“Os que hoje falam de violação de direitos na Venezuela são os que me prenderam no golpe de 2002”
Por Vivian Fernandes
Do Brasil de Fato
Ao ligar a televisão e o rádio, ler jornais e portais da internet, constantemente nos deparamos com notícias de que “não existe Justiça na Venezuela” ou que a “Venezuela vive um regime de ditadura”, entre outras afirmações que levam a pensar que o país vive em meio a violações de direitos humanos.
Essas frases foram manchete na grande imprensa brasileira na última semana. São afirmações de esposas de opositores ao presidente venezuelano Nicolás Maduro. Mitzy Capriles, cônjuge do prefeito de Caracas, Antonio Ledezma; e Lilian Tintori, esposa do líder do partido Vontade Popular, Leopoldo López, participaram de audiência na Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro para denunciar o presidente de seu país no último dia 7 de maio.
López foi preso em fevereiro do ano passado, sob acusação de ter incitado violência em manifestações contra o governo federal. Já Ledezma foi detido neste ano, em fevereiro, acusado de conspiração de golpe contra a Presidência.
Com espaço mais reduzido na mídia brasileira, estavam as afirmações de Tarek Saab, presidente do Poder Cidadão – um dos cinco poderes constitucionais do país – e Defensor do Povo da Venezuela – que atua como fiscalizador e defensor dos direitos humanos, no modelo de ombudsman. Ele veio ao Brasil participar da Comissão de Direitos Humanos do Senado, além de reuniões com ministros e um debate público na Faculdade de Direito da USP.
A fim de compreender o que se passa na Venezuela, o Brasil de Fato entrevistou Saab, que, como confere o seu cargo de Defensor do Povo, acredita que seu papel é de “buscar um equilíbrio, fazer justiça em todo o tema dos direitos humanos”. À reportagem ele apresentou relatórios e documentos que tanto demonstram as condições de respeito aos direitos de López e Ledezma na prisão, quanto afirmou que os casos de violação de direitos por parte de forças policias do Estado também estão sendo julgadas e seus responsáveis presos.
No entanto, Saab não deixa de fazer duras críticas à forma como os oposicionistas agem no cenário político: “há um setor insurrecional e violento, que não reconhece o presidente e as instituições democráticas. […] Ou seja, querem, pela força, o que não se consegue pelos votos”. Ele ainda afirma que “os que hoje falam de violação de direitos humanos, são aqueles que me mantiveram preso no golpe de 2002”, contra o então governo de Hugo Chávez, que também foi encarcerado pelos golpistas. Sobre este caso, Saab ainda diz: “Para nós, o tema da ditadura é forte, porque nós o vivemos em 2002”.
Confira a entrevista:
Como você avalia o uso político dos temas de direitos humanos da Venezuela?
Para mim não resta a menor dúvida que o tema dos direitos humanos na Venezuela tem sido manipulado e tomado a partir uma perspectiva parcial para nos colocar em uma agenda internacional e favorecer, neste caso, um setor de oposição ao Estado Venezuelano, às instituições democráticas venezuelanas – que é ainda mais perigoso. Obviamente que o tema Venezuela , desde a era Chávez e segue agora com o presidente constitucionalmente eleito Nicolás Maduro, é usado em vários países do mundo para envolver na disputa interna desta nação. Neste caso, segundo minha análise, não há um interesse de fundo nos direitos humanos, se não para converter o tema, que é um tema sensível, em linha de ataque e de confrontação.
Eu sou consciente de que a Venezuela é um país que garante os direitos humanos, com uma Constituição, a partir de 1999, das mais modernas do mundo neste tema. Nossa Constituição cruza, como um todo, o tema dos direitos humanos e obriga o Estado a legislar a favor das mulheres, minorias, crianças e adolescentes, indígenas, desde o meio ambiente, da família, dos trabalhadores, dos camponeses. Ou seja, se cria novos sujeitos de direitos e o Estado começa a cobrir dívidas e faltas nesta matéria.
Em meio disso, nos últimos 15 anos, houve um golpe contra Hugo Chávez, uma greve em que se paralisou toda a indústria petroleira e nos causou graves danos econômicos. Houve muita confrontação política não eleitoral por um setor da política venezuelana que reincide na tática insurrecional e violenta.
