Armas transgênicas são usadas para extinguir espécies a favor do agronegócio
Por Silvia Ribeiro (*)
Se fosse possível extinguir totalmente espécies que uma empresa ou instituição considere daninhas, seria justificado fazê-lo? Quem decide? Como isso afeta as cadeias alimentares e os ecossistemas?
Ainda que seja um protótipo, já existem armas biológicas capazes de fazer isso, e seu desenvolvimento acontece em ritmo vertiginoso, deixando para trás a necessidade de leis e regulação de biossegurança, ou seja, sem critérios ecológicos, éticos, sociais e econômicos. São os impulsionadores genéticos.
Para poder avançar com este enorme risco tecnológico, a indústria de biotecnologia tem mudado de tática. Algumas poucas ONGs internacionais promovem essas novas biotecnologias como meio de “conservação da natureza”, que pode ser usada para extinguir espécies invasoras, como ratos, insetos, plantas daninhas e mosquitos.
A moção para adotar biologia sintética como ferramenta de conservação foi apresentada no Congresso Mundial da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) que acontece no Hawaí entre os dias 1 e 10 de setembro.
Diante deste avanço, 30 personalidades do âmbito científico, ambientalistas, advogados e líderes indígenas publicaram um chamado para por freio a esta proposta e à tecnologia de “impulsionadores genéticos”.
Entre os que assinaram estão Jane Goodall, David Suzuki, Vandana Shiva, Víctor Toledo e Alejandro Nadal, além das presidentas da União de Científicos Comprometidos com a Sociedade, Elena Álvarez-Buylla, do México, e Angelika Hilbeck, da Alemanha, que também faz parte da Rede Europeia de Cientistas pela Responsabilidade Social e Ambiental (ENSSER).
Angelika, que é entomóloga (estuda insetos e suas relações com o homem, as plantas, os animais e o meio-ambiente), sinalou que “os impulsionadores genéticos são tecnologias que se propõem a exterminar espécies. Ainda que para alguns profissionais, possa parecer uma ‘boa solução’, para situações complexas tem altos riscos de consequências não intencionais, que poderiam piorar o problema ao invés de resolvê-lo.”
Os “impulsionadores genéticos”, ou gene drive em inglês, baseiam-se em uma tecnologia tão nova que ainda não existe tradução combinada. É uma construção transgênica que “engana” a natureza para que as espécies de reprodução sexual (plantas, insetos, humanos) passem forçosamente um gene alheio a sua espécie a todas as gerações posteriores, tornando-as estéreis e, consequentemente, evitando que haja descendentes.
Utilizam a biotecnologia como via para destruir uma vantagem desenvolvida na coevolução das espécies em milhões de anos com a reprodução sexual. Normalmente, a descendência herda 50% da informação genética de cada progenitor, o que, em gerações posteriores, facilita a eliminação de genes que não lhe são úteis ou lhe são alheios.
No caso da modificação genética que reproduz a descendência de um só sexo, extingue-se a espécie. É justamente o que propõe o projeto GBIRd (Genetic Biocontrol on Invasive Rodents), liderado pelo grupo Island Conservation, que desenvolveu roedores manipulados com impulsionadores genéticos para que só possam procriar ratos machos. Pretendem soltá-los no ano de 2020 em ilhas para eliminar os ratos que atacam aves.
Outro projeto que se quer impor no Hawai, elaborado pelo grupo Revive and Restore, são mosquitos com gene drivers para extingui-los pela mesma via, argumentando que transmitem malária aviária que afeta aves nativas – mesmo que as aves tenham começado a desenvolver resistência a atual doença…
O enfoque é estreito e errôneo, porque não atinge as causas, as condições e as interações em que se desenvolvem as supostas espécies “daninhas”. Logo, elas seguirão surgindo ou serão substituídas por outras com a mesma função.
No caso de GBIRd, ao manipular ratos comuns, há uma cadeia de riscos sobre a espécie, sobre outros roedores e sobre os diferentes ecossistemas dos quais fazem parte. Seus efeitos são de uma amplitude enorme, e pode ser impossível de controlá-los depois.
Não é muito diferente no caso dos mosquitos: a eliminação de um tipo específico de mosquito, se for possível, abrirá espaço a outros que voltaram a ser vetores de doenças, quiçá muito mais difíceis de controlar.
Por esta e outras razões, 71 governos e 335 ONG que pertencem à IUCN, em vez de apoiarem o uso da biologia sintética, votaram uma emenda à proposta, estabelecendo uma moratória “de fato” dentro do IUCN ao apoio à pesquisa, experimentos de campo e uso de biodiversidade e outros aspectos. Leia aqui.
Mas, o uso de impulsionadores genéticos não é pensado sob a perspectiva de conservação. As empresas transacionais do agronegócio foram desenvolvendo biologia sintética para eliminar enfermidades, para reverter a resistência de ervas invasoras ao agrotóxico no uso de sementes transgênicas, para aumentar seu uso.
Neste sentido, o protagonismo dado pelos meios de comunicação ao argumento de que seriam um instrumento de conservação ou de prevenção de enfermidades é também uma manipulação midiática para evitar que o uso desse tipo de biotecnologia seja associado ao amplo rechaço global que existe aos cultivos transgênicos, que hoje estão concentrados nos Estados Unidos, Brasil, Argentina, México e Austrália.
É urgente ampliar o debate sobre o uso, os riscos e os impactos da biologia sintética e especialmente dos impulsionadores genéticos. Se você concorda que deve ser estabelecida uma moratória internacional que impeça qualquer liberação, pode agregar sua assinatura à carta mencionada no link: http://tinyurl.com/jm4t6bg.
(*) Silvia Ribeiro é pesquisadora do Grupo ETC.
* Tradução de María Julia Giménez (Brasil de Fato/SP)