que a participação das pessoas também seja massiva. Não só uma produção em escala, mas uma participação também em uma escala maior”
Elias Araújo, coordenador do setor de produção do MST na região amazônica
Atrair mais gente para o plantio de arroz é a meta da Coopevi. A cooperativa está prestes a dar um salto, com a instalação de uma usina financiada pela Secretaria de Abastecimento, Cooperativismo e Soberania Alimentar do Ministério do Desenvolvimento Agrário em conjunto com a Fundação Banco do Brasil. A estrutura terá capacidade para beneficiar 8 mil quilos de arroz por dia.
Para que a usina funcione bem, a área plantada a cada safra precisa saltar dos 20 hectares atuais para 500. Mas a ideia não é expandir a produção só dentro do assentamento. “Isso seria monocultivo. Foge do que a gente quer debater em termos de agroecologia”, explicou Elias Araújo, quadro antigo do MST no Maranhão que mora no assentamento desde a sua criação, em 2007, e hoje coordena o setor de produção do movimento em toda a região amazônica.
De acordo com ele, o plano é ampliar gradualmente a área plantada dentro do Cristina Alves, de 20 hectares por safra até chegar a 150. E mobilizar pessoas de fora a plantarem os 350 hectares restantes. “É mais interessante para a reforma agrária popular, para a agroecologia, que a participação das pessoas também seja massiva. Não só uma produção em escala, mas uma participação também em uma escala maior.”

É aí que as máquinas chinesas vêm ao encontro dos planos que a cooperativa já traça há tempos. Elas servem de chamariz. “Para colher hoje um hectare de arroz, você gasta uns 20 dias, no mínimo. Com essa maquininha da China, você consegue colher isso em um dia. É uma revolução”, observou Elias. “A gente quer trabalhar no entorno do assentamento, envolver outras famílias. Aqui tem vários assentamentos, várias comunidades quilombolas…”
No DNA do Maranhão
O arroz é central na cultura maranhense. O estado tem, disparado, o maior consumo per capita do Brasil. São 49 quilos de arroz por habitante ao ano, segundo o IBGE. Como base de comparação, na Bahia e em São Paulo, o número cai para 15 quilos.
Essa cultura já teve algumas reviravoltas e até proibição. No início da colonização das Américas, o Maranhão era um território disputado por espanhóis, franceses e portugueses. Esses últimos levaram para lá o arroz consumido no arquipélago dos Açores – uma variedade de cor vermelha, que teve enorme sucesso. Até que a Coroa proibiu sua produção, em 1772.
Na época, Portugal vivia uma crise de abastecimento. Mas a metrópole só queria saber do arroz branco. Como resultado, os maranhenses foram proibidos de plantar o arroz vermelho de que tanto gostavam. E os brasileiros, quem sabe, perderam a chance de ter mais variedade no prato.
Hoje, o arroz vermelho até voltou – mas como um produto nichado para classes médias e altas em busca de um estilo de vida saudável. Atualmente, 70% do arroz consumido no país é o branco polido.

O arroz também tem a ver com a história de ocupação do território maranhense – e com as suas injustiças. É uma cultura de abertura de área. Aquilo que se planta depois de derrubar a floresta. “Retirar a madeira e fazer a primeira roça. E a primeira roça que vem é a de arroz”, observou Elias.
“E, no rastro dessa lavoura itinerante, você tinha os criadores de gado. E, no rastro disso tudo, veio o que a gente chamou aqui de legalização das áreas. As pessoas mais esclarecidas – comerciantes, pessoas de fora – foram documentando as áreas. E os camponeses foram sendo expulsos.” Sendo empurrados mais e mais para dentro da Amazônia.
O Maranhão chegou a ser o segundo maior produtor de arroz do Brasil. A última vez em que o estado chegou a essa posição foi em 2006, segundo o Censo Agropecuário.
Hoje, o Rio Grande do Sul concentra 70% da produção brasileira, com 7 milhões de toneladas em 2023. É seguido por Santa Catarina, Tocantins e Mato Grosso do Sul. O Maranhão fica na quinta colocação.
Maranhão na produção de arroz no Brasil


