Crise climática

COP 30: Entre a vitrine do ‘capital verde’ e a urgência de um projeto popular de transição ecológica

Evento contou com as chamadas “soluções de mercado” e, de forma paralela e autônoma, a força crescente do campo popular com alternativas reais

Foto: Eduardo Moura/MST no MA

Por Bárbara Loureiro*
Da Página do MST

A COP 30, realizada na Amazônia, entre os dias 10 a 21 de novembro, em Belém (Pará), colocou na centralidade o debate sobre a crise climática. Mas, ao mesmo tempo, revelou com nitidez o quanto a política ambiental segue capturada pelos interesses corporativos, pelo capital financeiro e pela racionalidade colonial que transforma florestas, rios, sol, vento e povos em objetos de gestão para benefício dos países ricos e das elites econômicas.

Mais do que um encontro diplomático, a COP 30 funcionou como um espelho: de um lado, a celebração das chamadas “soluções de mercado” e da descarbonização financeira; de outro, e de forma paralela e autônoma, a força crescente do campo popular, que fez de Belém um território de denúncia, solidariedade internacionalista e construção de alternativas reais. Essa tensão atravessou todos os debates, decisões e disputas que marcaram o evento.

Também explicitou o fracasso estrutural e esgotamento do modelo das decisões por consenso da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) e das COPs (Conferências das Partes). Além de neutralizar conflitos estruturais — como o enfrentamento aos combustíveis fósseis, a responsabilização histórica do Norte Global e o poder corporativo — convertendo-os em debates técnicos sobre métricas, cenários e modelagens climáticas, as reais negociações são feitas “de fora”, com um documento final vazio e insuficiente, como de tantas outras COPs.

Lógica de acumulação e racionalidade colonial moldam a política ambiental

A política climática dominante parte da premissa de que é possível responder à crise ecológica sem tocar nos seus motores estruturais, sustentando ainda que a única saída seria alinhá-la aos princípios do mercado: a lógica da acumulação capitalista, a exploração e a expropriação colonial dos territórios, e o poder das corporações transnacionais.

Foto: Lais Alana/MST

Em Belém, essa contradição ficou ainda mais evidente no contexto da celebração dos dez anos do Acordo de Paris. Apesar de amplamente saudado como um marco histórico, o Acordo não conseguiu colocar o mundo em uma rota viável de enfrentamento ao aquecimento global — e, na prática, serviu sobretudo, para aprofundar a regulamentação e a disseminação de mecanismos de financeirização da natureza, sem enfrentar as causas estruturais da crise climática.

As próprias projeções oficiais indicam um aquecimento de 2,9ºC até o final do século, enquanto cortes profundos necessários para manter 1,5ºC continuam distantes — e politicamente bloqueados.

A COP 30 deixou ainda mais evidente que a política ambiental contemporânea está profundamente subordinada ao capital e estruturada por uma racionalidade colonial que persiste no século XXI. As decisões climáticas de âmbito internacional que, supostamente, devem enfrentar a crise ecológica, não partem da conservação e recuperação dos ecossistemas, mas da necessidade de garantir a continuidade da acumulação, transformando florestas, rios, sol, vento e territórios em ativos financeiros estratégicos. 

Essa lógica se articula em dois pilares centrais: a primazia absoluta da acumulação — que coloca as soluções de mercado acima da integridade ecológica — e a visão colonial que trata o Sul Global como zonas de sacrifício, destinadas a prestar “serviços ambientais” para manter o padrão de vida e de consumo das potências do Norte. Assim, enquanto a Amazônia e os biomas são fatiados em métricas de carbono, “planos de manejo” e energias ditas renováveis, não há qualquer disposição internacional para enfrentar o núcleo do problema: o modo de produção capitalista, que continua definindo padrões tecnológicos, regulatórios e financeiros que aprisionam o Sul Global a um papel subalterno.

Financiamento climático: promessas trilionárias e entregas simbólicas

O chamado Roteiro Baku–Belém, plano construído pelas presidências das COPs 29 e 30, prometeu mobilizar US$ 1,3 trilhão para mitigação e adaptação, por ano em financiamento climático até 2035. Mas é um gigante de papel: mistura recursos internacionais com fundos nacionais que muitos países sequer possuem, carece de mecanismos de monitoramento e segue a lógica do capital financeiro, que privilegia projetos de baixo risco e alto retorno — exatamente o oposto das necessidades de adaptação dos países periféricos.

