Ofensiva
Agro tenta derrubar plano de proteção a defensores de direitos humanos no Congresso
Sete Projetos de Decreto Legislativo pedem a suspensão do plano que foi instituído no início de novembro

Por Caroline Oliveira | São Paulo (SP)
Do Brasil de Fato
Sete Projetos de Decreto Legislativo (PDL’s) de membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) no Congresso Nacional pedem a suspensão do Decreto nº 12.710, que instituiu o Plano Nacional de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PlanoDDH), em 5 de novembro deste ano. Os primeiros projetos foram protocolados dois dias após a publicação do documento.
O pesquisador Antonio Neto, da plataforma Justiça Global, que integra o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), afirma que os projetos geraram “muita preocupação” entre as organizações da sociedade civil que acompanham a política pública de proteção a defensores de direitos humanos.
“Há medo e receio de que essa movimentação dentro do Congresso possa atacar mais uma vez uma ação construída pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil no sentido de dar concretude à política nacional de proteção, pela qual há 20 anos a gente vem lutando”, afirma Neto. “Essa ofensiva é vista com muita gravidade porque é um ataque direto a uma política pública essencial para a proteção das pessoas defensoras de direitos humanos, que é super importante.”
Entenda o plano
O plano é fruto do Grupo de Trabalho Técnico (GTT) Sales Pimenta, no qual as organizações da sociedade civil sistematizaram as ações necessárias para a efetivação do programa e de outros instrumentos de proteção, como meios de financiamento e papel dos ministérios.
Segundo Neto, o plano é mais amplo do que o Programa de Proteção, ao estabelecer cooperação interministerial e entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios com o objetivo de fortalecer ações coordenadas e priorizar formas de proteção coletiva e territorial para grupos mais vulneráveis. Entre eles estão comunidades indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais; comunicadores e ambientalistas; e defensores de direitos humanos no campo e nas periferias urbanas.
“Ele [o plano] traz disposições gerais sobre a proteção individual e coletiva, sobre os instrumentos de financiamento, monitoramento e avaliação da política. É um decreto mais geral, com atribuições mais amplas do que seria esse Plano Nacional de Proteção, e as ações concretas seriam construídas e dispostas em outros instrumentos jurídicos feitos pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania”, afirma Neto.
O documento responde a uma determinação da Justiça Federal (TRF4) decorrente de uma apelação do Ministério Público Federal (MPF), que ordenou a criação de um plano nacional de proteção. O decreto integra, ainda, o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso de João Canuto de Oliveira, conhecido como Sales Pimenta, assassinado em 1982 por latifundiários em Marabá (PA).
A condenação do Brasil pela CIDH também definiu que o plano deveria ser institucionalizado por meio de um texto legislativo mais robusto, que não é o caso de decretos ou portarias, que podem ser modificados facilmente pelos governos. No entanto, Maria Tranjan, coordenadora de Proteção e Participação Democrática da Artigo19, que também integra o CBDDH, explica que o cenário do Congresso Nacional hostil aos defensores de direitos humanos provocou um recuo no formato
“Esses PDLs, essas movimentações legislativas que estão acontecendo agora com o objetivo de revogar e impedir a efetividade desse decreto mostram justamente essa preocupação que a gente teve no âmbito do grupo de trabalho técnico. Talvez, via poder legislativo, a gente não conseguiria, de forma tão rápida e tão efetiva, garantir a institucionalização dessas medidas”, afirma.
Ainda assim, de acordo com Tranjan, o governo federal fez um compromisso com os integrantes do grupo de trabalho de enviar ao Congresso um projeto de lei. “Por isso o GTT pensou em propor o anteprojeto de lei, mas também que se caminhasse paralelamente com a publicação do decreto que institucionalizasse o plano. Por isso fizemos uma escolha política de conseguir avançar de alguma forma através de decreto, ainda que entendendo que esse não é o tipo normativo que traz mais robustez, que traz mais segurança para a existência das medidas de proteção”, acrescenta a coordenadora da Artigo19.
O que acontece se o decreto cair?
O decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) substitui o nº 9.937, de 24 de julho de 2019, editado no governo Jair Bolsonaro (PL), que detalhou regras adicionais para o programa. Os PDLs, portanto, não visam suspender o programa em si, mas o decreto que cria o Plano Nacional de Proteção. Caso sejam aprovados, Tranjan avalia que o cenário apenas retornaria ao status atual, já que o plano, instituído no início do mês, ainda depende de regulamentação por meio de portarias.
“A publicação do decreto que institucionaliza o plano cria para o Estado brasileiro a missão de implementar uma série de medidas descritas no plano de proteção, que não constam do texto do decreto. Isso seria posteriormente publicado a partir de portaria ministerial, que também é um tipo normativo com um peso ainda mais baixo do que o decreto, em alguma medida”, explica.
“Esses PDLs retrocedem à situação que temos hoje, que existe há mais de 20 anos, mas que tem uma série de dificuldades estruturais na forma como funciona, nas medidas existentes, nas possibilidades do Estado, em termos de garantir medidas de proteção compatíveis com a realidade concreta de violência que defensoras e defensores vivem a nível nacional”, acrescenta.
Ainda que o decreto do governo anterior não tenha trazido mudanças significativas para o programa, os especialistas avaliam que sua situação se agravou durante a gestão Bolsonaro, tanto pelo esvaziamento do orçamento destinado às políticas de proteção quanto pelo impacto sobre a credibilidade dessas ações. Segundo Tranjan, isso ocorreu porque Bolsonaro, em particular, “constantemente estigmatizava pessoas defensoras de direitos humanos”.
Os Projetos de Decreto Legislativo
No PDL 943, a senadora Tereza Cristina (PP-MS) afirma que o plano “converte a política de direitos humanos em instrumento estatal de amparo político e institucional a grupos militantes, sobretudo aqueles mobilizados em conflitos agrários”. A parlamentar, ministra da Agricultura do governo de Jair Bolsonaro (PL), afirma ainda que o plano “fragiliza a segurança jurídica, distorcendo a política fundiária para atender interesses de grupos organizados” e cita nominalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O PDL 944, do senador Jaime Bagattoli (PL-RO), repete os mesmos argumentos textualmente. O correligionário de Bolsonaro afirma que o plano “legitima politicamente invasões, reclassificando invasores como defensores de direitos humanos”, “cria incentivos para novas invasões, ao abrir a porta para que grupos ocupem terras visando obter proteção estatal” e cita a fragilização da segurança jurídica nos mesmos termos.
Na Câmara, na justificativa do PDL 938, o deputado federal Rodolfo Nogueira (PL-MS) argumenta que o decreto presidencial “abre espaço para a inclusão de movimentos criminosos que promovem invasões de propriedades”. A deputada Júlia Zanatta (PL-SC), no PDL 937, fala em “proteção e financiamento de organizações que atuam fora da legalidade, especialmente no meio rural, sob a justificativa de promover ‘direitos humanos’ ou ‘acesso à terra’, como o MST”. Os mesmos argumentos são repetidos nos PDL 939, de Pedro Lupion (Republicanos-PR), 941, do deputado Sergio Souza (MDB-PR), e 1008, de Lucio Mosquini (MDB-RO).
Escalada da violência contra defensores
Os PDLs foram protocolados em meio à escalada da violência contra defensores de direitos humanos. De acordo com o levantamento Na Linha de Frente, elaborado pela a Justiça Global e a Terra de Direitos, 486 casos de violência contra defensores foram registrados entre 2023 e 2024, incluindo 55 assassinatos. Em 80,9% dos casos, as vítimas atuavam como defensores da causa ambiental e territorial. O Pará, que é palco da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), concentra 94% dos registros com um caso a cada 36 horas.
O relatório Violência Contra Povos Indígenas no Brasil, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), mostrou que pelo menos 200 indígenas foram assassinados também em 2024. Roraima, onde houve registro de 57 mortes, Amazonas, 45, e Mato Grosso do Sul, 33, lideram os números de casos. No mesmo ano, segundo o levantamento Conflitos no Campo Brasil, organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram contabilizadas 2.185 ocorrências de conflitos no campo, com 13 assassinatos. O maior registro em 40 anos, desde o início da série histórica, em 1985.