Na avaliação de Elias, que é agrônomo, o Maranhão perdeu espaço porque não se atualizou. “A cultura se deslocou para regiões onde teve resposta, onde as forças produtivas avançaram.” Mesmo dentro do estado, diz ele, a produção de arroz vem mais do agronegócio do que de assentamentos ou territórios tradicionais. “No sul do Maranhão, onde estão as máquinas, onde é possível plantar e colher.”
O próprio MST tem no arroz produzido no Rio Grande do Sul, um dos seus principais orgulhos. Segundo o Instituto Riograndense do Arroz (Irga), o movimento é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil. E, pelo tamanho da produção, provavelmente o maior da América Latina. Segundo o MST, na última safra (24/25) foram semeados 2.850 hectares de arroz agroecológico nos assentamentos riograndenses por 290 famílias – uma média de 9,8 hectares para cada uma.
A ideia é reproduzir esse cenário no Maranhão. “Aquele camponês que fazia a roça de arroz e colhia manualmente ainda existe, mas existe para uma necessidade de consumo. Quando essa família melhora financeiramente e pode comprar o arroz fora, ela não vai mais ficar na atividade do arroz”, afirma Elias, para quem a forma de manter as pessoas no campo maranhense passa necessariamente pela mecanização da cultura do arroz.
A roça do toco

O jeito tradicional de plantar arroz é conhecido como “roça do toco”. Trata-se de um sistema agrícola com raízes em comunidades indígenas e quilombolas onde se derruba a mata, se queima a matéria orgânica e, aproveitando esses nutrientes, se planta – arroz, maniva, milho.
Ali mesmo, no assentamento Cristina Alves, não são poucas as pessoas que mantêm viva a tradição. A própria Dijé, animada com as máquinas, desde criancinha acompanhava o pai na lida, sendo reconhecida como uma das pessoas mais ágeis na colheita manual. Mãe de cinco filhos, ela conta que uma das suas meninas também leva jeito pra coisa. “Eu tenho uma que as pessoas falam que vai ser a minha cópia porque ela gosta, né? E essa roça minha, de toco, quem me ajudou a plantar foi ela e o mais novinho.”
Outro assentado verdadeiramente entusiasta da roça de toco é o Juca – ou, conforme a certidão de nascimento, Geraldo de Matos Barbosa –, um agricultor de 56 anos que é pura simpatia. Ao mostrar a área onde produz arroz e mandioca, ele detalhou o passo a passo do plantio.
Às vezes dá pra gente vender. Não é muito, mas dá. Mas o que a gente gosta mesmo é de comer”
Geraldo de Matos Barbosa, agricultor
“A gente roça de foice, ‘derriba’ de machado, depois toca fogo. Com 60, 70 dias, que ela [a folhagem] já está seca, a gente queima. E, depois que queima, a gente vai juntar o chamado garrancho ou coivara, que é o restante que o fogo deixa”, ensinou.
Se a lógica é ir derrubando um pouco da mata a cada safra, também é verdade que, na roça do toco, as terras usadas descansam por anos. Até que a mata cresça e a área esteja em condições de ser manejada de novo.
O arroz do Juca estava quase no ponto de colher naquele começo de maio. Ele apresentou os instrumentos que usaria. Basicamente um facão e uma cesta de palha pendurada a tiracolo.

Ele calculava que a roça renderia umas 25 sacas de arroz. Longe de ser o suficiente para vender, mas o bastante para a família comer quase o ano todo. “Assim, nós não gosta de vender porque é um arroz muito gostoso. Se a gente vende, aí não vai alcançar o ano que vem. Às vezes dá pra gente vender. Não é muito, mas dá. Mas o que a gente gosta mesmo é de comer.”
Mas, se o objetivo for viver da renda do arroz, dar escala à operação, os agricultores ouvidos pelo Joio no Maranhão acreditam que a saída é a mecanização. Até porque as condições objetivas mudaram. Em termos de terra disponível, educação e, mesmo, sucessão rural.
Grandes mudanças
“No tempo que a floresta ainda era em pé, a gente conseguia fazer a roça do toco. Mas era área coletiva. Você tinha grandes áreas que você podia cortar, derrubar, tocar fogo e plantar. Mudava, deixando aquela área em repouso, e ela se regenerava com o tempo. Hoje, o assentamento já foi dividido, cada um tem sua parcela”, explicou Lucas Machado, agricultor do assentamento Diamante Negro Jutaí. Por lá, os lotes são de 30 hectares, sendo dez de reserva legal. “A alternativa da gente era mecanizar.”
Essa certeza veio depois de um longo percurso. Apesar de terem lutado pela conquista da terra por anos debaixo de lona, os pais do Lucas não queriam que ele tomasse o caminho da roça. Pioneiros na ocupação que levaria à criação do assentamento, eles desejavam que o primogênito seguisse outro rumo na vida. “A área da informática, a área da educação… A minha família não queria que eu fizesse a escolha da agricultura por nunca ter conseguido fruto. Nunca ter conseguido renda diretamente da agricultura”, contou, um pouco mexido.
Aos 32 anos, ele estava prestes a ser pai pela primeira vez. A companheira, Maria Thaís, tinha cesárea marcada para o dia seguinte, 7 de maio. Um pouco mais animado depois de alguns segundos de silêncio, Lucas arrematou: “Me formei aqui e ainda hoje continuo. Não tenho expectativa de mudar para lugar nenhum. [Quero] continuar vivendo aqui.”

