Após estragos no cerrado brasileiro, agronegócio avança sobre terras moçambicanas
Da IHU On-Line
“Os investidores propõem uma mistura de produção, em grande escala, de produtos agrícolas e contratos com certos pequenos produtores. Ambas as coisas são projetadas para lhes dar o controle sobre a produção agrícola em grandes extensões de terra”, adverte o pesquisador.
A compra de terras em Moçambique, no continente africano, por empresas estrangeiras, é uma tentativa de “transformar a área numa nova fronteira para a produção barata de exportação, seguindo o modelo do Cerrado brasileiro”, informa Devlin Kuyek à IHU On-Line. Ele explica que o governo africano, com apoio dos governos japonês, americano, brasileiro e do Banco Mundial, “está desenvolvendo uma infraestrutura na região, ligando importantes e novas minas de carvão no leste (desenvolvidas pela Vale) com o porto de águas profundas de Nacala”.
Na avaliação do pesquisador, a estratégia de desenvolvimento agrícola tende a ser prejudicial para os moçambicanos que trabalham na agricultura, porque “as empresas estrangeiras que estão indo para o país e entrando no ramo da produção alimentar – e mesmo no da distribuição de alimentos – estão simplesmente assumindo os mercados servidos pelos produtores campesinos, vendedores em pequena escala e processadores, bem como tomando o controle de terras e água que eles usam para produzir seus alimentos. Isto destrói a principal fonte de alimentos da maioria do povo moçambicano e a põe nas mãos das empresas estrangeiras que enviam os lucros para fora do país”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Kuyek comenta as investigações que tem feito em parceria com a União Nacional de Camponeses – UNAC de Moçambique para poder compreender como e quais empresas estão envolvidas no projeto de expansão agrícola. “Nós também olhamos os registros de negócio e outros bancos de dados para tentar compreender a posse das empresas envolvidas, mas isto provou-se impossível com algumas delas, na medida em que são controladas por empresas de fachada baseadas em paraísos fiscais além-mar, tais como as ilhas Maurício, onde as empresas não precisam tornar público quem são seus proprietários”, afirma.
Devlin Kuyek atua na ONG canadense GRAIN desde 2003, onde desenvolve trabalhos com organizações campesinas, especialmente na Malásia e nas Filipinas, analisando os impactos do agronegócio global.
Confira a entrevista.
Que dados e informações a GRAIN tem sobre a compra de terras por empresas estrangeiras em Moçambique? Como vocês chegaram a esses dados e qual o interesse em documentar essa situação?
Os acordos de terra dos quais temos conhecimento estão listados numa tabela disponível em nosso sítio eletrônico. Estamos rastreando e tornando disponíveis informações sobre os acordos de terra em Moçambique e ao redor do mundo neste endereço: farmlandgrab.org.
Informações sobre muitos dos acordos podem ser encontradas aí; são informações coletadas dos sítios das empresas, de documentos oficiais e reportagens na imprensa. Nós também tivemos de realizar investigações adicionais, já que, muitas vezes, há pouca informação disponível ao público.
A UNAC, a GRAIN e algumas de nossas organizações parceiras conduziram investigações de campo sobre muitos dos casos documentados no relatório. Nós também olhamos os registros de negócio e outros bancos de dados para tentar compreender a posse das empresas envolvidas, mas isto provou-se impossível com algumas delas, na medida em que são controladas por empresas de fachada baseadas em paraísos fiscais além-mar, tais como as ilhas Maurício, onde as empresas não precisam tornar público quem são seus proprietários.
O que leva o governo de Moçambique a buscar essas parcerias com outros países para estimular a agricultura de exportação?
Cremos que a principal motivação seja o acesso a investimentos estrangeiros e parcerias de negócios. A segurança alimentar e a subsistência das pessoas do campo deveriam ser alguns dos benefícios decorrentes destes investimentos. Mas, como mostramos no relatório, na verdade é uma transferência de recursos (terra, água, biodiversidade, etc.) das comunidades campesinas para grandes empresas. Por que o governo está ficando do lado das grandes empresas em vez de ficar do lado do seu próprio povo é uma boa questão que o governo deveria explicar.
De que forma a relação com investidores estrangeiros vem impactando na produção de alimentos em Moçambique e como isso tem se refletido na economia do país?
Moçambique é um país constituído principalmente de pequenos agricultores. As empresas estrangeiras que estão indo para o país e entrando no ramo da produção alimentar – e mesmo no da distribuição de alimentos – estão simplesmente assumindo os mercados servidos pelos produtores campesinos, vendedores em pequena escala e processadores, bem como tomando o controle de terras e água que eles usam para produzir seus alimentos. Isto destrói a principal fonte de alimentos da maioria do povo moçambicano e a põe nas mãos das empresas estrangeiras que enviam os lucros para fora do país.
