Denúncias sobre agrotóxicos

Denunciar não basta: o desafio de enfrentar a guerra química dos agrotóxicos no Brasil

Oficina “Denúncias sobre agrotóxicos: rumo a uma estratégia de acompanhamento e respostas em casos de intoxicação” no Brasil integra a programação do Congresso Brasileiro de Agroecologia, que vai até sábado (18), em Juazeiro (BA)

Tenda Rachel Carson na manhã desta sexta-feira (17). Foto: Nieves Rodrigues

Da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida

Na manhã desta sexta-feira, (17), a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida realizou a Oficina “Denúncias sobre agrotóxicos: rumo a uma estratégia de acompanhamento e respostas em casos de intoxicação” no Brasil. A atividade faz parte da programação da Tenda Rachel Carson no Congresso Brasileiro de Agroecologia em Juazeiro, Bahia. 

Em diferentes regiões do Brasil, denúncias de contaminação por agrotóxicos chegam por diversos canais — ouvidorias, secretarias estaduais, órgãos de defesa do consumidor e plataformas do governo federal. Mas, apesar da multiplicidade de portas de entrada, há pouca efetividade nas respostas e quase nenhum acompanhamento do ciclo da denúncia. As vítimas de intoxicação acabam sem retorno e, muitas vezes, sem acesso a medidas de proteção e reparação.

Diante disso, movimentos sociais se reuniram com representantes de diversos órgãos do governo para discutir a necessidade de criar uma estratégia de gestão e acompanhamento das denúncias sobre agrotóxicos. 

O espaço coordenado por Alan Tygel e Jakeline Pivato da Campanha Contra os Agrotóxicos, visa provocar um diálogo para a criação de um sistema unificado de informações, capaz de receber, encaminhar, cobrar e acompanhar respostas sobre casos de contaminação. “Gostaríamos de construir uma estratégia de denúncia para receber diretamente essas denúncias em um local com capacidade de ação e mobilização rápida para mandar pessoas aos locais e também encaminhar respostas para os órgãos competentes”, afirmaram. 

Foto: Nieves Rodrigues

Nesse sentido, Daniel Peter, do Ministério do Meio Ambiente, salientou que realmente há uma lacuna nesse tema. “Precisamos organizar melhor essas denúncias. Hoje a informação está pulverizada, como os próprios agrotóxicos. É fundamental juntar os dados para entender o real impacto dessas substâncias no país”, afirmou.

A iniciativa do debate provocou a necessidade de criar uma articulação entre órgãos como o Ministério da Saúde, Direitos Humanos, Meio Ambiente, Agricultura e Desenvolvimento Agrário. Segundo Gabriela, do Ministério da Saúde, há mais de 300 sistemas de informação em saúde que tratam de dados sobre as condições de vida da população — um potencial imenso, mas ainda pouco integrado. E que pode ser melhor utilizado para agregar maiores dados sobre esse tema. 

“A vigilância em saúde depende de informação. O desafio é sistematizar os dados e criar um fluxo que conecte as denúncias feitas nos territórios às respostas institucionais”, destacou. 

Segundo dados oficiais, 615 novos agrotóxicos foram liberados no Brasil apenas em 2025. Desde 2019, o país lidera o ranking mundial de liberação de venenos para uso agrícola. Substâncias como o 2,4-D, associadas a danos neurológicos e hormonais, chegaram a ser proibidas, mas voltaram a circular meses depois, o que acende o alerta sobre o avanço de substâncias potencialmente nocivas à saúde humana e ao meio ambiente.

O peso da prova: vítimas ainda precisam comprovar o veneno

Diante desse cenário, a ausência de integração entre os sistemas faz com que as vítimas enfrentem um duplo abandono: o da exposição ao veneno e o da falta de resposta do poder público. 