Os brasileiros devem ter a oportunidade de resolver seus problemas internos e creio que nós, venezuelanos, temos nosso direito para resolver nossos problemas. Somos um povo livre, independente, e temos nossos mecanismos para resolver nossos assuntos internos.
Como explicar o contexto atual da Venezuela, sob o ponto de vista do Defensor do Povo?
A Venezuela não está nem perto de ter um contexto de violência política. Isto está superado. Em um contexto de guerra, estamos a anos luz, afortunadamente. O que estamos vivendo é uma grande agitação de confrontação de caráter político-partidário, que sempre se exacerba em momentos eleitorais, fazendo parte da democracia. E eu qualifico que isso se agravou à raiz da morte do presidente Hugo Chávez [5 de março de 2013].
Eu sinto que a oposição venezuelana está dividida. O setor mais extremista tomou a liderança de opinião dessa oposição e o setor que crê em eleições foi removido e guarda silêncio. Eu qualifico que há um setor insurrecional e violento, que não reconhece o presidente, nem as instituições democráticas, e está atuando à margem da lei.
No entanto, veja que contradição: os mesmos que agem assim, postulam candidatos. Eles dizem que existe uma ditadura. Mas que ditadura mais estranha em que eles apresentam candidatos e saem eleitos deputados ou prefeitos [tom irônico]. No ano passado, entre fevereiro e março, um setor antigovernamental usou da tática insurrecional para derrubar o governo. Queimaram prédios do Estado, atacaram Guardas Nacionais e mataram a quatro. Deixaram feridos 140 membros das forças de segurança do Estado. Houve essas circunstâncias, mas estão superadas.
Muitas notícias que chegam ao Brasil são de que não há democracia na Venezuela. Como o senhor opina em relação à liberdade de organização política no seu país?
Acredito que na Venezuela há recorde mundial de eleições em menos tempo. A Venezuela, a partir de 1999, anualmente tem o debate eleitoral como tema para diminuir as diferenças, com a opinião da maioria por meio do voto. Eleições para a Presidência, Assembleia Nacional [Congresso] governos estaduais, prefeituras, Assembleia Constituinte, para reforma a Constituição. [veja o infográfico abaixo]
E quem participa disso? Participam os partidos políticos, os grupos eleitores, as organizações governistas e oposicionistas. Participam abertamente, se inscrevem, lançam seus candidatos. Há vezes em que ganhou o setor opositor, e o setor do governo o aceita.
O estranho é que quando ganha o setor ligado ao governo é quando ocorrem os atos de violência. Ou seja, querem, pela força, o que não se consegue pelos votos. É como uma dupla moral. Eles vão às eleições e quando as ganham, lhes interessa e sim são boas, pois eles têm governadores, prefeitos e deputados, eles têm capitais importantes no país, e o governo federal o aceitou e transfere recursos para fazer suas políticas. Contudo, isto não agradou a um setor da oposição, que saiu a fazer atos de violência.
Eu mesmo, sendo presidente da Comissão de Política Exterior da Assembleia Nacional da Venezuela, estive preso dois dias, que foi que durou o golpe de 2002. Foram me buscar em casa, em frente aos meus filhos, à minha família. E aqueles que me mantiveram preso são os que hoje falam de violação de direitos humanos.
No Brasil, vocês viveram uma ditadura de 1964 a 1985. Na Venezuela, nós vivemos uma ditadura em 2002, de dois dias em que foi derrubado o Parlamento, por decreto, derrubou a Defensoria do Povo, os Ministérios Públicos, derrubou o presidente. Não passamos 30 ou 40 anos para essa geração ver o que era uma ditadura. Por sorte, durou dois dias, mas teve 15 mortos, utilizaram franco-atiradores. Para nós, o tema da ditadura é forte, porque nós o vivemos em 2002.
Qual a situação do país quanto à diversidade dos meios de comunicação e da liberdade de expressão?