Muito disso tem a ver com a desobediência. Em 2015, Lucas agarrou a chance de fazer uma faculdade pelo Pronera, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, voltado à qualificação da juventude no campo. Escolheu agronomia.
Colocava em prática no lote da família tudo o que aprendia no curso. Tinha em mente um objetivo. “Vir para cá e mostrar que a gente, dentro do assentamento, consegue produzir igualmente fosse um grande fazendeiro. Que o assentamento também tem esse potencial.” Sabendo da aptidão do assentamento para a produção de arroz, ele quis se aprofundar no estudo sobre a cultura mecanizada.
A forma tradicional de plantar arroz é bastante diferente da lavoura mecanizada, começando pela preparação do solo. Para arar e nivelar a terra, se usa um trator. Para fertilizar, se usam adubos químicos, como ureia, ou naturais, como urina de vaca curtida. A semente precisa ser comprada – a variedade usada hoje no assentamento é a BRS 502, desenvolvida pela Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
Depois, vem o trabalho de cuidar das plantas. Se optar por não usar agrotóxicos, como manda a agroecologia, o agricultor precisa ficar direto na roça, ao longo de uns três meses, para controlar as plantas que poderiam competir por nutrientes com o arroz.

Na hora da colheita, podem entrar as colheitadeiras – como as da Shineray. E, finalmente, chega o momento de beneficiar.
Na cadeia produtiva do arroz, uma máquina puxa a outra. Isso porque, para produzir em escala e vender, existem certas exigências de mercado a serem cumpridas. O grão precisa ser longo e fino. Arroz quebrado não é valorizado, daí a classificadora.
A secadora, por exemplo, é uma máquina que não tem serventia para quem planta no toco, porque a pessoa colhe o arroz no cacho. E, como esse cacho protege da umidade, dá para armazenar num paiol simples – que pode ser a própria porta de casa.
É bastante novidade. A mecanização nos assentamentos é um processo em aberto, com experimentações que às vezes dão errado.
É o que aconteceu com a semente BRS 502 no caso do assentamento Cristina Alves. “A variedade deu um rendimento muito bom no Diamante Negro Jutaí”, contou Elias Araújo. “Mas aqui ela manifestou um percentual de germinação muito abaixo, algo em torno de 20%. Então comprometeu, ficou inviável a lavoura.”
Então, mesmo com as máquinas chinesas à disposição, o Cristina Alves ficou sem arroz para colher e teve que se virar com estoques das safras passadas.
Outro fator arrasador também pesou: a emergência climática. As chuvas, que eram pra ter começado em janeiro na região, atrasaram um mês. “E a gente vai ter que aprender a conviver com isso, esse fator na agricultura vai ser permanente agora”, lamentou Elias.

