Sul Global
“Nossa voz precisa ser ouvida constantemente” afirma conselheira dos BRICS
Conselho popular do BRICS nasce em meio à expansão do bloco e fortalece a construção de agendas que refletem as necessidades concretas das populações do Sul Global, respeitando diversidade e soberania

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Em 2025, com o Brasil sendo país-sede dos BRICS, o reconhecimento oficial do Conselho Civil dos BRICS marca um novo momento para a participação dos povos nas decisões do bloco que hoje reúne 11 países, mais de 40% da população mundial e cerca de 40% da economia do planeta. A decisão, registrada na Declaração de Kazan, em outubro de 2024, abriu um espaço que há muito tempo era reivindicado pelos movimentos populares: sentar à mesa onde as grandes estratégias internacionais são traçadas.
Segundo Fabiano Mielniczuk, professor da UFRGS e integrante do Conselho Civil, já existiam iniciativas de participação desde 2015, através do Fórum Civil. Mas foi nos últimos dois anos que o processo ganhou força, muito por conta da articulação promovida pelo Brasil e da presença ativa de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a ALBA Movimentos, que trouxeram para o debate a perspectiva concreta das lutas territoriais, das soberanias populares e da integração entre os povos do Sul Global.
A criação do Conselho não foi anúncio de gabinete: foi um processo de massa. As discussões começaram no Fórum Civil de julho de 2024, na Rússia. Já no Brasil, entre novembro de 2024 e janeiro de 2025, os movimentos iniciaram a construção do Conselho Popular dos BRICS — nome adotado para destacar que essa articulação nasce de baixo para cima.
Durante a presidência brasileira do BRICS em 2025, o processo envolveu 120 organizações dos países-membros. Na primeira etapa, realizada no Brasil, 57 entidades reuniram cerca de 200 pessoas: movimentos do campo e da cidade, juventudes, coletivos de mulheres, negros, indígenas, grupos de pesquisa e organizações da sociedade civil. A segunda etapa, internacional, entre maio e junho de 2025, contou com 63 organizações de outros países.
Os debates se organizaram em sete grupos de trabalho: saúde, educação, ecologia, cultura, finanças, segurança da informação cibernética e institucionalidade. Cada grupo com coordenação compartilhada entre diferentes países, um sinal claro de que ninguém manda mais que o outro.
A força dos movimentos populares

Mielniczuk ressalta que a participação dos movimentos populares é fundamental porque a sociedade civil brasileira é extremamente diversa, com muitas pautas e interesses, algumas vezes influenciados por agendas ocidentais que podem não ser construtivas do ponto de vista dos BRICS. “Quanto mais os movimentos populares participam, mais conseguimos propor uma agenda que atenda às preocupações locais e melhore a vida das pessoas”, explica o professor.
A entrada do MST e da ALBA trouxe legitimidade, memória de luta e articulação internacional. Essa presença recorda a força que os movimentos populares tiveram nos anos 1970 e 1980, especialmente na disputa democrática no Brasil. Mesmo com a posterior profissionalização das ONGs, a participação direta da base segue insubstituível.
Ah Maftucgan, conselheiro da Indonésia, lembra que esse processo dialoga com a história da Conferência de Bandung e do Movimento dos Não Alinhados: “A cooperação deve se basear no respeito entre os povos e na soberania. O Sul Global tem conhecimento. Só precisamos criar condições para colocá-lo em prática”, afirmou.

