Direito ao alimento!
Dia da Alimentação: da ancestralidade à solidariedade, a luta pelo direito à comida de verdade
No Dia Mundial da Alimentação, o MST reforça a luta pela soberania alimentar, a importância da agroecologia e o papel dos povos do campo na construção de um modelo justo e sustentável de produção de alimentos

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
O Dia Mundial da Alimentação, celebrado em 16 de outubro, marca uma reflexão global sobre o direito de todas as pessoas à comida saudável e acessível. Criada em 1979 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a data nasceu para chamar atenção para a necessidade de criar sistemas alimentares mais justos, capazes de erradicar a fome e garantir o bem-estar coletivo. No Brasil, o tema ganha contornos ainda mais urgentes diante do retorno do país ao Mapa da Fome e das desigualdades que atravessam o campo e a cidade.
A FAO, ao longo das últimas décadas, tem alertado para o impacto da concentração de terras, da dependência de agrotóxicos e do modelo de produção intensivo sobre a qualidade dos alimentos e do meio ambiente. Em contraposição, movimentos populares e organizações sociais têm reafirmado que a segurança e a soberania alimentar passam por uma mudança estrutural — em relação à forma como cultivamos e distribuímos os alimentos até a valorização dos saberes tradicionais.

Mais do que garantir a comida no prato, o Dia Mundial da Alimentação simboliza a luta por um sistema que respeite a natureza, a cultura e a dignidade dos povos. É uma data que convida à ação coletiva e à reflexão sobre o papel de cada pessoa e instituição na construção de um futuro onde alimentar-se bem não seja privilégio, mas um direito fundamental.
Reforma Agrária, solidariedade e o alimento como direito
A FAO estima que os sistemas agroalimentares sejam responsáveis por um terço das emissões globais de gases de efeito estufa, reforçando a necessidade de transformar o modelo agrícola. No Brasil, 76% das terras agricultáveis ainda estão concentradas nas mãos do agronegócio, enquanto a agricultura familiar, responsável por mais de 70% dos alimentos consumidos internamente, segue com acesso limitado à terra e recursos.
A Reforma Agrária Popular e a atuação do MST são fundamentais para garantir o acesso à comida saudável e a construção de uma soberania alimentar no Brasil”, acrescenta Leonardo Ghisolf, cozinheiro e presidente do COMSEA Curitiba.
“A Reforma Agrária Popular, em sua busca por justiça social e fundiária, propõe a reorganização do sistema agroalimentar brasileiro, começando pela garantia da terra a quem nela trabalha e a respeita”, explica Gabriel Francisco, nutricionista e integrante do setor de produção do MST no Paraná. “Essa produção organizada de forma cooperada e em harmonia com a natureza representa um caminho concreto para a soberania alimentar no país.”

Esses números evidenciam que o direito à alimentação — um princípio constitucional e humano — ainda é violado diariamente. E é nesse contexto que o MST reafirma seu compromisso com a Reforma Agrária Popular e a produção agroecológica como caminhos concretos de transformação social.
Hoje, cerca de 730 milhões de pessoas vivem em situação de fome crônica e 2,8 bilhões não conseguem manter uma dieta nutritiva. No Brasil, o cenário é alarmante: 64,2 milhões de pessoas enfrentam algum grau de insegurança alimentar, o que representa aproximadamente 30% da população.
Nesse contexto, a Reforma Agrária Popular, proposta pelo MST, assume papel central na luta pelo direito à alimentação saudável. O Movimento defende que o acesso à terra e o fortalecimento da agricultura familiar são pilares fundamentais da soberania alimentar. Nos assentamentos e acampamentos, a produção agroecológica tem mostrado que é possível alimentar o povo com qualidade, respeitando a natureza e fortalecendo os laços comunitários.

O MST, ao longo de suas quatro décadas de luta, construiu uma ampla rede de produção e distribuição de alimentos orgânicos, provando que o enfrentamento à fome passa também pela organização popular e pela valorização do trabalho coletivo. A comida cultivada nas áreas da Reforma Agrária é símbolo de resistência e de esperança em um modelo de sociedade que coloca a vida — e não o lucro — no centro das decisões.
A Reforma Agrária Popular é também uma ferramenta essencial para garantir o direito humano à alimentação adequada”, afirma Gabriel Francisco, lembrando que o princípio está previsto na Constituição e alinhado ao Guia Alimentar para a População Brasileira”.
Durante a pandemia, o MST reforçou sua prática de solidariedade com projetos como o Marmitas da Terra, Mãos Solidárias e Cozinhas Solidárias, que uniram campo e cidade. “A organização da classe trabalhadora em torno do Marmitas da Terra é um exemplo belíssimo de como a produção de alimentos saudáveis pode ser um instrumento potente na busca por justiça social”, aponta Gabriel.
“Ao pensar a produção do alimento e tendo o MST como fornecedor para cozinhas solidárias, nós temos um ciclo da comida de verdade — do plantio à destinação correta dos resíduos”
– Leonardo Ghisolf
Essas experiências de solidariedade expressam a força da organização popular e demonstram que, quando o povo se une, é possível enfrentar a fome com dignidade. As cozinhas coletivas, os mutirões e as doações de alimentos da Reforma Agrária mostraram na prática que alimentar é um ato político — e que a partilha é uma das maiores expressões de humanidade.
Alimentação, religiosidade e ancestralidade: o alimento como sagrado
A alimentação, em muitas culturas, é mais do que a necessidade fisiológica — é expressão de espiritualidade, identidade e ancestralidade. Nas religiões de matrizes africanas, o alimento é sagrado: conecta o corpo à natureza, representa a partilha e reforça o vínculo entre o humano e o divino. Preparar e oferecer comida é um ato de cuidado e comunhão, que ensina que nutrir-se é também respeitar a terra e os ciclos da vida.
Esses saberes ancestrais, transmitidos de geração em geração, ensinam caminhos mais equilibrados de se relacionar com a comida e com o ambiente. Ao valorizar o cultivo de alimentos sem veneno, o uso consciente dos recursos da natureza, dos bens comuns e o preparo coletivo, as comunidades reafirmam que a alimentação saudável é também um ato cultural e político, profundamente ligado à memória e à resistência dos povos.
“Agradecemos aos ancestrais e aos Deuses africanos por oferecer recursos sustentáveis na natureza”, afirma Fabiana das Graças Souza, Yalorixá da casa de santo Ilê Asé Alaketu Odé Arolegido e integrante do Arquivo e Memória do MST.
Dentro de uma cozinha de Axé, o alimento é fundamental: primeiro preparamos e depois ofertamos. Quando cozinhamos para o Sagrado, incluímos cânticos que chegam como rezas, assim nos aproximamos da espiritualidade.”
Esta, segundo Fabiana, é a herança dos ancestrais africanos e as comidas de Axé, que possuem um forte significado. Ela ressaltou que essas iguarias são oferecidas aos Deuses Ancestrais, sendo compartilhadas também entre os membros da comunidade. Para ela, o alimento representa uma partilha essencial, afirmando que sem ele não existe corpo de espécie nenhuma.