Dados do Ministério dos Direitos Humanos mostram que 1.414 pessoas vivem sob medidas de proteção por conta de ameaças relacionadas à defesa dos direitos humanos em todo o Brasil. Do total, 80% são lideranças que atuam em causas ligadas ao meio ambiente, à terra e ao território. Também estão incluídas pessoas envolvidas no combate ao racismo, à LGBTfobia e a outras formas de violação de direitos.
Entre as pessoas protegidas estão indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos, integrantes de religiões de matriz africana, comunidades de fundos e fechos de pasto, localizadas no norte e oeste da Bahia, extrativistas e geraizeiros. Os perfis dos principais ameaçadores variam conforme a região, mas, no geral, são fazendeiros, garimpeiros, extrativistas ilegais, empresas, madeireiros, agentes de segurança pública e grileiros.
O que diz o Ministério dos Direitos Humanos
Em nota, a pasta saiu em defesa do decreto que instituiu o plano e afirmou que o documento “não menciona movimentos sociais, partidos, organizações ou coletivos específicos”. Além disso, disse que “a inclusão de uma pessoa no programa não é automática: depende de solicitação formal, verificação de ameaças concretas e análise multidisciplinar de risco”.
Confira a nota na íntegra:
O Decreto nº 12.710, de 5 de novembro de 2025, foi editado dentro das competências constitucionais do Presidente da República e em cumprimento a decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Justiça Federal (TRF4), que condenaram a União pela ausência de um plano nacional de proteção a pessoas ameaçadas por defender direitos humanos.
Ao instituir o Plano Nacional de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (Plano DDH) o decreto cria um arranjo intersetorial para organizar ações que já são executadas no escopo de atuação de cada um dos órgãos envolvidos no plano, garantindo maior eficiência na proteção de pessoas sob risco no Brasil, nos termos da Constituição Federal, da Declaração das Nações Unidas sobre Defensores de Direitos Humanos (1998) e das normas internacionais ratificadas pelo Brasil.
O Plano DDH reconhece como potenciais beneficiários pessoas e comunidades que atuam pacificamente na defesa dos direitos humanos e ambientais — comunicadores, lideranças comunitárias das periferias urbanas, quilombolas, comunidades tradicionais e ambientalistas. O texto não menciona movimentos sociais, partidos, organizações ou coletivos específicos.
Vale ainda ressaltar que uma das principais ações do Plano DDH é o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que, existe há mais de 20 anos, e adota critérios e procedimentos previstos no Decreto nº 9.937, de 24 de julho de 2019, alterado pelo Decreto nº 10.815, de 27 de setembro de 2021 e regulamentado pela Portaria nº 507, de 21 de fevereiro de 2022.
A inclusão de uma pessoa no programa não é automática — depende de solicitação formal, verificação de ameaças concretas e análise multidisciplinar de risco.
As medidas de proteção são graduais, proporcionais e adequadas a cada caso, podendo incluir:
- relocação temporária;
- articulação com órgãos de segurança pública;
- acompanhamento psicossocial;
- apoio jurídico;
- medidas de prevenção e mediação de conflitos.
Em nenhuma hipótese o decreto prevê escolta policial automática ou uso de força armada.
Trata-se de uma política pública humanitária e preventiva, voltada à preservação da vida e da integridade de pessoas ameaçadas em razão de sua atuação legítima.
Nesse sentido, a instituição do Plano Nacional de Proteção reafirma o protagonismo internacional do Brasil na promoção dos direitos humanos e da justiça climática, especialmente às vésperas da COP30, que será realizada em Belém (PA).
O MDHC reitera seu compromisso com a legalidade, a transparência, o diálogo entre poderes, a proteção de seus cidadãos e o fortalecimento da democracia.
Editado por: Maria Teresa Cruz/BDF



