Reforma Agrária Popular

Assentamento Irmã Dorothy conquista posse total após 20 anos de luta

A vitória marca um novo capítulo na história do movimento Sem Terra em Quatis, garantindo direitos e a dignidade de mais de 45 famílias envolvidas

Assentamento Irmã Dorothy. Foto: Coletivo de Comunicação MST no Sul Fluminense 

Por Coletivo de Comunicação MST no Sul Fluminense 
Da Página do MST

Maio foi marcado por uma conquista histórica para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio de Janeiro. Após duas décadas de resistência, a regional Sul Fluminense celebrou, enfim, a conquista de um território há muito tempo desejado: a sede da antiga Fazenda das Pedras, localizada em Quatis, dentro do assentamento Irmã Dorothy. A ocupação deste casarão marca uma grande vitória e o início de um novo ciclo de lutas para mais de 45 famílias que continuarão organizadas para o poder público concluir a aplicação da Política da Reforma Agrária em sua integralidade.

A trajetória do assentamento Irmã Dorothy é marcada por resistência e perseverança. O assentamento surgiu da união de antigos acampamentos distribuídos em todo o estado do Rio de Janeiro. Ali, gerações nasceram em barracos de lona, plantam suas roças, construíram espaços coletivos improvisados e mantiveram vivo o sonho da Reforma Agrária Popular. Resistiram a ameaças de despejo, criminalizações na mídia e à indiferença de sucessivos governos. A fazenda, improdutiva há décadas e envolta em disputas judiciais, enfim está nas mãos de quem nela trabalha.

A antiga sede da Fazenda das Pedras, que fica no interior do assentamento, agora abrigará um Centro de Formação em Agroecologia para todo o Rio de Janeiro. Essa é uma conquista para toda a sociedade brasileira, para a classe trabalhadora. A organização do Centro de Formação em Agroecologia do MST é e será uma feliz e árdua frente de luta, uma vez que busca ressignificar um local marcado pela história escravocrata brasileira.

A ocupação da terra ocorreu há 20 anos, e a desapropriação, 10 anos depois. A listagem das famílias contempladas pela seleção ocorreu no dia 7 de agosto de 2025 e a entrega dos Contratos de Concessão de Uso (CCU) ocorreu ontem, dia 16 de outubro, o que significa que as famílias selecionadas já foram homologadas como beneficiárias da Reforma Agrária.

20 anos do assentamento Irmã Dorothy

Foto: Coletivo de Comunicação MST no Sul Fluminense 

O processo de construção do assentamento Irmã Dorothy começou em 2004, a partir da indicação da Fazenda da Pedra pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barra Mansa, uma entidade representativa dos trabalhadores rurais. O Sindicato apontou a fazenda como uma área passível de desapropriação para fins de Reforma Agrária. Em função dessa indicação, o Incra iniciou a verificação da propriedade e, em fevereiro de 2005, seu Laudo Agronômico de Fiscalização (LAF) confirmou a improdutividade do imóvel e recomendou sua desapropriação.

Determinadas a transformar aquele latifúndio ocioso em um lar digno, as primeiras famílias ocuparam a terra, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Barra Mansa. A reação do latifúndio foi imediata: ao tomar ciência da organização das famílias, os então proprietários da Fazenda ingressaram com uma ação para impedira ocupação, que foi convertida em reintegração de posse logo após a entrada das famílias na área. Por força de decisão judicial, as famílias do Irmã Dorothy foram obrigadas a permanecer em uma pequena área, correspondente a apenas 2% do imóvel, por nove longos anos.

A luta avançou em 2006, com a publicação do Decreto Presidencial que autorizava a desapropriação da fazenda. Embora autorizada, a ação judicial de desapropriação propriamente dita teve início somente em 2008. Embora a legislação determinasse que o INCRA deveria tomar posse do imóvel em 48 horas, essa decisão só ocorreu em outubro de 2014, seis anos após o início do processo judicial e oito anos depois do decreto desapropriatório. Além disso, por nove longos anos, uma decisão judicial obrigou as famílias do Irmã Dorothy a permanecerem em apenas 2% da área total do imóvel. O assentamento só foi reconhecido oficialmente em setembro de 2015, ainda sem o cadastro das famílias no programa de Reforma Agrária.

No apagar das luzes do ano de 2016, o governo de Michel Temer editou a Medida Provisória nº 759 (MP da Grilagem), posteriormente convertida na Lei nº 13.465/2017, que alterou profundamente a legislação relativa à política fundiária rural e urbana. A nova legislação, elaborada sem consulta pública e diálogo com movimentos sociais, marca uma ‘nova fase’ nitidamente voltada à mercantilização e à transferência de terras públicas para o domínio privado. Estruturalmente, a Lei alterou os mecanismos de obtenção de terras, o regime de consolidação de assentamentos e as formas de titulação.

Assentamento Irmã Dorothy. Foto: Coletivo de Comunicação MST no Sul Fluminense 

Entre as mudanças, destacou-se um novo sistema de seleção por pontuação para famílias beneficiárias, substituindo o critério anterior, que priorizava apenas acampados no local ou em assentamentos próximos. Essa alteração gerou insegurança entre as mais de 50 famílias do assentamento Irmã Dorothy, que já enfrentavam a pandemia. O INCRA realizou vistorias sem reconhecer formalmente os moradores, levando algumas a deixarem o assentamento com medo de exclusão ou despejo.