“A gente tem feito denúncias para as ouvidorias dos órgãos competentes, porém, sem retornos concretos e efetivos, quando muito o fazem dizem que as nossas justificativas não são apropriadas”, denunciou Raimundo Alves (Didi), da coordenação da Associação Comunitária de Educação em Saúde e Agricultura (ACESA) e da Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA).  

Foto: Nieves Rodrigues

Somente no primeiro semestre de 2025, pelo menos 100 novas comunidades em 25 municípios maranhenses registraram a contaminação por agrotóxicos. Ao longo de 2024, foram monitorados mensalmente os efeitos danosos das frequentes pulverização aérea de veneno em 231 localidades espalhadas por 35 municípios maranhenses, com destaque para as comunidades rurais mais vulneráveis, que dependem diretamente da agricultura familiar para sua subsistência. Os casos incluem pulverização aérea sobre áreas habitadas, contaminação de poços e relatos de intoxicação de famílias e animais.  

Na mesma perspectiva, Noemi Krefta, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), ressaltou os desafios para quem vive nos territórios. “É difícil a gente conseguir fazer a denúncia e de fato ter uma solução quando as pessoas são atingidas diretamente pelos agrotóxicos, e é mais difícil ainda, quando a intoxicação vem de forma indireta.” 

Segundo Naiara Bittencourt, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social (MDS), um dos grandes entraves relatados pelos ministérios é o ônus da prova, a responsabilidade de comprovar a intoxicação ainda recai sobre as próprias vítimas. “A pessoa sofre o dano e ainda tem o ônus de provar o que aconteceu — quais substâncias foram usadas, qual ingrediente ativo causou o problema. Isso é quase impossível sem apoio técnico especializado”, afirmou.

Há também o ônus de perder o direito de ir e vir no território, uma vez que, as denúncias vêm acompanhadas de coerção e ameaças para quem permanece exposto. É o que Carmen Quilombola, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) evidenciou em sua intervenção. 

“Quando a gente passa por esse tipo de envenenamento, se sente inseguro em permanecer no território. Pois, geralmente, a medida que se toma é nos retirar do local e o fazendeiro é quem tem direito de permanecer, mesmo envenenando o nosso território”, denunciou. 

A pulverização aérea ameaça diretamente a produção agroecológica dos povos do campo. Dioneia Soares Ribeiro, agricultora que planta o arroz orgânico no assentamento Lagoa do Junco, em Tapes, relatou a situação local. “Sofremos bastante com a pulverização aérea, tivemos o caso de Santa Rita, onde o município ficou dentro do polígamo de exclusão proibindo a contaminação. Mas, já houveram novas denúncias de que a pulverização aérea seguiu e contaminou nossas lavouras.”

Articulação popular e vigilância nos territórios

Diante dos fatos, sabe-se que esse debate só é possível pelo papel que a vigilância popular realiza em todos os estados. Movimentos e organizações sociais desenvolvem práticas e metodologias de monitoramento e denúncias junto a pesquisadores e universidades, registrando contaminações em água, leite materno, alimentos e solo.

Para Aline Gurgel, pesquisadora e integrante da Campanha, essas informações são preciosas: “As pesquisas de base trazem dados robustos sobre contaminação, mas muitas vezes acabam sendo inutilizadas. Elas precisam ser reconhecidas como parte do sistema de vigilância.”

Já Patrícia Dias, da Secretaria da Presidência do Comitê Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), lembrou que o tema das denúncias é fundamental para a implementação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), uma vez que, “não há como discutir agroecologia sem enfrentar o problema dos agrotóxicos”, afirmou. Ela lembra que, antes mesmo da instalação do Comitê Gestor, já chegaram denúncias graves, como o caso recente envolvendo comunidades Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

Por isso, mais do que uma provocação para a criação de equipes técnicas interministeriais com capacidade de atuação emergencial com a coleta de amostras e elaboração de laudos que deem base às denúncias e permitam responsabilização de empresas e produtores, essa também é uma reivindicação da sociedade civil organizada.

*Editado por Solange Engelmann