Eldorado de Carajás: Para não passar em branco

Convivemos com dezenas de ‘Eldorados de Carajás’ nos estados. Continuamos a conviver com as ameaças de mortes e com a lentidão da reforma agrária.

 

Por Valmir Assunção

Dezenove anos e vinte e um mortos. O massacre de Eldorado de Carajás, ocorrido em 19 de abril de 1996, foi a culminância de todo um processo de intolerância que ainda persiste contra os trabalhadores rurais, que nada mais fazem do que lutar pelos seus direitos. Direitos estes que estão assegurados na própria Constituição Federal, que diz no seu Artigo 5º: “A desapropriação por interesse social, aplicável ao imóvel rural que não cumpra sua função social, importa prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária”.

 
E o que fazem esses trabalhadores? Marcham, protestam, fazem manifestações, acampam e ocupam as terras improdutivas. E o que querem? O direito à terra para poderem se inserir no processo produtivo do país, para terem uma vida digna e criarem estruturas futuras para o desenvolvimento de si e de seus familiares. Mas como essa luta esbarra nos interesses do latifúndio, são criminalizados e sofrem todo tipo de violência, física, e, muitas vezes, institucionais.

 
Decorridos 19 anos de Eldorado de Carajás, quando 21 sem terras foram mortos pela Polícia Militar do Pará, quando lutavam justamente pelo direito à terra, relembramos esse episódio ano a  ano como emblemático para a nossa luta. E agora o governo faz a entrega da fazenda Peruano, área distante 12 km de onde ocorreu o massacre. Essa fazenda foi ocupada em 17 de abril de 2004, oito anos após o massacre dos sem terras e abriga hoje 300 famílias, composta, em sua maioria, por mães e pais dos mortos em 1996. Elas agora compõem o Assentamento Lorival Costa, em homenagem a um dos sem terras mortos há 19 anos.

 
Sei que muitos poderão argumentar que nesses 19 anos o cenário da reforma agrária tem avançado. Reconhecemos certos avanços, mas decorridos esses anos, parece que a cena de violência no campo continua. A despeito dos nossos protestos, das nossas marchas, dos esforços que trabalhadores e trabalhadoras fazem diariamente junto aos órgãos dos governos dos estados e governo federal, a reforma agrária ainda enfrenta uma série de problemas.

 
Basta uma leitura do relatório divulgado este mês pela Comissão Pastoral da Terra, que lançou o Caderno de Conflitos no Campo 2014. Os dados atestam que a despeito dos esforços feitos pela presidenta Dilma, e da nossa luta, a violência no campo contra os trabalhadores rurais persiste e os seus autores ou executores continuam na impunidade. Em 2014, os assassinatos passaram de 34 para 36. Os Sem Terra foram o principal alvo, com 11 mortes. Chama atenção o número de mulheres assassinadas. Foram oito no total (22%) do número de mortos no campo. Já as tentativas de assassinatos aumentaram em 273%, sendo 56 registros. No Nordeste, a CPT registrou 11 dessas tentativas.

 
O número de famílias despejadas quase dobrou em 2014. Saltou de 6358 para 12188. As ameaças de despejo aumentaram em 52% (29280 famílias). Nas regiões Sul e Sudeste, onde o agronegócio é mais estabelecido, o número de conflitos aumentou em 91% e 56% respectivamente. Por esses números irrefutáveis, percebem-se as razões das nossas lutas e porque mais uma vez lembramos o Massacre de Eldorado de Carajás, e o adotamos como simbolismo de luta para o movimento dos trabalhadores rurais, MST. Mudaram-se os locais, mas a violência é a mesma, com pequenas alterações conjunturais.
 

Hoje convivemos com dezenas de ‘Eldorados de Carajás’ nos estados. Continuamos a conviver com as ameaças de mortes, com as tentativas de criminalização da nossa luta, e com a lentidão de todo o processo da reforma agrária. Mas, como em 19 de abril de 1996, continuamos a marchar, a ocupar e a empunhar a nossa bandeira de luta, porque entendemos que sem a reforma agrária, os conflitos no campo não acabarão e a justiça social jamais será implantada de forma digna.
 

* Valmir Assunção é deputado federal pelo PT-BA e um dos fundadores do MST na Bahia