Mulheres em Luta
Alexina Crespo: heroína das lutas camponesas
Alexina foi muito mais que esposa de Francisco Julião: ela foi a construção dos seus ideais

Por Vittória Paz
Do Brasil de Fato
Recentemente a Deputada Estadual pelo PT de Pernambuco e militante do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), Rosa Amorim, aprovou o projeto de resolução na ALEPE (Assembleia Legislativa de Pernambuco) de Número 3020/2025, que inclui Alexina Crespo no livro “Panteão dos Heróis e Heroínas de Pernambuco”. Esse livro traz reconhecimento a figuras históricas que tenham contribuído na formação da identidade pernambucana, na defesa dos direitos humanos, na luta pela democracia e justiça social e por atos de bravura e heroísmo.
Mas quem foi Alexina Crespo e por que este ato de Rosa Amorim foi tão importante para a história das lutas camponesas e para o MST em si?
Alexina Lins Crêspo de Paula foi uma das maiores referências políticas das Ligas Camponesas e teve sua vida marcada pela luta pela terra, pela reforma agrária, pela justiça social e pela integração da classe trabalhadora ao redor do mundo. Pernambucana nascida em 1926, se aproxima o ano do seu centenário e cresce a necessidade de trazer seu nome e sua história para ser contada e servir de exemplo.
Geralmente conhecida e associada por ter sido casada com Francisco Julião, Alexina foi muito mais que esposa de alguém e muito mais que a sua origem: ela foi a construção dos seus ideais, referenciais e práticas revolucionárias durante seus 73 anos de vida, cujo legado perdura no tempo.
A história de Alexina não é uma história de amor em meio à luta, não é uma história de amor em meio à separação do exílio. Ao menos, não é uma história de amor romântica, mas uma história de amor pela luta e pelas convicções que se mantiveram com ela até a sua morte.
A história de Alexina é sobre uma mulher, militante revolucionária, escritora e mãe. Uma história que fala muito sobre as mulheres que viveram na sua época, mas, sobretudo, as mulheres que se dedicam ao que acreditam, não importa a época.
De família tradicional e católica, sua mãe e avó tinham uma admiração por Luiz Carlos Prestes, que mais tarde mostraria sua influência nas suas escolhas políticas. Casou-se em 1943 com o advogado Francisco Julião e tiveram 4 filhos juntos: Anataílde, Anatólio, Anatilde e Anacleto. Faleceu em 2013, deixando uma grande família e muitas histórias ainda a serem contadas.
Desde os anos 1950, em sua atuação nas Ligas Camponesas, Alexina fez de tudo: datilógrafa, enfermeira, engenheira elétrica. Ao mesmo tempo, cuidava dos filhos e das tarefas domésticas. Não pôde dar seguimento aos estudos por restrição do marido, mas isso não a impediu de desenvolver muitas habilidades, entre elas a da guerrilha.
Alexina foi uma grande referência mais à esquerda dentro das Ligas Camponesas, integrando o chamado chamada Grupo Tiradentes, uma ala mais radical da organização. Além de participar de reuniões do Partido Comunista, ela deu treinamento de guerrilha no Brasil, negociava armas e era uma das responsáveis pela parte clandestina das Ligas.
Nas relações internacionais, viajou à União Soviética, Cuba, China e Coreia. Se reuniu com Mao Zedong para negociar armas, era próxima a Che Guevara e Fidel Castro, fez treinamento de guerrilha em Cuba, onde permaneceu por ordem do próprio Fidel quando o líder cubano soube do golpe de 1964, que deu início aos 21 anos de ditadura empresarial militar no Brasil.
Seus filhos, que já viviam em Cuba desde 1962 por conta das ameaças que sofriam no Brasil, viveram com a mãe depois no Chile, onde passaram pela ditadura de Pinochet, e na Suécia, até poderem retornar ao Brasil no início da década de 1980, após a Lei de Anistia. Alexina foi uma mãe que lutou para dar condições aos seus filhos, mesmo passando por momentos difíceis durante o exílio. Ao retornar ao Brasil, encontraram pouco apoio e até o início dos anos 2000 foi vendo sua história sendo esquecida.
