Conquista da Terra

MST comemora decisão que encerra maior conflito fundiário de Minas

Acordo homologado encerra os conflitos da antiga usina Ariadnópolis; celebração do dia incluiu a preparação de 530 quilos de sementes para reflorestamento nas áreas de reserva

Foto: MST

Por Alí Nacif
Da Página do MST

Fim de uma longa espera

O dia 26 de novembro de 2025 ficará marcado na memória das mais de 480 famílias que compõem o Quilombo Campo Grande, no Sul de Minas. Depois de quase três décadas de resistência e 11 ordens de despejo, algumas executadas de forma violenta, especialmente durante o governo Romeu Zema (Partido Novo), em plena pandemia, o Poder Judiciário finalmente homologou a desapropriação da antiga Fazenda Ariadnópolis.

A decisão consolida o território como assentamento da Reforma Agrária e encerra um dos conflitos fundiários mais emblemáticos do país e o mais antigo conflito de terras de Minas Gerais. No mesmo palco onde o presidente Lula assinou o decreto de desapropriação em março deste ano, famílias, lideranças e autoridades viveram um momento que misturou emoção, alívio e a sensação concreta de que o futuro, enfim, pode ser construído com segurança jurídica.

Ato judicial e reconhecimento político

O ato foi conduzido pelo juiz Mário de Paula Franco Júnior e contou com a presença da Defensoria Pública de Minas Gerais, do Ministério Público do Estado, dirigentes do MST, representantes do INCRA, parlamentares locais, parceiros do Movimento e da comunidade camponesa.

A atividade, mais do que um procedimento jurídico, simbolizou a virada definitiva de uma história marcada pela ausência do Estado e pela violência institucionalizada contra famílias pobres que ousaram produzir, educar seus filhos e proteger o território. Uma das falas mais emocionantes veio de uma das lideranças do Quilombo Campo Grande.

Hoje talvez seja um dia de uma emoção maior do que quando o presidente Lula esteve aqui. Naquele momento foi grande, mas hoje é a nossa certidão de nascimento. O decreto era um ato do Executivo, mas dependia da Justiça e as experiências que tivemos nos fizeram segurar o choro até agora. Hoje, finalmente, chegou”

lembrou Silvio Netto, integrante da coordenação nacional do MST.

Memória da resistência: 27 anos de luta e construção

O conflito de Campo do Meio começou em 1998, após o abandono da antiga usina Ariadnópolis. Desde então, as famílias Sem Terra transformaram o território em referência nacional de agricultura agroecológica, produção de café, cooperativismo e educação do campo.

No caminho, enfrentaram violência policial, destruição de casas, queima de roçados e a tentativa sistemática de criminalizar seu modo de vida. Ainda assim, construíram uma escola, estruturaram a Cooperativa Camponesa de Minas Gerais (Camponesa), que produz o Café Guií, hoje reconhecido internacionalmente, recuperaram áreas ambientais degradadas e provaram que a terra devolvida à função social gera vida, alimento e dignidade.

A homologação judicial reconhece essa legitimidade e reafirma o caráter democrático da ocupação, diante das décadas de omissão do Estado.

“Acabou. Não tem mais despejo”: o sentimento do dia

Produção de mudas no Quilombo Campo Grande. Foto: Caio Palazzo

Entre as lideranças, a fala de Hellen, da direção estadual do MST pela região Sul de Minas, sintetizou o sentimento coletivo. “Foi muita emoção. Hoje não homologou só o decreto do presidente Lula. Homologou também o acordo histórico sobre as áreas, encerrou todos os conflitos da antiga usina e garantiu que não terá mais despejo. Agora começa a fase de organizar o assentamento.”

O INCRA já está fazendo o parcelamento. Depois vem a seleção das famílias, que entram como beneficiárias, e na sequência os créditos. Vamos organizar cada núcleo, cada acampamento agora assentamento para reunir documentação e preparar os editais. Hoje temos 523 famílias cadastradas, mas a projeção é chegar a cerca de 600.”

