Solidariedade Sem Terra

Celebração da união: famílias do MST partilham 30 toneladas de alimentos em Rio Bonito do Iguaçu (PR)  

Atividade ocorreu nesta sexta-feira (19), no centro do município mais devastado pelos tornados que atingiram o Paraná

Foto: Wellington Lenon

Por Diangela Menegazzi e Ednubia Ghisi
Da Página do MST

No terreno onde antes funcionava uma escola municipal, destruída pelo tornado de 7 de novembro, famílias Sem Terra e moradores de Rio Bonito do Iguaçu (PR) se reuniram para celebrar a vida, a partilha e a esperança. A celebração do Natal Solidário da Esperança foi realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nesta sexta-feira (19), com distribuição de 30 toneladas de alimentos em cestas e em uma grande ceia coletiva.

As doações vieram de acampamentos e assentamentos de todas as regiões do estado. O encontro marca o encerramento de 43 dias de Brigada de Solidariedade estruturada pelo MST para apoiar as famílias atingidas pelos tornados, ocorrido no início de novembro. 

A bênção da partilha dos alimentos veio das mãos e das palavras de Padre Cristian Jardim, da Paróquia Santo Antônio de Pádua, de Rio Bonito do Iguaçu. Antes de iniciar a oração do “Pai Nosso”, o religioso agradeceu pelo apoio das Brigada de Solidariedade do MST. “Quero agradecer por tudo aquilo que cada um de vocês fizeram em prol da reconstrução da nossa cidade. Tenho certeza que cada marmita feita, cada sorriso, cada abraço que vocês deram nesse povo amado, de Rio Bonito do Iguaçu, foi o próprio Jesus se apresentando para eles”. 

Para Roberto Baggio, da direção do MST no estado e um dos coordenadores da brigada de solidariedade, os mais de 40 dias de trabalhos coletivos de reconstrução foram “uma escola de vida e de humanidade”. E complementa: “Nós cumprimos uma missão alongada, de quase dois meses […]. Fizemos isso de forma completa, em várias frentes de trabalho e com muita participação, e isso é motivo de realização humana e emancipação para cada um de nós que fez parte. Coroamos isso com a partilha de alimentos nesta sexta-feira, que também expressa o sentido do Natal, da união, do compartilhamento e do amor”. 

As cestas entregues às famílias atingidas foram compostas com a diversidade de alimentos da Reforma Agrária: cerca de 30 itens como arroz, feijão, biju, milho verde, quirera, abóbora, melado, tomate, além de frutas, legumes e verduras em geral. Os alimentos foram doados por comunidades de diferentes regiões e cooperativas que integram a Cooperativa Central da Reforma Agrária (CCA). 

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Fotos: Antonio Santos

A ceia coletiva foi organizada em 4 mesas fartas, de 7 metros cada, cobertas com toalhas vermelhas e alimentos diversos. Entre os quitutes estavam 500 panetones produzidos na cozinha solidária da Brigada de Solidariedade, pelas mãos de mulheres do MST de diferentes comunidades do Paraná. Além de dois mil litros de Iogurte doados pela Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (Copran), localizada no assentamento Dorcelina Folador, em Arapongas. 

As bolachas foram enviadas pela Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), do assentamento Santa Maria, de Paranacity. As frutas da época: pêssego, manga, mamão, melancia, banana, melão: deram o colorido da partilha entre todas as pessoas presentes. 

Paulo Brizola, integrante da coordenação da Cooperativa 100% agroecológica Terra Livre, localizada no assentamento Contestado, na Lapa, enfatiza a qualidade dos alimentos doados para compor as cestas e a ceia: “Foram alimentos produzidos de forma saudável, sustentável, agroecológica. Alimentos que são certificados na sua grande maioria pela Rede Ecovida e produzidos com muito carinho, com muito amor pelas famílias, pelos produtores”.

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Fotos: Juliana Barbosa

O camponês agroecológico chama atenção para a urgência de frear o aquecimento global e a crise ambiental. “A gente precisa cuidar do meio ambiente, porque senão cada vez mais a gente vai sofrer essa ação, nessa contra-reação da natureza”. Brizola ainda apresenta o modelo agroecológico como saída: “Esses trabalhos que a gente faz aqui com os associados da cooperativa, a gente entende que vêm ao  encontro da preservação do meio ambiente, com a produção de alimento saudável e recuperação dos rios, das águas, das matas e das florestas”.

O Natal Solidário da Esperança foi embalado pelas apresentações culturais do cantor e compositor Zé Pinto, de Minas Gerais, e do grupo As Cantadeiras, com artistas vindas de diversos lugares do Brasil. 