Na Venezuela há uma ampla liberdade de expressão e de opinião de todos os setores, inclusive os anteriormente invisibilizados. Foram criados 1.225 meios alternativos e comunitários, 244 emissoras de rádio comunitárias, 37 televisões comunitárias, se outorgaram 139 concessões de rádios FM, 32 concessões de TV comerciais. Há canais públicos, comerciais e comunitários. Creio que no Brasil não há algo assim. Na Espanha, um país crítico à Venezuela, não há algo assim. Eu vejo canais venezuelanos com participação do presidente, de alguém do público e de alguém da oposição, sem problemas.
Na Venezuela o que passa é que se uma pessoa profere uma difamação e é processado, a pessoa reclama de falta de liberdade de expressão. Mas o ofendido só está fazendo uso do seu direito à defesa. O que eu posso dizer é que um dono de meio ou membro de um meio não tem imunidade, no mundo ele não tem imunidade diante de uma ação penal.
Há relatórios de ONGs e da ONU que apontam centenas de violações de direitos humanos em meio aos protestos do ano passado. Qual foi a situação ocorrida na Venezuela?
Na Venezuela, diferente de outros países tem proibida a tortura – através da Constituição e da Lei para Prevenir e Sancionar os Delitos de Tortura – porque a consideramos um delito infame. Os casos que o Ministério Público documentou, com especialistas e médicos forenses, que se enquadraram como tortura foram quatro, cujos responsáveis foram processador por isso. É bom destacar que pelos casos de violência ocorrida entre fevereiro e março de 2014, há 15 funcionários de segurança do Estado presos por haver cometido violações de direitos humanos. Não se dá privilégios a ninguém que cometa esses delitos e que, efetivamente, se prove que cometeram.
Eu posso me equivocar, mas quando dizem que são centenas, eu gostaria que me mostrassem as fotos, os áudios, os diagnósticos forenses que comprovem isso. Pois quando não é assim, não estiver documentado rigorosamente, perde a credibilidade a denúncia. A ONU não é infalível. A ONU, em algumas oportunidades, apoiou governos a invadir países.
Repito, na Venezuela não é política de Estado realizar violações de direitos humanos por ordem do Executivo. Mas, sim, é reconhecido que em Venezuela, como em todos os lugares do mundo, podem ocorrer violações de direitos humanos. Diga-me um país em que isso não ocorra. O que é importante quando se descobre uma violação de direitos humanos? Que o Estado atue rapidamente, que investigue, sancione e condene. Nós, como instituição nacional de direitos humanos, vigiamos por isso. Recebemos familiares de vítimas de violações de direitos humanos vinculados ao setor opositor e os atendemos, colocamos em curso suas denúncias. Como também recebemos vítimas de manifestações violentas opositoras. Eu creio que é papel nosso buscar um equilíbrio, fazer justiça em todo esse tema.
Qual a situação de detenção de dois dos oposicionistas, Leopoldo López, preso por incitar ao crime nos protestos de 2014, e Antonio Ledezma?
A Defensoria do Povo, a meu cargo, por meio da consultora jurídica e da defensora-delegada, os visitou diversas vezes. Posso descrever qual é a situação [de acordo com relatório dos meses de janeiro a abril]. Sobre o primeiro deles, Ledezma, as responsáveis pelas vistorias qualificaram as condições de detenção como ótimas. Agora, ele não está mais na cadeia, já está em sua casa, pois a ele foi outorgada uma medida humanitária de liberdade condicionada.
A Leopoldo López fizeram várias visitas, nas quais se entrevistou o preso e se contatou sua situação como ótima. Ele tinha uma cela inicial similar à de Ledezma, com 12 metros quadrados. No entanto, por conta do regime interno do centro de reclusão de Ramo Verde, assim que encontraram aparelhos celulares, o mudaram para uma cela de 3 x 2,6 metros quadrados, com banheiro privado, cama, geladeira, forno de micro-ondas, televisão por satélite, biblioteca. Ele assiste à missa uma vez por semana, pratica exercícios, recebe visitas todos os dias da semana de familiares e advogados. Nós enviamos o relatório às Nações Unidas, em reposta a um questionário que ela solicitou.
Portanto, cumprimos e vamos seguir cumprindo nossa função, independente de qualquer circunstância política e qualquer detento. E isso foi reconhecido tanto pelos privados de liberdade quanto pelos seus familiares. É nosso trabalho e velamos por sua integridade.