A ancestralidade afro-brasileira inspira também a mística e a pedagogia do MST, que entende o ato de cozinhar e partilhar o alimento como prática política e espiritual. “Pensar a comida, trazer para o debate, para a formação e para a mística é algo que transforma as pessoas e as aproxima”, reflete Leonardo Ghisolf.
Jornada Sem Terrinha e a relação das crianças com o alimento

Entre as muitas ações que fortalecem essa consciência está a Jornada Sem Terrinha, realizada todos os anos com a participação de milhares de crianças dos assentamentos e acampamentos. Com o lema “Sem Terrinha em ação: defender a natureza é defender o nosso chão”, este ano a jornada estimulou o aprendizado sobre alimentação saudável, cuidado com o meio ambiente e o papel das crianças na continuidade da luta por Reforma Agrária Popular.
Desde cedo, elas compreendem que plantar e comer bem são formas de cuidar da vida e do planeta, e que conecta as crianças do campo e da cidade por meio da agroecologia e do cuidado com a terra. “Na Jornada Sem Terrinha, as crianças são mestras também de conexão com a terra. É importante construir esse entendimento para as crianças que estão nos espaços urbanos, que infelizmente são limitadas dessa relação tão importante e constitutiva para o desenvolvimento infantil”, explica Carla Bueno, do setor de Produção do MST.
A comida de verdade vem da floresta, vem da natureza. Quanto menos transformações fazemos na comida, mais nutritiva ela fica. Resgatar nossa ancestralidade, no sentido de como os povos e comunidades tradicionais conviviam dentro das florestas, é um horizonte de como podemos produzir com maior biodiversidade.”
– Carla Bueno
Na visão do MST, “quanto mais biodiversidade na terra, maior a biodiversidade no prato. Para os povos e comunidades tradicionais, nossos ancestrais são os mestres e guardiões dessa sabedoria”. Essa pedagogia do alimento é uma forma de formação política e ambiental, especialmente para as crianças.
“É dando consciência, aproximando as crianças dessa realidade. As crianças Sem Terrinha do campo e da cidade precisam se encontrar para trocar sobre a importância da produção de alimentos saudáveis e da agroecologia”, reforça Bueno.
Alimento, meio ambiente e COP 30
Como mostrou a Jornada Sem Terrinha de 2025, discutir alimentação é também discutir o futuro do planeta. O cultivo de alimentos está diretamente ligado à preservação ambiental, ao uso racional da água e à mitigação das mudanças climáticas. Às vésperas da COP 30, que será sediada no Brasil, torna-se urgente incluir a produção de alimentos e a agroecologia no centro das políticas climáticas globais, reconhecendo os povos do campo, das águas e das florestas como protagonistas na defesa da terra e da vida.
Neste sentido, durante a Cúpula dos Povos, que ocorre junto à COP 30, em Belém, no próximo mês de novembro, o MST insistirá na convicção de que a transição ecológica passa por democratizar o acesso à terra e fortalecer a agroecologia. “Agroecologia é o caminho. Por meio dela garantimos saúde, sustentabilidade e valorização da comida de verdade”, afirma Leonardo Ghisolf.
Leonardo destaca ainda que, permeada pela Reforma Agrária, a agroecologia se torna um mecanismo estrutural de garantia de direitos. “Que cada vez mais se expanda essa atuação e que cada vez menos tenhamos veneno em nossos pratos! Comida para quem tem fome, terra para quem nela trabalha.”
Para Gabriel Francisco, “a busca pelo bem viver para todos e todas, com respeito, cuidado e justiça social, é um dos pilares dessa construção. A viabilidade econômica e a preservação ambiental caminham juntas, mostrando que outro modelo de desenvolvimento rural é possível.”
Deste modo, o Dia Mundial da Alimentação reafirma que a luta contra a fome, a valorização da ancestralidade e a defesa do meio ambiente fazem parte da mesma agenda: garantir o direito à comida de verdade, cultivada com respeito, partilhada com solidariedade e sustentada pela justiça social. Alimentar-se bem é um direito — e também um compromisso coletivo com o presente e o futuro da humanidade.
*Editado por Solange Engelmann