“Nós, advogados, temos uma espinha dorsal que não deve se curvar aos poderosos”
Por Lizely Borges
Da Página do MST
Lutar contra o golpe parlamentar e construir uma articulação nacional com os operadores do sistema de justiça brasileira para os grandes temas nacionais para a área, como o papel do Supremo Tribunal Federal e formação nas universidades, e na defesa da democracia são os objetivos que reúnem, desde segunda-feira (04), em Brasília-DF, cerca de 300 profissionais do direito de todo o Brasil no I Encontro Nacional da Frente Brasil de Juristas pela Democracia.
Articulado pela Frente Brasil Popular (FBP), coletivo diverso que reúne organizações de defesa de direitos humanos e movimentos populares, o Encontro se estenderá até dia 06 de junho, com análise de conjuntura e a criação da Frente Nacional de Juristas pela Democracia.
“Existe uma carência de uma articulação como essa de caráter nacional no país. A única que temos que é Ordem dos Advogados (OAB), que foi criada por força de lei, e que cumpriu um papel vergonhoso no cenário atual ao protocolar um pedido de impedimento da presidenta. E necessário que haja um outro espaço que garanta um debate democrático”, relata Ney Strozake, advogado do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e um dos organizadores do Encontro.
A deputada federal Jandira Feghali (PC do B/RJ) defende que, diante do papel desempenhado pelo Poder Judiciário na articulação do processo de impeachment, o Fórum pode vir a assumir não apenas o papel de mobilizador da categoria para a resistência à destituição, mas também o de provocador de uma reforma judiciária mais ampla. “ O Judiciário é um braço do estado brasileiro que luta contra ele próprio, que inviabiliza a própria ação democrática do estado. Este Fórum tem papel de interferir conjunturalmente mas pode interferir estruturalmente. A reforma que se fez do Judiciário [PEC 45, aprovada em 2004] nem passou perto da mudança real deste poder, inclusive as suas nomeações, a forma como as pessoas chegam nos tribunais superiores, é tudo para ser repensado”.
Para o ex-presidente da OAB e responsável pela abertura do processo do impeachment de Fernando Collor, em 1992, Marcelo Lavenère, a articulação das e dos advogados defensores da democracia é uma resposta necessária à posição conservadora da entidade representativa da categoria.
“O surgimento destes focos de advogados que dizem em cada estado não a esta posição [da OAB], que dizem “nós queremos uma democracia prestante, construtora de uma cidadania para todos” e não uma advocacia que serve a interesses corporativistas, aos interesses dos poderosos, que são os que pagam a maioria dos nossos colegas, e então terminam por ter uma identificação com o seu cliente. Foi preciso que houvesse um exagero da direita na advocacia para que surgissem os representantes da resistência contra o golpe, mas não apenas contra ele e sim também contra a desigualdade, a cultura do estupro, a concentração de renda, o monopólio midiático que deforma a opinião brasileira. Esse é o nosso compromisso, de nos opor”
Erro histórico da OAB
No dia 28 de março, a OAB protocolou na Câmara de Deputados um pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Amplamente criticada por movimentos populares e universidades sob argumento de que a Ordem possui amplo envolvimento com setores defensores do impedimento, a entidade afirmou, naquele momento, que o pedido era em razão do “conjunto da obra” motivado por “decisão técnica”, e que a Ordem não se “envolvia em “questões políticas, ideológicas ou partidárias”.
Em comunicado, o presidente da OAB, Carlos Lamachia, defendeu que “a OAB cumprirá sua função, estabelecida pela Constituição, de guardiã dos direitos e garantias do cidadão. Agirá como fiscal da legalidade, cobrando o cumprimento dos ritos e o respeito ao devido processo.” Das 27 seccionais da OAB apenas a do estado do Pará se opôs ao pedido da entidade à abertura do processo de impeachment.
Para Lavenère, a entidade cometeu um “vergonhoso” e “erro histórico” ao se posicionar em defesa do impedimento antes mesmo do início da investigação da acusação. “O espetáculo que se viu no Conselho Federal da Ordem não é tão dantesco como o dia 17 de abril [votação do processo de impeachment na Câmara de Deputados], mas é muito próximo. Eu gostaria de ouvir que não apenas o Pará salvou a pátria, mas Brasília, o Rio de Janeiro, o Maranhão e que a gente mude essa posição da Ordem”, defende Lavenère.