Pela nova lei, qualquer morador de municípios vizinhos – como Barra Mansa, Resende ou até mesmo cidades mineiras – passou a poder concorrer a lotes no Irmã Dorothy, ampliando a disputa e reduzindo as chances das famílias que lutaram historicamente pelo território. O antigo critério, que garantia prioridade aos acampados no local, foi extinto, aumentando a incerteza sobre o futuro do assentamento.

Em meio à pandemia do Covid-19, as famílias do assentamento realizaram duas ações de solidariedade com foco no combate à insegurança alimentar que afetou diversas pessoas em situação de vulnerabilidade no território de Quatis. Foram doados alimentos agroecológicos in natura ao hospital São Lucas, que foram preparados pela cozinha do próprio hospital para servir os pacientes internados e funcionários. Também foram servidas as “marmitas solidárias” preparadas pelas nossas famílias do assentamento, em parceria com a Igreja Nossa Senhora do Rosário, que disponibilizou a estrutura da cozinha para realizar a ação.

Foi nesse contexto que as famílias do Irmã Dorothy enfrentaram um novo e grave ataque contra seu direito à terra: em setembro de 2021, o Incra publicou o Edital n° 561/2021 para seleção de novos beneficiários. Este edital ignorava a situação das famílias que já residiam, produziam alimentos saudáveis e lutavam pela área há mais de uma década.

Diante dessa violação, a intensa organização e reivindicação das famílias resultou em uma Ação Civil Pública protocolada pela Defensoria Pública da União, que conseguiu a suspensão liminar do edital pela Justiça em primeira instância. Embora a decisão de suspensão tenha sido parcialmente revertida em abril de 2022 (com a determinação de apenas prorrogar o prazo de inscrição), a polêmica judicial e a posterior edição da nova Instrução Normativa n° 140/2023 do Incra (que rege o processo de seleção de famílias) levaram a Superintendência Regional do Incra a decretar o cancelamento definitivo do Edital 561/2021.

O desfecho dessa longa trajetória de luta veio com a publicação, em 2024, de um novo edital de seleção (nº 112/2024), regido pelas novas regras da Instrução Normativa n° 140/2023. Esses critérios passaram a priorizar as famílias acampadas, resultando na seleção de todas as famílias residentes no assentamento Irmã Dorothy.

Agora, após 20 anos de resistência, as 45 famílias do assentamento Irmã Dorothy conquistam seu lugar no Programa Nacional de Reforma Agrária, por meio do Processo nº 54000.143442/2024-54. Uma vitória que não é apenas um direito garantido, mas a materialização de anos de luta, organização e esperança.

Centro de Formação Agroecológica

Assentamento Irmã Dorothy. Foto: Coletivo de Comunicação MST no Sul Fluminense 

A antiga sede da Fazenda das Pedras, localizada no coração do assentamento, será agora o novo Centro de Formação em Agroecologia do Rio de Janeiro. A conquista foi celebrada com grande simbolismo: um cortejo de trabalhadores percorreu a estrada de terra até a sede, carregando ferramentas e erguendo bandeiras vermelhas, marcando o início de uma nova fase. 

A conquista ganha ainda mais força com a criação do Polo Agroecológico e de Produção Orgânica do Médio Paraíba do Sul, estabelecido pela Lei 10.789/25, de autoria da Deputada Estadual Marina do MST (PT). O Polo Agroecológico e de Produção Orgânica contemplará integralmente os municípios da Região Hidrográfica Médio Paraíba do Sul, segundo o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI/RJ), promovendo desenvolvimento sustentável, segurança alimentar e apoio a agricultores familiares por meio de políticas públicas e financiamentos diversificados.

Em 2024, o assentamento fez parte do projeto Afluentes do Rio, promovido pela Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), coordenado pela AS-PTA e financiado pelo Agroecology Fund, organização dedicada ao apoio a experiências em agroecologia em diversos países. Por meio do projeto Periferia Viva – realizado pela Escola Estadual de Formação e Capacitação à Reforma Agrária (ESESF) e desenvolvido pelo Levante Popular da Juventude, MST e Movimento Brasil Popular, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – que acontece desde 2024 na região Sul Fluminense – as famílias implantaram dez sistemas agroflorestais baseados na agricultura familiar e agroecologia. Ao todo, foram plantadas 1.500 mudas de diferentes espécies. A ação também compôs o Plano Nacional “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, que tem entre os seus objetivos fortalecer a produção de alimentos saudáveis nas áreas de assentamentos e acampamentos do MST e plantar 100 milhões de árvores em dez anos.

Os SAF’s de 400 m² com potencial para expansão têm como culturas principais as frutíferas, dentre elas os citros, a banana e as frutas da mata atlântica, além de legumes como abóbora, feijão e quiabo. Os mutirões aconteceram depois de um longo planejamento que envolveu a coleta de solo para diagnóstico da área, um estudo qualitativo sobre como as famílias usam o espaço para produção e o levantamento de insumos agroecológicos para as áreas.

Para o MST-RJ, a conquista do território total do assentamento representa mais do que o direito à terra. É a prova do que a luta coletiva pode vencer, mesmo diante da lentidão do Estado e da violência do latifúndio. Cada palmo de terra conquistado é um passo na construção de um país mais justo.

Assentamento Irmã Dorothy. Foto: Coletivo de Comunicação MST no Sul Fluminense 

*Editado por Fernanda Alcântara