Em Pernambuco, escolas do campo ajudam a romper a cerca da exclusão escolar
Em preparação ao 2° Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (ENERA), que acontecerá entre os dias 21 a 25/09, em Luziânia (GO), a Página do MST traz uma série de entrevistas, reportagens e artigos sobre experiências da Educação do Campo, o atual cenário educacional do país e os desafios que se anunciam sobre este debate.
Por Guy Zurkinden
Da Página do MST
Fotos Luiz Mario Santana
Há quem diga que a história da educação do campo em Pernambuco nasce no município de Santa Maria da Boa Vista, no Vale de São Francisco, sertão do estado. O ano data de 1995, quando 2.200 famílias Sem Terra ocuparam a Fazenda Safra, no mês de agosto. Daí em diante pipocaram acampamentos de famílias Sem Terra sobre as fazendas falidas da região, outrora ocupadas por monocultivos de frutas destinados à exportação.
Vinte anos depois, o trecho ficou conhecido como “a estrada da Reforma Agrária”, rodeado por assentamentos e pequenos lotes irrigados, onde brotam plantios de maracujá, uva, goiaba, melancia, manga, macaxeira e banana, ligando os municípios de Santa Maria da Boa Vista e Petrolina.
Na beira da pista, porém, os barracos dos acampamentos Hugo Chávez e Filhos da Luta demarcam que a luta pela terra ainda não terminou.
Um dos resultados desse processo é a escola Franscesco Moura, localizada no “Mãe Safra” – como é chamado o assentamento mais antigo de Santa Maria -, onde acontece um dos cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Assentada no Safra, Júlia Nunes de Lima Ferreira é mãe de cinco filhos, todos adultos.
Em 1995, dona Júlia montou o barraco na beira do rio São Francisco, junto às 2.200 famíliasSem Terra. Daquela época, a agricultora tem lembranças de alegrias e sofrimento. “Foi um tempo difícil, mas todo mundo era amigo. Um quilo de açúcar, todo mundo dividia.” Após dois anos e cinco meses de resistência, nascia o assentamento Safra.
Como milhares de trabalhadores do meio rural, a camponesa teve o direito à educação negado. “Fiz só a primeira e a segunda série. Onde fui criada, não funcionava escola, nem transporte escolar”.
Para chegar à escola mais próxima, Dona Júlia e a irmã tinham que caminhar mais de uma hora. Mas com medo que acontecesse alguma coisa com as filhas, sua mãe acabou proibindo as viagens.
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À Júlia só ficou “aquele sonho, de terminar os estudos.” Em 1999, porém, a então recém assentada retomou o caminho da escola, e em 2003, completou o Ensino Fundamental. Mesmo com a vontade de seguir com os estudos na época, as necessidades da vida falaram mais alto. “Tinha muito trabalho, os filhos eram pequenos.”
Esperou até novembro de 2013, e aos 43 anos, a agricultora ingressou no programa estadual de Educação de Jovens e Adultos (EJA Campo) para dar início ao Ensino Médio. De segunda a sexta-feira, após o dia de trabalho, Dona Júlia sai de sua casa azul rumo à escola Francesco Moura. Lá, estuda das 19h às 21h40. Em 2015, “se Deus quiser”, terá seu sonho de criança realizado.
Do paliativo à política pública
Membro do setor de educação do MST e coordenadora de cinco turmas de EJA no município de Serra Talhada, Sertão de Pernambuco, Ana Paula Monteiro Araujo destaca o fato de que “pela primeira vez temos turmas de jovens e adultos cursando o ensino médio dentro dos nossos assentamentos”. O caminho foi longo.
Segundo Maria Fernanda dos Santos Alencar, coordenadora da educação do campo no estado, “tudo vem da luta dos movimentos sociais.” Desde o início das ocupações de terras no estado, os Sem Terra já encaravam a exclusão escolar dos trabalhadores rurais. As primeiras iniciativas de alfabetização de jovens e adultos foram realizadas no calor da lona preta.
Em paralelo, o MST se uniu aos quilombolas, sindicatos rurais e povos indígenas para impulsionar mobilizações em prol de uma política de educação adaptada à realidade do campo.
Dessa pressão, surgiram as parcerias com o poder público. Após o programa Brasil Alfabetizado, o estado de Pernambuco estreou, em 2006, o programa Semeando Letras no Campo, que abrange da primeira à quarta série do ensino fundamental.
Em 2005, o Ministério da Educação (MEC) lançou o projeto Saberes da Terra (que passou a se chamar Projovem Campo – Saberes da Terra, em 2007), com o objetivo de resgatar a dívida histórica da sociedade brasileira com os jovens e adultos que vivem no campo e não tiveram a oportunidade de frequentar a escola. A meta: escolarizar 275 mil jovens agricultores em nível fundamental.
Em 2006, os Sem Terra ingressaram no Comitê de educação do campo no estado e começaram a acompanhar cada passo das quatro edições do programa, realizando um diagnóstico das necessidades, mobilização dos futuros educandos nas comunidades e elaboração do projeto político-pedagógico.
A luta protagonizada pelos camponeses fez com que o Movimento se firmasse como referência na educação do campo, passando a dirigir uma formação específica destinada aos professores do EJA.
As denúncias dos limites dos programas existentes, porém, não cessaram. “Esses projetos eram concebidos como paliativos, sem conseguir elevar o grau de escolaridade. Quem fazia alfabetização não tinha perspectiva de continuar”, explica Rubneuza Leandro, da direção do setor de educação.