Na reunião do Conselho realizada no Rio de Janeiro em julho de 2025, a conselheira russa Victoria Panova reforçou a continuidade do processo. “Nossa voz precisa ser constante. O Conselho Civil deve ter força e estrutura. Os BRICS não são um bloco contra ninguém, mas um espaço para construir uma ordem baseada na amizade, na paz e na justiça.”
Durante a 17ª Cúpula do BRICS, nos dias 6 e 7 de julho de 2025, no Rio de Janeiro, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, apresentou diretamente aos chefes de Estado as recomendações do Conselho Popular, a primeira vez na história em que a sociedade civil falou na mesa principal dos BRICS.
A cooperação precisa passar pelos povos. Os governos tratam dos grandes temas, mas a cooperação concreta, na cultura, na tecnologia, na produção, só pode ser feita pelas organizações populares.”
— João Pedro Stedile, do MST

Stedile enfatizou que “a cooperação tem que passar necessariamente por organizações da sociedade civil. Porque os governos vão aproveitar da grande política, os grandes temas da conjuntura, porém, nós precisamos construir canais mais concretos de cooperação tecnológica, de cooperação cultural, e isso só poderá ser feito pelos povos”. Entre as propostas apresentadas, está a criação de uma big tech pública do Sul Global, para enfrentar a dependência tecnológica que hoje concentra dados e poder político nas mãos das plataformas privadas.
Respeito à diversidade e soberania
A Declaração do Rio de Janeiro reafirma que os BRICS defendem uma ordem internacional mais justa, baseada na soberania dos povos, na solidariedade e na justiça, e não na lógica de dominação do Ocidente. Mielniczuk explica que é fundamental enxergar os BRICS como uma estratégia dos Estados que fazem parte do grupo, e não apenas como governos de orientações políticas específicas.
“Esse esforço é vital para melhorar a situação crítica da ordem imposta pelo Ocidente, que muitas vezes é liberal e exclusiva”, observa o professor. “Precisamos manter os BRICS além dos particularismos dos Estados, buscando aproximação entre as sociedades”. O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado em 2014 e hoje presidido por Dilma Rousseff, é o principal instrumento desse projeto. Com capital autorizado de 100 bilhões de dólares e 96 projetos já aprovados, o banco financia infraestrutura e desenvolvimento sustentável sem impor condicionalidades políticas aos países.
Não podemos repetir a lógica imperialista dizendo aos outros povos como eles devem viver. O caminho é construir experiências em comum, com respeito.”
— Fabiano Mielniczuk, Conselheiro do BRICS
A Declaração do Rio de Janeiro, no documento final da 17ª Cúpula, reafirma o compromisso com “o espírito do BRICS de respeito e compreensão mútuos, igualdade soberana, solidariedade, democracia, abertura, inclusão, colaboração e consenso”. O texto enfatiza que o agrupamento busca “uma ordem internacional mais representativa e justa, de um sistema multilateral revigorado e reformado”.
Diferentemente de instituições tradicionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, o Novo Banco de Desenvolvimento não impõe condicionalidades políticas e opera com governança igualitária entre seus membros. Presidido pela ex-presidenta brasileira Dilma Rousseff, o banco expandiu seu quadro para 11 membros, incluindo recentemente Colômbia e Uzbequistão.

Mielniczuk adverte que “devemos evitar discutir com parceiros, como Irã, China, Índia e Rússia, o que pensamos ser o correto para suas vidas, pois isso apenas reproduz a prática imperialista ocidental”. Em vez disso, o professor defende que o foco deve estar em experiências concretas, respeitando a diversidade e encontrando áreas de convergência.
O reconhecimento do Conselho Civil dos BRICS na declaração final dos chefes de Estado, nos parágrafos 115 e 123 do documento, é considerado um marco histórico para a participação da sociedade civil no bloco. No entanto, os representantes do colegiado apontam que a luta pela institucionalização e financiamento permanente segue em curso.
O Conselho Popular do BRICS no Brasil anunciou um segundo encontro para dezembro deste ano, no Rio de Janeiro. A ideia é reunir entre 250 e 300 participantes, incluindo cerca de 10 a 15 delegados por país-membro, além de representantes de outras nações e organizações. E a construção segue: É tempo de fortalecer a integração e solidariedade entre os povos do Sul Global.
*Editado por Solange Engelmann