Retomada da produção
Todas essas mudanças para entrar no circuito do mercado acabam, num primeiro momento, sendo caras. Recém-saído da universidade, Lucas resolveu plantar por conta própria. Ele não estava sozinho: outros dois assentados, também agrônomos pelo Pronera – Simeão e Pedrinho –, já perseguiam a ideia. O pontapé para os três foi a troca com pesquisadores da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), que volta e meia estavam no assentamento estudando as diferentes camadas de solo, e também com a Embrapa.
“Eles queriam fazer a transferência de tecnologia do modo que eles plantam, não só para o assentamento, mas em outros locais do Maranhão. E aí a gente recebeu a transferência de tecnologia da Embrapa, ensinando como é que planta no modo convencional”, contou Lucas. Um pacote que envolvia não só o uso das máquinas, mas também o de fertilizantes químicos e agrotóxicos. “Agronegocinho.”
Sendo parte do MST, porém, os assentados quiseram adaptar os ensinamentos da Embrapa em direção a uma produção agroecológica. “O MST procura muito capacitar a gente numa forma de produção mais natural, a gente tem que procurar ir mais além”, resumiu Lucas, que admitiu que, não fosse a formação política dada pelo movimento, provavelmente eles teriam adotado todo o pacote tecnológico da Embrapa sem grandes questionamentos.
Mas o fato é que, com os resultados da roça mecanizada, Simeão, Pedrinho e Lucas foram animando mais gente da Cooperativa de Produção Agropecuária dos Produtores da Microrregião da Baixada Maranhense (Coopervid), sediada no assentamento. Como explicaria o José Wanderlei Silva, presidente da cooperativa, por algum tempo as coisas ficaram paradas por lá. Muitos assentados perderam a fé na agricultura e foram fazer outras coisas da vida. “De três passamos para cinco, depois passamos para dez agricultores trabalhando por conta”, relembrou. Ou seja, sem financiamento.
Logo a produção passaria a ser financiada pela Finapop, uma plataforma de investimentos criada em 2020 pelo MST, por meio da qual cooperativas podem captar recursos. Mas, segundo o Wanderlei, o sistema de financiamento tinha exigências difíceis de atender no estágio de refundação em que a cooperativa se encontrava. “É um fundo excelente, essa questão do recurso, mas ele ainda era muito limitado para nós, porque exigiu a questão da qualificação profissional, de assistência técnica, que o fundo não cobria, então tivemos alguns problemas em fazer a renovação”, afirmou ele.
O financiamento público também não foi uma solução. “Fora o Finapop, nós não conseguíamos financiamento em um banco, uma instituição financeira, chegar e dizer, ‘olha, eu quero financiar um hectare de arroz’. A desculpa era que não há capacidade de pagamento.” E aí veio a Vale.
Projeto financiado pela Vale

O Assentamento Diamante Negro Jutaí é um lugar carregado de simbologia por ser fruto da primeira ocupação do movimento sem-terra na Baixada Maranhense, em 1989. Uma região onde se percebe uma presença mais forte do agronegócio. Beirando a BR 222 – uma típica rodovia do agro, esburacada e cheia de caminhões, que liga Marabá, no Pará, a Fortaleza –, o assentamento também é cortado por dentro por outra importante via de exportação de commodities: a Estrada de Ferro Carajás, operada pela Vale.
Para se ter ideia do porte dessa operação, em fevereiro de 2025 a mineradora anunciou um investimento de R$ 70 bilhões para atingir a seguinte meta: extrair 200 milhões de toneladas de minério de ferro, anualmente, de Carajás – o que deve se tornar realidade em 2030.
Segundo assentados que preferiram se manter anônimos, depois de anos atuando num espírito de dividir para conquistar (jogando a associação do assentamento contra a cooperativa – e vice-versa), recentemente a mineradora teria mudado de tática. A imagem que uma fonte usou é a de uma jiboia. Que vai se enroscando, subindo no corpo da presa, apertando.

Mas o fato é que a Vale chegou junto da cooperativa e perguntou o que havia de planos por lá. “A Vale abraçou um sonho nosso, que é um sonho dos agricultores de plantar arroz em uma condição melhorada”, disse Wanderlei, usando uma camisa onde, na frente, se lia “Projeto Arroz Diamante” e, nas costas, havia a logomarca da mineradora e da Coopervid.
Mas a Vale não estava só na camisa. Dois assessores da empresa estavam lá no dia 5 de maio, quando o Joio foi recebido na sede da cooperativa. Cerca de meia hora depois da chegada da reportagem, decidiram fazer uma reunião com os assentados sobre uma usina de beneficiamento de arroz, que a mineradora vai bancar como parte do Projeto Arroz Diamante.
O projeto começou financiando 25 agricultores a plantarem um hectare de arroz cada. Um valor, segundo Wanderley, de R$ 96 mil. A mineradora também financia assistência técnica – no caso, o trabalho do Lucas Machado, que orienta os demais agricultores – e, agora, a compra de equipamentos e a construção da usina. “E ela [a Vale vai] fazer todo o processo, da mecanização até o beneficiamento, que é o futuro próximo, que já está desenhado para nós. Já está concreto, vamos começar a construção da usina, já temos boa parte dos equipamentos comprados: a piladeira, a classificadora, a empacotadeira…”, contou o presidente da Coopervid.
Wanderley entrou para o MST em 1992, quando se juntou a uma das ocupações do movimento. Foi parar no assentamento Diamante Negro Jutaí anos mais tarde, como coordenador dos cursos do Pronera. Como presidente da cooperativa, ele está numa saia justa: não pode cuspir na mão que financia a produção de arroz, mas também, aos poucos, não deixa de admitir que a situação é estranha.