Ao longo de seminários, marchas e ocupações, os Sem Terra pautaram a criação de um programa que garantisse uma continuidade na educação de jovens e adultos, da alfabetização até o nível médio.
Em 2013, após sete anos de luta, a reivindicação é atendida pelo governo: o programa EJA Campo entra em vigor, garantindo em nível do Estado todos os segmentos da educação aos jovens e adultos, com currículos e metodologia unificados. Para a coordenadora Maria Fernanda, a iniciativa é pioneira.
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“Pela primeira vez a Educação de Jovens e Adultos se torna uma modalidade da educação básica. De programa compensatório, ela vira política pública.”
Segundo os dados da Secretaria de Educação, mais de 7 mil jovens e adultos ingressaram nas turmas da EJA Campo em 2013: 3272 no Ensino Fundamental (EJA inicial) e 4 mil no Ensino Médio (EJA médio).
Educação emancipadora
“Os alunos são muito comprometidos. Eles vêm para aprender, mas também para passar o que sabem”, observa a diretora da escola do assentamento Safra, Alzenir Socorro dos Santos (foto de capa), que também ensina línguas nas turmas do EJA.
Para lidar com um público que estuda após um dia de trabalho na roça, a aula tem que ser dinâmica e dialogar com a realidade. Com esses desafios colocados, os movimentos sociais e a Secretaria de Educação costuraram uma metodologia específi ca: os professores abordam as áreas de conhecimento a partir de temáticas organizadas entorno de um eixo articulador: trabalho e educação no campo.
Os tempos de aprendizagem são divididos em tempo escola e tempo comunidade. “Na escola, os educandos têm que apresentar toda a produção do assentamento durante o tempo comunidade”, exemplifi ca Alzenir. Para a educadora, a busca é por “uma pedagogia que contribua para libertar as pessoas.”
Tatiane de Souza Santos, fi lha de assentada e coordenadora de turmas de EJA no município de Petrolina, destaca que “a grande conquista é quando você chega num assentamento e vê aquele sujeito, que era analfabeto, sabendo ler e escrever.”
Ao criar vínculos de socialização, as aulas melhoram o convívio e reforçam a identidade nas comunidades. Atividades práticas e projetos produtivos, realizados com a ajuda de um técnico, também ajudaram a potencializar a produção. “Graças aos alunos do Saberes da Terra, temos hoje comercialização de galinhas e hortaliças, produzidas em assentamentos”, conta o pedagogo Adailton dos Santos Cardoso, membro da direção estadual do MST.
Embora os avanços sejam importantes, os obstáculos não faltam. Segundo Edilene Menezes Mota, assentada e coordenadora de EJA em Santa Maria de Boa Vista, a maior difi culdade é a permanência dos educandos dentro da sala de aula. Muitos chegam cansados do trabalho.
Outros têm que sair do assentamento em busca de renda, dificultando a escolarização. A infraestrutura precária é outro problema: em muitas escolas, mães assistem às aulas com as crianças, por falta de ciranda infantil. Seis meses após o início dos cursos, o material didático destinado aos alunos da EJA ainda não havia chegado. As merendas também faziam falta.
Rubneuza Leandro aponta outra contradição: “Os programas de EJA deveriam ser medidas temporárias, destinadas a reverter a exclusão histórica dos camponeses pelo sistema educacional. Mas, com o fechamento de escolas e a falta de investimento, o nosso sistema continua a criar analfabetos.”
No campo pernambucano, 2014 começou com uma avalanche de fechamento de escolas. Foram três só município de Santa Maria da Boa Vista. “As escolas restantes são superlotadas. No povoado vizinho, tem crianças estudando dentro de uma capela!”, denuncia a assentada Edilce de Maria.
Nos últimos dez anos, mais de 37 mil escolas do campo foram fechadas no país. Em 2012, pela primeira vez em 14 anos, a taxa de analfabetismo voltou a aumentar no Nordeste brasileiro, passando de 16,9% (2011) para 17,4%.
Superando uma história de exclusão
Oito horas da noite. Na escola 13 de Maio, as aulas já começaram. Na primeira sala, curvados sobre as bancas, uma quinzena de homens e mulheres analisam livros de cordel. Na turma vizinha, Seu José e seus colegas escutam atentamente a professora.
Aos 62 anos, seu José de Silva está superando um histórico de exclusão. Criado na região de Petrolina, “no meio da caatinga”, o filho de agricultor não pôde estudar: “A escola estava distante, não tinha transporte.”
Sem terra, seu José trabalhou um tempo como meeiro. O fruto quase inteiro do trabalho ia para o dono; a solidão pesava sobre as costas do lavrador. “Quando ia à cidade, tinha medo. Pedia para outras pessoas irem pagar as minhas contas”, recorda.
A vida muda com a chegada ao assentamento Nossa Senhora da Conceição. Lá, Seu José começa, enfim, a trabalhar por conta própria. Superando a solidão, ele casa com dona Dilce, e juntos, rompem outra cerca: ele se matricula no programa Saberes da Terra e completa o ensino fundamental.
“Não estou tão jovem, mas não pretendo parar.” Os olhos de Seu José brilham por trás dos óculos. Em 2013, ele iniciou a EJA médio, rumo a outra pretensão: a faculdade.