– Hellen, da direção estadual do MST pela região Sul de MG

Mística, cultura e compromisso ambiental

A celebração foi marcada por um grande momento místico, reafirmando o enraizamento do território na agroecologia camponesa. Durante a atividade, mais de 530 quilos de sementes nativas foram preparados para dispersão nas áreas de reserva, em ação coordenada pela Regional Sul de Minas.
Essa iniciativa se integra à campanha nacional “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”. A dispersão acontecerá nos próximos dias fortalecendo a aliança institucional construída entre MST e Polícia Federal para ações de proteção ambiental.

O dia também foi embalado pelas apresentações culturais do coletivo de cultura do MST e pelo violeiro Wilson Dias e Dandara, cuja musicalidade costurou memória, luta e celebração. Além disso, o dia contou com o grupo de máscaras, que entrou em cena, abrindo e dando continuidade à celebração com força simbólica, ancestralidade e presença, com o espetáculo O Auto do Boi Encantado. A programação cultural foi encerrada com o Bloco Pisa Ligeiro, trazendo seus tambores, enxadas e misturando resistência e festa.

Linha do tempo – 27 anos até a homologação

1998 – Início da ocupação
• Famílias Sem Terra ocupam a área abandonada da antiga Usina Ariadnópolis.
• Inicia-se uma disputa movida pela omissão do Estado e por interesses privados.

2000 – 2010 – Consolidação da produção
• As famílias estruturam roçados coletivos, sistemas agroecológicos e a Cooperativa Camponesa.
• A educação do campo é implementada com a criação da escola.

2012 – 2018 – Crescimento das ameaças
• Novas ordens de despejo são expedidas.
• A criminalização aumenta, mas o território segue ampliando produção e reflorestamento.

Agosto de 2020 – O despejo violento
• Durante a pandemia, o governo de Romeu Zema executa uma das ações mais violentas da história do estado.
Casas e a escola Eduardo Galeano são destruídas, famílias são expulsas, alimentos e pertences são queimados.
• A sociedade civil reage nacionalmente contra o ato.

Uma das moradoras relembra: “O despejo de 2020 deixou marcas profundas. Mas também fortaleceu a certeza de que a nossa vida aqui é justa. Cada roça replantada depois daquele dia é parte da nossa vitória de hoje.”

2023 – Decisão histórica da Justiça reconhece posse dos Sem Terra
• O Tribunal reconhece a função social exercida pelas famílias e a ilegitimidade dos despejos.
• O Quilombo Campo Grande passa a ser referência jurídica nacional.

Março de 2025 – O decreto de Lula
• O presidente Lula visita o território e assina o decreto de desapropriação.
• A assinatura reacendeu a esperança, mas dependia da homologação judicial.

26 de novembro de 2025 – Homologação definitiva
• A Justiça reconhece oficialmente o assentamento.
• Todos os conflitos são encerrados.
• O processo de parcelamento e seleção das famílias é iniciado pelo INCRA.

Uma jovem do território resumiu o simbolismo do dia: “Hoje a gente pode respirar. A gente pode sonhar com o amanhã sem medo de acordar e ouvir a palavra despejo. É o começo do futuro.”

Justiça, reparação e futuro

Para o MST, a homologação representa mais do que um ato jurídico: é o reconhecimento histórico de um território que sempre exerceu sua função social, mesmo quando o Estado se omitia. É também a afirmação de que a Reforma Agrária segue sendo uma política pública essencial para garantir soberania alimentar, preservação ambiental e trabalho digno para o povo brasileiro.


O Quilombo Campo Grande entra agora em um novo capítulo – não mais o da resistência frente ao despejo, mas o da consolidação definitiva do assentamento e do fortalecimento da vida camponesa no Sul de Minas.

*Editado por Fernanda Alcântara