Alexina foi vítima do machismo nas diferentes esferas em que ele poderia se revelar. A própria realidade da mulher no meio rural durante os anos 1950 era muito difícil e se alastrava também para os movimentos e organizações políticas. Participar de um ambiente dominado por homens, em uma época em que as discussões sobre o espaço da mulher e o que viria a se tornar o feminismo no Brasil ainda tinham um outro formato, era terreno árduo.
A própria estrutura fundiária da terra cristaliza um modelo de opressão de gênero e raça que remonta ao passado escravista e colonial e à forte influência da Igreja Católica na divisão e atribuição dos papéis e hierarquias. Sobre esse contexto específico a historiadora e militante Maria do Socorro Abreu e Lima, em seu livro “Construindo o sindicalismo rural: Lutas, partidos, projetos”, explica:
“Na produção agrícola familiar tradicional, mais comum no Agreste e no Sertão, a mulher também era destinada às atividades reprodutivas. Seu trabalho na produção era considerado como “ajuda”, não sendo remunerado e não tendo ela, geralmente, nenhum poder de decisão quanto à aplicação do dinheiro conseguido. Se o que ela produz é consumido pela família, não é levado em consideração. Se destinado ao mercado, é transacionado pelo marido, não tendo ela, geralmente, qualquer tipo de participação. É nesse sentido, faz parte daquele trabalho invisível, que tanto contribui para o não reconhecimento da mulher enquanto trabalhadora e a sua desvalorização enquanto pessoa.”
Além das violências referentes a esse contexto relatado, Alexina também teve uma imagem vendida para fora de mulher adúltera, má mãe, e assim por diante. Essa era uma forma da mídia também procurar desmoralizar seu então marido. Apesar disso, Alexina, segundo seu próprio filho Anacleto, em depoimento ao documentário “Memórias clandestinas” (2004) foi a grande responsável pela figura do dirigente Francisco Julião e pelo próprio desenvolvimento das Ligas Camponesas. Ela, como tantas outras mulheres, tiveram seus papéis dentro das Ligas apagados para dar destaque aos homens.
Essa é uma realidade muito comum a muitas mulheres referências políticas, que têm a sua imagem e sua trajetória atreladas a um homem. Assim como tantas mulheres incríveis na história, Alexina deu conta de uma jornada cansativa, em que teve que conciliar os trabalhos domésticos, vistos como obrigação da mulher, ao seu trabalho político por um projeto em que ela acreditava e dedicava sua vida. Alexina, muito mais à esquerda que tantos, tinha dificuldade em conhecer a sua própria importância. No documentário já mencionado há uma cena em que sua filha diz: “ela acha que não fez nada”. Além disso, vemos a timidez dela mesma ao falar sobre sua história, seus feitos em tantos anos de vida, enquanto conta sobre suas tarefas, as diferentes maneiras de participação e organização das mulheres camponesas, seu treinamento de guerrilha, sua ida à China, sua amizade com Fidel, seus relatos de exílio e tantos outros feitos.
Alexina nos deixou há 12 anos, mas sua vida ainda possui muitas histórias a serem contadas. As Ligas Camponesas deixaram um grande legado na história do nosso país, legado esse que ressoa nos movimentos, sobretudo naqueles de luta pela terra, e que vive também na história do Movimento Sem Terra, como referência e parte da trajetória. Segundo João Pedro Stédile, “as Ligas Camponesas foram o principal movimento camponês de massas da década de 1960 e colocaram, na ordem do dia, sua palavra de ordem: reforma agrária na lei ou na marra.”
Retomar a história de Alexina Crespo é retomar a história das lutas dos camponeses e camponesas no Brasil, é retomar a história de resistência, procurando pelos personagens que por tanto tempo permaneceram esquecidos pela própria história. É repensar uma narrativa que se faz importante e presente todos os dias na luta pela reforma agrária e no resgate das referências internacionalistas de integração da classe trabalhadora do mundo.
No final do documentário ”Memórias Clandestinas” vemos Alexina falar aos seus 78 anos falar: “eu sigo acreditando, até hoje eu sigo acreditando nisso, não se consegue o poder pacificamente, tem que ser na luta armada”. Que possamos todas nós seguirmos os ensinamentos, a convicção e a força de Alexina Crespo.
Editado por: Lucas Estanislau