Solidariedade que une e acolhe

Entre as centenas de pessoas presentes na celebração estava Vera Lucia Moretti, 42 anos, nascida na região e moradora de Rio Bonito do Iguaçu, com marido e um filho de 9 anos. Vera trabalhava como caixa de um dos supermercados que desabou. Ela estava no local na passagem do tornado. Quando o vento parou, foi correndo para casa, preocupada com o marido e o filho que lá estavam. Ao chegar, se deparou com a moradia destruída.

Inicialmente, pensou em desistir da reconstrução, mas telefonou para um contato que conseguiu do MST. Duas equipes da infraestrutura do Movimento passaram por sua casa. Poucos dias depois estava com ela coberta novamente. “Caíram do céu esse pessoal lá em casa. Se não fosse a ajuda deles e de tantos outros voluntários, eu acho que a nossa cidade não estaria como está agora, com muitas casas já cobertas, que é o principal”, comenta. 

A trabalhadora agradeceu a dedicação e amizade dos militantes Sem Terra, e contou terem se tornado como da família: “Eu até chorei quando foram embora, pelo companheirismo e amizade que a gente pegou […]. Sem a solidariedade eu não sei o que seria pro pessoal aqui de Rio Bonito”, relata. 

Vera também reflete sobre a necessidade de conscientização ambiental e o impacto das ações humanas na natureza, em especial com a derrubada de árvores. “A gente nunca imaginava que fosse passar por isso. Sempre pensei: ‘aqui a gente está no céu, nunca vai acontecer com a gente’. Mas infelizmente veio todo esse tornado. Eu digo assim: é o próprio homem que plantou e agora tá colhendo. São tantas queimadas, derrubam árvores. Eu não vejo motivo pra isso, pra plantar um pé a mais de soja, de milho, olha tudo isso que aconteceu. Acho que as pessoas têm que ponhar um pouco a mão na consciência, parar com isso e plantar mais árvores”, propõe. 

Larissa Knopf, 23 anos, moradora da cidade vizinha de Laranjeiras do Sul, também acompanhou a celebração. Ela veio se solidarizar com sua irmã, cuja moradia também sofreu estragos. “É muito lindo o que está acontecendo aqui hoje. O pessoal todo feliz tendo um alimento, ganhou milho-verde, batata-doce, abóbora, coisas que hoje precisam sair da cidade para comprar. Eu morei 18 anos no assentamento, plantando, colhendo e fazendo parte, porque meu pai é assentado. Então, sinto orgulho grande em, de alguma forma, fazer parte disso”, se emociona. 

Irmã Lia e uma vida dedicada à solidariedade

A cerimônia ecumênica abençoou os alimentos e prestou homenagem à Irmã Lia, religiosa amiga do MST desde os anos 1980, falecida no dia 21 de novembro. Integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Guarapuava e das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), Irmã Lia dedicou a vida à agroecologia, a medicina natural, a segurança alimentar e a economia solidária.

Durante a celebração, Maria Izabel Grein, integrante do setor de Saúde do MST-PR e militante do movimento há mais de 40 anos, relembrou ações marcantes da religiosa: “Quando a irmã Lia chegava no nosso acampamento e tinha fome, tinha pessoa passando necessidade, a irmã Lia arrumava ossos, carne, e colocava dentro de uma panela, e convidava todo o acampamento a buscar alguma comida no mato, até broto de Taquara, porque no campo, na floresta, nós temos alimentos. E dali saía uma sopa que alimentava, em primeiro lugar, as mulheres gestantes, pois estavam amamentando, mas também crianças, idosos, doentes. Quantas vidas foram salvas por essa solidariedade”, relembra Maria Izabel.

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Fotos: Wellington Lenon

Irmã Lia sempre esteve ativa na defesa da saúde e das melhores condições de vida das famílias acampadas. As lembranças e histórias da sua atuação corajosa são muitas, e seguem vivas em nossa memória. Irmã Lia ajudava as famílias desde os primeiros momentos da vida no acampamento, e depois acompanhava e somava na construção do processo. “Irmã Lia estará sempre presente nos atos de solidariedade, por isso foi o maior legado que elas nos deixou”, frisou. 

Solidariedade para resistir à crise climática 

Rio Bonito do Iguaçu e Guarapuava foram os municípios com os tornados mais violentos, classificados como F4 na escala Fujita, com ventos que chegaram a 418 km/h. Foram 7 vítimas fatais, mais de 800 pessoas feridas, 1000 pessoas desalojadas e milhares de casas, estruturas, postes e árvores danificadas ou destruídas.