Governos, cientistas e especialistas criticaram a falta de mecanismos vinculantes, a ausência de clareza sobre fontes reais dos recursos e a imprecisão das metas. O documento final da COP 30 foi amplamente interpretado como insuficiente e desconectado da urgência climática. A crítica principal: não há garantias de implementação e não há instrumentos de responsabilização. Na prática, os países só concordaram em “se esforçar” para triplicar o financiamento, mas sem dizer quem paga, quanto e de onde vem o recurso financeiro.

Sem um financiamento climático robusto e redistributivo, as NDCs — os planos nacionais de redução de emissões — permanecem frágeis e insuficientes. No caso brasileiro, embora o país apresente metas de reduzir entre 59% e 67% das emissões até 2035 (em relação a 2005), além de zerar o desmatamento ilegal até 2030 e eliminar todo o desmatamento até 2035, não há nenhum indicativo de que a origem do desmatamento será enfrentado: o modelo de produção do agronegócio. Este é um modelo que, apesar do seu discurso, segue se expandindo, especialmente sobre o bioma amazônico.

Além disso, o governo segue rendido pelo agronegócio, que captura as estruturas públicas (empresas públicas, universidades, centros de pesquisa…) em busca de um “esverdeamento”. Uma das consequências desta captura é que o governo recusa-se a impor metas específicas e restritivas ao setor — justamente o maior emissor de gases de efeito estufa (GEE) do país. Assim, as promessas climáticas convivem com a manutenção de um modelo agrícola que bloqueia avanços reais e impede a transformação estrutural necessária.

TFFF: a principal vitrine brasileira — e uma armadilha para os povos

O Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), anunciado como uma grande inovação para proteger florestas, sintetiza a lógica colonial da financeirização. É concebido a partir da ideia de que a floresta só será preservada se esta preservação tiver uma valoração econômica. Ou seja, a floresta não tem um valor em si, mas só será preservada se for aferida a ela um preço. Bilhões captados por bancos multilaterais compram títulos públicos e privados do Sul Global, e estes países terminam pagando juros aos mesmos agentes que “financiam” sua preservação. É um mecanismo que transfere riqueza do Sul para o Norte enquanto transforma florestas em ativos, territórios e modos de vida em métricas de risco.

Com pagamentos de, no máximo, quatro dólares por hectare e critérios que criminalizam práticas tradicionais, o TFFF não reduz desmatamento nem enfrenta suas causas — mas reforça o controle financeiro sobre a Amazônia. Não por acaso, países europeus recuaram diante do “alto risco”. As expectativas iniciais de U$ 125 bilhões se revelaram uma fantasia; nem a meta reduzida de U$ 10 bilhões foi atingida até o final da COP, que chegou a U$ 6,7 bi.

O mais preocupante é que esta iniciativa foi aceita por alguns segmentos populares. Ainda que represente um aprofundamento da financeirização da natureza (com o TFFF não somente o carbono será precificado, mas vários outros “serviços ambientais”), foi defendida por estes setores como um avanço. Tal defesa vem na esteira de uma suposta defesa do protagonismo internacional do governo Lula, frente ao tema ambiental. No entanto, este será um protagonismo esvaziado de sentido para as camadas populares se o seu conteúdo não apontar para as saídas concretas construídas pelos povos para a crise ambiental. 

As corporações como protagonistas da COP

A COP 30 consolidou a captura corporativa da crise climática. Bancos e grandes transnacionais transformaram pavilhões, eventos e casas temáticas em centros de lobby e oportunidade de negócios. A mídia corporativa recebeu patrocínios ambientais de empresas com extensos passivos socioambientais, afetando a independência da cobertura.

E, numa cena reveladora, 1.602 lobistas dos combustíveis fósseis circularam livremente pelas negociações — uma presença maior que a de quase todos os países, exceto a da própria delegação brasileira. Muitas dessas empresas, além de serem grandes poluidoras, são aquelas que financiam, sustentam e lucram com guerras, conflitos e genocídios, como aqueles que atingem o povo palestino, haitiano, saharauis e outros. 