Que culturas estão sendo introduzidas em Moçambique e quais os riscos para o ecossistema local?
Na área que cobrimos no relatório, quase todas as empresas estão interessadas na produção de commodities agrícolas – soja e milho, em particular – que podem ser cultivadas em escala industrial. A ideia é transformar a área numa nova fronteira para a produção barata de exportação, seguindo o modelo do Cerrado brasileiro. Pode-se imaginar como o modelo agrícola praticado no Cerrado vai se parecer numa região da África que já se encontra densamente povoada por comunidades campesinas.
“Por que o governo está ficando do lado das grandes empresas em vez de ficar do lado do seu próprio povo é uma boa questão que o governo deveria explicar”
Quais são as propostas dos investidores para o Corredor de Nacala?
Geralmente, os investidores propõem uma mistura de produção, em grande escala, de produtos agrícolas e contratos com certos pequenos produtores. Ambas as coisas são projetadas para lhes dar o controle sobre a produção agrícola em grandes extensões de terra.
Por que essa região é cobiçada, ainda que seja pertencente à África Subsaariana?
Por dois principais motivos. Primeiro, porque estas terras são ideais para a produção agrícola (motivo pelo qual são tão densamente povoadas por camponeses). Segundo, porque o governo, com o apoio do Japão, do Banco Mundial, do Brasil, dos EUA e de outros doadores, está desenvolvendo uma infraestrutura na região, ligando importantes e novas minas de carvão no leste (desenvolvidas pela Vale) com o porto de águas profundas de Nacala.
Com o estímulo à agricultura de exportação, muitas famílias do Corredor de Nacala devem ser desalojadas. Qual a situação delas hoje? Como estão participando desse processo de mudança na forma de produção agrícola?
Os que moram na região passaram por uma experiência colonial brutal, seguida pela guerra civil. Eles suportaram estes conflitos para terem o direito ao acesso às terras. Estas pessoas têm plenas condições de produzirem mais a partir destas terras e alimentar a todos os moçambicanos, se as políticas certas forem feitas no sentido de apoiá-las.
A União Nacional de Camponeses – UNAC conduziu um processo de consulta nacional para definir estas políticas e desenvolveu um programa detalhado para a soberania alimentar e para o desenvolvimento rural encabeçado por camponeses. Mas, pelo contrário, o governo está buscando realizar políticas que favorecem o grande agronegócio e permitindo que grandes empresas tomem conta das terras de pequenos agricultores. Estamos vendo isto acontecer ao longo de todo o Corredor de Nacala e em muitas outras partes do país.
“Os governos ainda estão comprometidos com os objetivos gerais do programa e estão buscando outros meios de levá-lo a cabo”
No que consiste o Programa ProSavana e quais os principais países parceiros? Quais os principais problemas que percebem com o programa ProSavana?
O ProSavana foi um programa lançado pelo Japão, pelo Brasil e por Moçambique, mas desenvolvido por consultores privados, a saber: a Fundação Getulio Vargas, do Brasil. Ele foi planejado atrás de portas fechadas, junto com um financiamento privado paralelo do setor.
O Fundo Nacala, que a FGV coordenou, foi projetado para facilitar o investimento em projetos de agronegócio em larga escala ligados ao Programa ProSavana. Depois que a UNAC, a GRAIN e outros denunciaram o que estava sendo planejado, houve uma forte onda de resistência pública em Moçambique, com grande solidariedade de pessoas do Japão e do Brasil, pois todos ficaram indignados com a forma como os governos estavam planejando um projeto deste porte sem mesmo consultar o povo local.
Em resposta, o ProSavana foi ligeiramente reduzido de tamanho pelos governos, e alguns até estão dizendo que foi reduzido em sua maior parte, e os financiamentos do setor privado foram abandonados. É muito cedo ainda para dizer isto com certeza. Mas podemos afirmar que os governos ainda estão comprometidos com os objetivos gerais do programa e estão buscando outros meios de levá-lo a cabo. Quisemos enfatizar isto em nosso relatório.
Já estamos vendo muita grilagem de terra em grande escala e projetos do agronegócio na região, com investidores estrangeiros vindo de todo o mundo, inclusive do Brasil. Muitos destes investidores são grandes homens de negócio de Portugal, o que lembra um retorno do colonialismo, tornado ainda pior pelo fato de que algumas destas terras eram antigas plantações portuguesas.
Em 2013, foi realizada a primeira Conferência Triangular dos Povos, que discutiu a forma como a terra em Moçambique vem sendo explorada. Quais os avanços desde então?
De um ponto de vista internacional, podemos dizer que a aliança entre grupos da sociedade civil moçambicana foi grandemente reforçada. Isto tem sido um aspecto importante para a resistência bem-sucedida ao ProSavana, e irá continuar fazendo a diferença na ajuda às famílias deste país na batalha para manter suas terras.