Embora mais de 440 famílias de acampamentos e assentamentos também tenham sofrido perdas severas em suas moradias e plantações, após consertarem suas casas e estruturas do lote, também se somaram às ações de solidariedade. Ao todo, mais de 1000 militantes do Movimento, de acampamentos e assentamentos da região, de todo o Paraná e também do Rio Grande do Sul, se somaram à Brigada de Solidariedade, com revezamentos semanais.

Cerca de 50 mil marmitas foram preparadas e distribuídas em duas cozinhas solidárias organizadas no assentamento 8 de Junho, em Laranjeiras do Sul, município vizinho a Rio Bonito do Iguaçu. Mais de 100 casas foram cobertas, reformadas ou construídas integralmente pela Brigada.

Realização

A celebração foi organizada em parceria com a prefeitura municipal, com apoio dos projetos Semeando Gestão, Bem Viver – parceria entre o Instituto Contestado de Agroecologia (ICA) e a Itaipu Binacional, por meio do Programa Mais que Energia, alinhado ao Governo do Brasil -, e o Comitê de Cultura do Paraná. 

Confira a íntegra da carta entregue para as famílias de Rio Bonito junto às cestas de alimentos: 

Carta aos companheiros e companheiras de Rio Bonito do Iguaçu

Prezados amigos e amigas. Esta é uma carta da militância do MST do Paraná para cada família atingida pelos tornados. 

No dia 7 de novembro de 2025, nossas vidas se transformaram de forma inesperada. Foram momentos de muita dor e tristeza, pelas vidas interrompidas e esforços destruídos em poucos segundos, no campo e na cidade. Mais de 440 famílias do MST também foram atingidas, tiveram casas, estruturas de produção, lavouras e espaços coletivos danificados. Sentimos na pele os efeitos da crise ambiental, causada pelo sistema capitalista que a cada dia faz o planeta estar mais quente. 

A solidariedade é um valor para o nosso Movimento, e nos deu resposta também neste momento de catástrofe. Começamos naquele mesmo dia, e de forma coletiva nos organizamos para somar, reconstruir, alimentar, partilhar, limpar… recomeçar tudo. Com panelas, fogões e alimentos, iniciamos uma cozinha comunitária na madrugada do dia 8. Aconteceu o milagre da multiplicação e da partilha. Chegando a mais de 50 mil marmitas partilhadas, com sabor da comida caseira e do afeto. Ter comida é ter força física para resistir. 

Com martelo, serrote, trena e a diversidade de ferramentas de carpintaria e construção, iniciamos os mutirões de reconstrução das casas – foram mais de 100. Com vassoura, carrinho de mão, pás, somamos na limpeza de ruas e terrenos. Um trabalho duro e persistente, necessário para devolver organização e beleza para a cidade. Com ervas medicinais, benzimentos, práticas da saúde popular e muito afeto, buscamos acolher as famílias atingidas. Com tinta, pincel e toda a energia da Juventude Sem Terra, colorimos muros da cidade.

Foram 41 dias de BRIGADA DE SOLIDARIEDADE EM RIO BONITO DO IGUAÇU e região.  Mais de mil militantes de acampamentos e assentamentos de todo o Paraná participaram. Cada um deixou aqui o melhor que pode, suas habilidades e experiências que a vida de povo trabalhador nos dá, e o carinho de quem faz por um irmão.  

Essa FORÇA COLETIVA é a força da REFORMA AGRÁRIA POPULAR, fruto da conquista da terra e da construção de comunidades que garantem a vida que todos sonhamos e a condição de produzir alimentos saudáveis. Essa força também é a força da SOLIDARIEDADE: uma prática que cultivamos como um valor humano no MST. Ela tem nos feito resistir ao longo destes mais de 41 anos de existência do Movimento. 

O que também nos faz resistir, avançar e superar os desafios sempre foi e segue sendo a UNIÃO. É o TRABALHO COLETIVO, COOPERADO E ORGANIZADO que nos deixa de pé, mesmo nos momentos mais difíceis. É assim que exercitamos a solidariedade do povo para o povo, com as nossas mãos calejadas da lida na terra e o coração de quem acredita que o mundo pode ser melhor para todas as pessoas. 

Que possamos seguir unidos em 2026, na reconstrução do presente e na certeza do futuro cada vez melhor para todos nós, povo trabalhador do campo e da cidade.  

Um abraço de toda a família MST do Paraná.

Rio Bonito do Iguaçu, Paraná – 19 de dezembro de 2025
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Paraná

*Editado por Solange Engelmann