Embora o Brasil tenha defendido a construção de um “Mapa do caminho para a eliminação dos combustíveis fósseis”, o texto final não incluiu qualquer compromisso concreto de eliminação, não estabeleceu datas para o fim da produção de petróleo, gás e carvão e ignorou recomendações científicas para um abandono rápido das fontes fósseis. A ausência desse compromisso foi considerada por especialistas internacionais um “fracasso estrutural” da COP 30 e se deve à pressão direta do lobby dos países produtores e das empresas do setor.

A exceção mais significativa nesse cenário veio da Colômbia, que lançou uma declaração pública pedindo que a COP adote um verdadeiro mapa do caminho para a transição dos combustíveis fósseis e anunciou que sediará uma nova conferência internacional focada exclusivamente nesse tema. O governo colombiano, liderado por Gustavo Petro e pela Ministra do Meio Ambiente Irene Vélez-Torres, buscou tensionar o processo oficial ao defender que não há saída climática possível sem uma decisão multilateral clara sobre o fim da exploração fóssil.

Agronegócio: o sujeito intocável da COP

O agronegócio atuou como um dos blocos mais organizados e influentes da COP 30. Seus objetivos foram nítidos: apresentar-se como protagonista da solução climática por meio de soluções tecnológicas, ampliar seu acesso a financiamentos públicos e privados, bloquear regulações ambientais mais rígidas e direcionar o debate climático global conforme seus interesses. 

A COP 30 também deixou evidente que o agronegócio não é apenas um ator nacional, mas global: ele aparece como parte da coalizão que defende a chamada “transição ordenada”, uma transição sem confrontos, sem regulação e sem responsabilização. A versão final do documento da COP reflete essa influência: o setor não foi mencionado como responsável pelo desmatamento, não recebeu nenhuma obrigação de transição, e sua expansão territorial foi completamente ignorada.

Para isso, utilizou de forma massiva termos como “agricultura regenerativa”, “agricultura tropical” e “bioeconomia”, discursos que procuram “pintar de verde” práticas baseadas em monoculturas, uso intensivo de agrotóxicos e expansão territorial. Essa estratégia se apoia na narrativa de que o agronegócio brasileiro é altamente tecnológico — e, portanto, automaticamente sustentável — mesmo quando seus impactos ambientais indicam o contrário.

A Agrizone, espaço liderado pela Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – com forte patrocínio de corporações como Bayer e Nestlé, além de abrigar estruturas do próprio governo federal, funcionou como vitrine privilegiada desse projeto: um ambiente de negócios, lobby e engenharia de reputação que reforça a captura corporativa da política climática. E os ruralistas já planejam replicar esse modelo na COP 31, na Turquia.

Vale ressaltar que o Brasil é um dos países que mais tem assassinatos de ambientalistas junto à outros países latino-americanos, como Colômbia, Guatemala e México. Soma-se a estatística as dezenas de vidas ceifadas de povos indígenas, ribeirinhos, camponeses sem-terra, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais, são a linha de frente antes da derrubada das florestas. 

Os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam um quadro alarmante: 2024 apresentou o segundo maior número de conflitos no campo desde 1985, com altos índices de ameaças de morte, tentativas de assassinato — estas com crescimento expressivo e atingindo majoritariamente indígenas —, além de casos de contaminação por agrotóxicos e processos de criminalização. A Amazônia permanece como a região mais vulnerável, com o Pará liderando registros de assassinatos e tentativas de assassinato. Esse cenário de violência estrutural está diretamente ligado à expansão do agronegócio e ao seu modelo de modernização conservadora, que aprofunda contradições históricas sobre uso, posse e propriedade da terra no Brasil, mas também sobre diferentes formas de compreender a relação entre humanidade e natureza.

O cantor e compositor Zé Pinto, militante do MST, lançava em 1998 a música Devoção à Amazônia que ecoa como alerta ainda hoje: “O Amazonas, cuidado com o pé do boi; Chico já disse e ninguém mais se esqueceu: o latifúndio traz miséria, acaba a mata, incendeia, desacata milenares filhos teus”. Ela sintetiza a verdade central: não há horizonte ecológico possível enquanto o modelo do agronegócio — baseado em concentração fundiária, violência e destruição — continuar estruturando o país. 