“O assentamento Diamante Negro Jutaí é uma área impactada pela Vale. E há 33 anos a gente vinha tentando trabalhar isso. [A mineradora] sempre escapulindo. Tivemos algumas conquistas, mas [tudo] muito pontual”, refletiu, emendando: “A Vale tem um objetivo e, dentro dessa questão, ela é obrigada a fazer a parte social dela. Qual é a parte social? É esse minúsculo, essas coisas minúsculas, que é o Projeto do Arroz Diamante. É muito pequeno isso para ela, em relação ao ganho ela, em relação ao impacto no assentamento. Isso é muito claro pra nós.”
Próximos passos
Se nos diferentes territórios, as circunstâncias variam bastante – sendo, em alguns casos, bastante desafiadoras –, no fim, os assentamentos do Maranhão selecionados para testar as máquinas chinesas perseguem uma mesma orientação política: produzir alimentos agroecológicos em escala.
Em maio de 2025, um segundo documento de parceria com a China foi assinado. Desta vez envolvendo o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). A nova fase envolve a testagem de mais 50 máquinas nos assentamentos do MST, e também na Universidade de Brasília (UnB). Lá, foi criado o Centro Brasil-China de Pesquisa, Desenvolvimento e Promoção de Tecnologia e Mecanização para Agricultura Familiar, que também vai se dedicar ao estudo de bioinsumos e tecnologias de digitalização. “Não é só a questão da mecanização”, explica Luiz Zarref.
Em paralelo, o MST tenta implantar fábricas para a produção dessas máquinas pequenas e baratas no Brasil. Originalmente, o movimento pensava que daria para atrair o capital chinês de forma direta, porque algumas das empresas que produzem as maquininhas na China estão instaladas no país, mas produzindo outras coisas – como motos, caso da própria Shineray.
Mas sem uma política específica que garanta mercado para as empresas, não foi possível. “Não ter uma política mais consistente de mecanização para a agricultura familiar acaba inibindo as empresas a tomarem a iniciativa de virem ao Brasil, que é um mercado distante, e estabelecerem uma planta industrial que produza máquinas para essa agricultura. Porque, uma vez que não tem a política para ela, provavelmente essas máquinas vão ficar encalhadas”, afirma Zarref.
Agora, os planos mudaram ligeiramente. Envolve triangulações com poder público, capital nacional e as cooperativas do MST. “Então, nós estamos, nesse momento, nos diálogos com as empresas chinesas, para tentar encontrar caminhos que sejam possíveis de criar ou joint ventures ou parcerias tecnológicas”, conta o coordenador da Baobab e integrante do MST.
Funcionaria mais ou menos assim: a empresa chinesa transfere a tecnologia. E a cooperativa do MST, com respaldo de investimentos públicos e privados, produz as máquinas.
“Via parceria público-privada e popular. A cooperativa do movimento entra junto, tem participação, mas é importante que tenha um recurso público nisso e que tenha um investidor disponível para isso. Então, enquanto não tiver essas três coisas convergindo, não vai ter indústria no Brasil”, sustenta Elias Araújo.
Em Maricá, no Rio de Janeiro, algo nesse sentido já está em curso – também fruto da articulação com a Baobab e o MST. Em julho de 2025, a prefeitura assinou um memorando com a empresa chinesa Sinomach Digital Technology e a brasileira OZ.Earth. O plano é instalar fábricas de máquinas agrícolas para agricultura familiar e desenvolver plataformas digitais para gestão dos maquinários.
A cidade fluminense, na opinião de Elias, é exemplo de que mudar a realidade da mecanização no Brasil não é um ideal distante. “A indústria de máquinas em Maricá vai começar agora. Sem máquinas adequadas, sem indústrias adequadas, você não tem uma agroecologia na escala que a gente está demandando.”