Diante do laudo da perícia da Comissão Especial de Impeachment, apresentado no dia 27 de junho ao Senado, em que aponta o não envolvimento de Dilma nas pedaladas fiscais, argumento central da entidade para o processo de impedimento, Marcelo sugeriu aos profissionais do direito presentes no Encontro que retomem contato com cada conselheiro da OAB de seu estado a fim de reverter a posição da entidade. “Comprovado que não há crime, não há pedalada, coloco como proposta tentar mudar em cada estado a posição que a seccional tomou. Vai ser difícil, o fato de ser difícil não quer dizer que não se tente”.
“Excessos constitucionais” e unidade popular
Nas análises realizadas durante o encontro um tema comum foi a atuação do governo interino de Michel Temer no desmonte de políticas sociais conquistadas desde a redemocratização brasileira. Para a professora da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ, Carol Proner, a fragilização dos direitos sociais, efetivada com o afastamento de Dilma e ações de Temer, teve arquitetura anterior à eleição de 2014 ou eleição à Eduardo Cunha para presidência da Câmara.
Ela cita a reflexão proposta pelo professor de direito da UnB, Cristiano Paixão, no livro A Resistência no Golpe de 2016, no qual afirma que Temer, em 2005, apresentou a PEC 157 que objetivava promover revisão constitucional e atribuía ao Congresso Nacional este poder. Paixão relata que a defesa da PEC por Temer é a de que “a excessiva participação popular [na elaboração da Constituição de 1988] teria produzido disposições constitucionais equivocadas, que deveriam ser objeto de revisão”, e que a nova constituição deveria ser pelas mãos dos “mais sábios os incumbidos e estabelece-la”.
Para os participantes é preciso enfrentar a tentativa de afastamento do cidadão da política e combater qualquer tentativa de violação da legalidade democrática. Para eles, as decisões tomadas pelo interino, antes mesmo do encerramento do processo de impeachment, com a violação das estruturas de governo e políticas sociais, apontam o desprezo de Temer com os direitos sociais: “Temos um governo provisório que se movimenta como se definitivo fosse. Sequer aguarda a decisão final. Muda estruturas de governo, extingue ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, faz alterações na Previdência. Estamos perdendo o parâmetro da legalidade”, afirma Jandira.
Ela aponta a necessidade de retomada do debate, desta vez mais qualificado, sobre a importância da reforma política e manifesta preocupação com a crescente criminalização dos movimentos populares: “É importante o movimento de ganhar consciências para que os próximos processos eleitorais, pelo menos ainda na democracia representativa, possa mudar este quadro – um congresso absolutamente distante da realidade brasileira e que só, sua grande maioria [dos parlamentares], só consegue defender o retrocesso. Uma maioria que é capaz de mudar a Constituição para desvincular saúde e educação, o salário mínimo.
É necessário mudar essa possibilidade de representação, aí entra a reforma política, mas entra também algo que a própria experiência vai permitir – na hora que o povo começar a perceber sua perda vai reagir, a minha preocupação é que se ele reagir com um governo que não tem voto que aí sim a expressão antidemocrática fique mais clara, com a repressão e criminalização dos movimentos sociais”.
Para o membro da direção nacional do MST, Alexandre Conceição, o desmonte da classe trabalhadora nos mais de 40 dias de governo Temer exige a construção de uma articulação crescente entre movimentos populares, advogados, mandatos progressistas e demais atores para envolver o conjunto da população na esfera pública política.
“As bandeiras Fora Temer e Fora Cunha arregimentou muita gente, mas o povão ainda não veio para as ruas. É hora de fazer trabalho de base, de explicar a pauta do neoliberalismo para a classe trabalhadora, de forma didática, sem chavões, explicar o que nós vamos perder com esse golpe e renovar os métodos de articulação entre a gente, sem querer ser hegemonista, ser dono da ação para construir a unidade popular”.
Futuras ações da Frente
No último dia do Encontro, dia 06, os participantes produzirão uma carta. Este documento deverá ser entregue ao Supremo Tribunal Federal, com solicitação de realização de audiência pública. O último dia da atividade também será de construção da forma de operação e estruturação da Frente nos estados. O objetivo é reunir estudantes de direito, promotores, juízes, defensores públicos e demais integrantes do Sistema Judiciário nas ações desenvolvidas pela Frente.