Toda vez que esse modelo é confrontado, a resposta é violência: a floresta e os povos trazem a memória viva de lutadoras e lutadores tombados nesta trincheira como Dorothy Stang e Chico Mendes, de Vicente Fernandes Vilhalva, do povo Guarani Kaiowá, assassinado, decorrente de um conflito prolongado com latifundiários por retomada de terras indígenas no Mato Grosso do Sul, de Antônia Ferreira dos Santos e Marly Viana Barroso, quebradeiras de coco assassinadas no município de Novo Repartimento, sudeste do Pará, diante de um contexto de aprofundamento das violências causados pela expansão do capital sob seus territórios.

O agronegócio, o latifúndio e os empreendimentos capitalistas, são inimigos dos povos, da vida, das florestas e de toda a natureza.

O contraponto popular: a Cúpula dos Povos

Foto: Priscila Ramos

Se a COP expressou o avanço das cercas financeiras sobre a natureza, a Cúpula dos Povos, realizada entre 12 e 16 de novembro, em paralelo à Conferência oficial, expressou a força da resistência. Foram 70 mil pessoas na marcha global, 25 mil inscritos, mais de 1.200 organizações articuladas e uma barqueata internacionalista com mais de 200 embarcações. Delegações de 60 países construíram um documento que denuncia o capitalismo como motor da crise climática, o racismo ambiental, o poder das corporações e as falsas soluções do ‘capitalismo verde‘.

A Cúpula reafirmou que não há saída climática dentro do sistema que criou a crise — e que só a organização popular pode enfrentar o inimigo comum: o capitalismo em suas expressões imperialistas, racistas e patriarcais.

A quantidade de manifestações em diversos espaços da COP 30 e da Agrizone também expressou um descontentamento com a incapacidade destes espaços de governança global, liderados pela ONU em sua grande maioria, que não tem conseguido apresentar soluções efetivas desde o genocídio na Palestina.

Passada a COP, o que fazer?

A COP 30 deixou evidente que o debate climático é também um debate sobre um modelo de sociedade. Para os movimentos populares, três tarefas se impõem:

  1. Politizar a disputa ambiental:

 Não existe política climática séria que mantenha mineração predatória, uso intensivo de agrotóxicos, expansão da pecuária industrial, avanço sistemático do desmatamento, uma política energética baseada na apropriação dos bens comuns como o sol e o vento, e sem reduzir a exploração dos combustíveis fósseis. Por isso, é fundamental seguir construindo a luta ambiental a partir do enfrentamento direto ao agronegócio e à mineração, setores que seguem intocados no centro das emissões e da destruição territorial. Politizar a disputa significa também denunciar as falsas soluções que vêm ganhando força, baseadas na financeirização da natureza, nos mercados de carbono e nos fundos “verdes”, que aprofundam as dependências e invisibilizam as causas estruturais da crise.

  1. Ampliar a mobilização popular:

A crise ambiental tem impactos desiguais e recai com maior força sobre as periferias urbanas, os povos indígenas e quilombolas, os camponeses e a classe trabalhadora. Para que a agenda climática se torne força social transformadora, é urgente ampliar a capacidade de mobilização popular — fortalecendo organizações de base, territorializando o debate ambiental e conectando pautas como moradia, saneamento, alimentação, transporte, energia e acesso à terra com a luta climática. 

  1. Construir um programa próprio de transição ecológica justa e popular:

Os movimentos populares precisam projetar um programa de transição que enfrente o poder corporativo, recupere a centralidade dos bens comuns e reorganize a economia a partir das necessidades dos povos. Isso implica massificar a produção de alimentos saudáveis, fortalecer a agroecologia, garantir soberania energética e colocar água, solo, floresta e energia fora dos mercados financeiros. Uma transição justa e popular só se concretiza quando o território deixa de ser mercadoria e se torna a base da vida — e quando o futuro não é planejado pelas corporações, mas pelas próprias comunidades que defendem e cuidam da terra.

*Faz parte da coordenação nacional do MST e integra o setor de Produção do Movimento.

**Editado por Solange Engelmann