Ciência e Tecnologia

Máquinas agrícolas chegam reforçando a parceria Brasil-China

Enquanto as tensões comerciais com os Estados Unidos se acentuam, o Brasil fortalece sua parceria estratégica com a China

Foto: Tang Xu

Por Inaiá Misnerovicz
Da Agência MT/PUC-SP

O mapa da agricultura brasileira, geralmente descrito a partir das grandes lavouras do Centro-Sul, começa a ganhar novos contornos. Nos últimos meses, uma combinação de fatores geopolíticos e iniciativas locais têm provocado mudanças no modo como o País pensa sua produção de alimentos. De um lado, os Estados Unidos, tradicional parceiro comercial do Brasil, anunciam tarifas que podem elevar em até 50% o valor de importação de produtos brasileiros. De outro, a China expande sua presença no nordeste brasileiro, num movimento que é também fortalecido pela atuação conjunta no âmbito dos Brics. A aproximação com a China ganha força como uma alternativa não apenas comercial, mas também tecnológica. Essa parceria se materializa, hoje, de forma concreta, no semiárido nordestino. Recentemente, cooperativas e comunidades rurais nos estados do Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte e Paraíba receberam um lote de máquinas agrícolas destinadas a fortalecer a agricultura familiar. 

O comboio que atravessou Nordeste levava tratores, colheitadeiras e semeadoras que prometem um novo ciclo. Para agricultores acostumados com o trabalho braçal, a chegada das máquinas é uma grande mudança. São equipamentos de pequeno e médio porte, adaptados às dimensões das propriedades familiares, e pensados para lidar com os desafios específicos do semiárido. 

A distribuição dos equipamentos integra uma política mais ampla de aproximação entre Brasil e China, que têm intensificado a cooperação em setores considerados estratégicos. No campo agrícola, essa parceria representa uma alteração significativa no equilíbrio de forças. Há décadas, os Estados Unidos influencia diretamente o modelo produtivo brasileiro, seja pela venda de máquinas, sementes, insumos ou pelo controle de parte relevante do mercado global de grãos. Agora, com investimentos voltados à agricultura familiar, a China sinaliza disposição para atuar em um terreno que, historicamente, sempre recebeu pouca atenção dos parceiros internacionais.

Além da mecanização, o acordo prevê a instalação de um laboratório de inteligência artificial voltado para a agricultura familiar. O projeto, fruto de colaboração entre o Instituto Nacional do Semiárido (INSA) e a Universidade Agrícola da China, pretende desenvolver ferramentas tecnológicas aplicadas à realidade do pequeno produtor: sistemas de previsão climática, sensores para manejo da água, inteligência de plantio e colheita, entre outras inovações ainda raras no Brasil rural. 

Maria Gomes é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e coordenadora do projeto de mecanização. Ela diz que parceria simboliza uma chance de corrigir uma injustiça histórica e que a agricultura familiar no Nordeste foi empurrada para o atraso pelas políticas públicas que nunca chegaram por completo. Num território onde só 3% da produção é mecanizada, a ausência de máquinas muitas vezes pode determinar se o agricultor continua no campo ou precisa deixá-lo. Ela reforça que a mecanização não pode caminhar sozinha: precisa estar integrada à agroecologia, à produção de bioinsumos e ao fortalecimento das políticas públicas. E conclui que a chegada das máquinas diminui a penosidade do trabalho, amplia a produção e talvez abra caminho para que mais jovens queiram ficar no campo. 

Enquanto isso, no cenário internacional, o tarifaço do presidente norte-americano Donald Trump age como um lembrete das fragilidades do Brasil diante das políticas protecionistas dos Estados Unidos. Embora as tarifas afetem diretamente commodities como açúcar, café, cacau e carne bovina, e não a agricultura familiar, elas deixam evidente o quanto o país segue vulnerável às oscilações dos interesses externos. Em meio a essas tensões, a aproximação com a China ganha peso não apenas como alternativa comercial, mas como porta para uma outra lógica de desenvolvimento agrícola.

Para João Pedro Stedile, dirigente histórico do MST, a agricultura brasileira foi moldada, ao longo das últimas décadas, sob bases determinadas pelo capital norte-americano. Esse modelo priorizou grandes propriedades, monoculturas, dependência de insumos industriais e exportações voltadas ao mercado internacional. Stedile analisa que a entrada da China representa outro tipo de relação. Se no caso das grandes commodities a presença chinesa ainda está centrada na compra de soja, no semiárido a lógica é distinta: trata-se de fortalecer a agricultura camponesa, voltada ao mercado interno e à soberania alimentar. Isso pode representar o início de um projeto nacional capaz de reduzir desigualdades profundas entre o agronegócio exportador e a produção de alimentos básicos.

Stedile também aponta que as tarifas impostas pelos Estados Unidos ajudam o País a enxergar o quanto é arriscado depender de modelos de produção subordinados a interesses externos. Ele avalia que as máquinas chinesas se integram a um modelo alternativo de desenvolvimento, voltado à produção de alimentos para o povo brasileiro, e não à expansão do mercado global.

Ainda que as tarifas impostas pelos Estados Unidos não atinjam diretamente os agricultores familiares, elas ajudam o Brasil a enxergar o quanto é arriscado depender de modelos de produção subordinados a interesses externos. As máquinas chinesas, ao contrário das tecnologias tradicionais importadas, se integram a um modelo alternativo de desenvolvimento: um modelo que valoriza a produção de alimentos para o povo brasileiro, com preços acessíveis e técnicas adaptadas ao clima e ao solo do Nordeste.

As implicações sociais da entrada dessas tecnologias também são sentidas. Maria Gomes destaca que a juventude rural, muitas vezes desmotivada pela falta de perspectiva no campo, pode se ver mais envolvida com o uso das novas ferramentas. Para ela, a juventude entende rápido essas tecnologias e, quando participa, transforma a comunidade inteira. Mas Maria adverte que a mecanização e a inteligência artificial só terão impacto real se vierem acompanhadas de capacitação, geração de renda, acesso à água, crédito e melhoria das condições de vida.

Para Stedile, não há futuro para o país enquanto continuar dependente do capital estrangeiro. Ele defende um projeto de desenvolvimento baseado na agricultura familiar, apoiado por uma ampla Reforma Agrária e por investimentos em ciência, tecnologia e inovação. Nesse horizonte, a cooperação com a China pode desempenhar um papel estratégico ao permitir avanços em bioinsumos, sementes agroecológicas, energias renováveis e máquinas acessíveis para os pequenos produtores.

A cooperação Brasil-China no semiárido nordestino, portanto, vai muito além da entrega de tratores. Para os movimentos populares, trata-se de um passo importante rumo à soberaniaalimentar e à construção de um modelo agrícola que não reproduza as desigualdades impostas pelo agronegócio. O objetivo não é depender de importações, mas criar condições para o desenvolvimento de tecnologia própria, fortalecendo instituições públicas e consolidando uma produção voltada à autonomia.

A presença chinesa, somada aos efeitos da disputa geopolítica mundial, transforma o Nordeste em um laboratório vivo de experiências. Nos próximos anos, a região pode se tornar referência na criação de tecnologias adaptadas ao clima semiárido, combinando práticas agroecológicas, conhecimento tradicional e inovação digital. Ao mesmo tempo, a história que se desenrola ali mostra como as decisões tomadas em Washington, Pequim ou Brasília chegam até a vida de quem acorda cedo para plantar feijão, milho, mandioca ou hortaliças.