Acordo de Paz com as FARC-EP colocará em debate a reforma agrária
Mariana Ghirello
Especial da Colômbia para o Brasil de Fato/Revista Opera
O que se entende por zona rural está construído no imaginário popular de maneira clássica. Casas simples, terra plantada, animais pastando, uma família e um homem de chapéu com um feno na boca. Mas em uma época onde a maior parte da população está em áreas urbanas, a distância das áreas rurais tende a distorcer a percepção da realidade. Na Colômbia, o campo é, até os dias atuais, o cenário de uma guerra sangrenta que já vitimou milhões de pessoas.
Divulgado no dia 24 de agosto, o acordo final entre o governo colombiano e as FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colombia – Exercito do Povo) tem como primeiro ponto a “Reforma Rural Integral”. O objetivo é atingir o núcleo do conflito armado e suas motivações, que tem em sua essência a disputa por territórios, as riquezas naturais que existem neles, a exploração da terra e a melhora das condições de vida da população no campo.
É verdade que o conflito armado colombiano já dura mais de 50 anos, mas ao perguntar a um jovem na casa dos vinte anos que sempre viveu em grandes cidades como Bogotá, Cali ou Medellín, o que pensa sobre os acordos de paz ou como foi a vida dele em um país que sofre uma guerra que dura décadas, é provável que ele não saiba dar uma opinião rapidamente – não pela complexidade do tema, mas porque essas cidades já não sentem a guerra no cotidiano.
A mesma pergunta, no entanto, será respondida de forma muito diferente por quem até os dias atuais sofre com o conflito. Juan Carlos Ararat vive no norte do estado do Cauca — região afetada pela violência até os dias de hoje — onde também está presente a mineração e os cultivos de drogas ilícitas. Ele, que também é representante de um conselho comunitário de uma comunidade de negros e afrodescendentes chamado Brisas, tem uma opinião muito clara sobre os acordos de paz.
“Eu vejo com bons olhos, mas nós queremos que eles [governo e FARC-EP] também lembrem que nós vivemos nos territórios e somos as pessoas mais afetadas pelo conflito armado por vários anos. E também [que] o modelo de desenvolvimento [econômico] proposto pelo governo, que afeta muito a região com as licenças ambientais que acabam por retirar a nós, os camponeses, dos nossos territórios”, destaca Ararat.
Essa mesma lógica de exploração das terras é repetida praticamente em todas as partes do país. Uma grande empresa legal ou ilegal (narcotráfico) chega, com ou sem licença ambiental, se instala na região causando inúmeros problemas, e muitas vezes, inviabilizando a vida de quem vive no local com danos ambientais ou interferências nas rotinas que impedem a continuidade da vida ali.
Primeiro para se instalar, retiram as comunidades que já vivem nestas terras, o que geralmente é feito com o uso de violência por grupos criminosos armados, ou simplesmente por pessoas pagas para este tipo de serviço “sujo” para o qual o Estado faz vista grossa e, por vezes, colabora com a força policial para retirar as famílias, utilizando sua tropa chamada ESMAD (Esquadrão Móvel Antidisturbios).
Eles dão os avisos através de cartas, nas quais os nomes dos moradores estão completos e o prazo para deixar as casas é curto, em geral de 24 horas. Se os moradores decidem ficar, assumem o risco de serem assassinados por não cumprirem a “ordem”. Essas famílias que tiveram de deixar suas terras por conta do conflito armado ou por problemas ambientais são chamadas “desplazados”, e desde o início do conflito já somam mais de 6 milhões de pessoas.
Princípios e ações
O acordo final tem 297 páginas e conta com explicações e diretrizes para cada um dos seis pontos principais. O primeiro ponto, a Reforma Rural Integral (RRI), está norteado por 13 princípios que vão desde a regularização fundiária, desenvolvimento sustentável, maior presença do Estado, garantia de créditos e incentivos para os agricultores, soluções dos conflitos levando em conta a perspectiva de gênero até a erradicação da pobreza e a democratização da terra.
O primeiro tópico trata da criação do Fundo de Terras, no qual afirma que o Estado deverá disponibilizar uma área de 3 milhões de hectares nos primeiros 10 anos provenientes de decisões judiciais em favor do Estado, expropriações, doações, terras improdutivas ou que não cumpram sua função social e também demarcadas como reserva florestal, e sem prejuízo de camponeses que já vivam nos territórios, combatendo a concentração ilegal de terras.
Também, segundo o acordo, deverão ser concedidos subsídios e créditos especiais para a aquisição de terras em zonas prioritárias para as pessoas beneficiárias, em especial as mulheres. Entre os beneficiários estão os trabalhadores rurais com ou sem-terra suficiente, e terão prioridade os chefes de família e mulheres, e ainda a população deslocada pela violência, além da comunidades rurais e pessoas que já estejam nas listas de assentamentos.
De acordo com o documento, essas propriedades serão utilizadas para fortalecer a produção de alimentos, proteger o meio ambiente e substituir os cultivos de drogas ilícitas. Também será responsabilidade do governo disponibilizar pessoal capacitado para auxiliar os produtores na preparação da terra para os cultivos, com projetos de produção e comercialização dos produtos. E tudo isso com foco na erradicação da pobreza, fomentando a economia local e solidária das comunidades rurais.
Outro ponto de destaque do documento é a regularização fundiária dos títulos de pequenos e médios proprietários. Segundo o acordo, o governo deverá regularizar 7 milhões de hectares de forma ágil e gratuita, e as terras que forem concedidas através destes benefícios deverão ser inalienáveis e impenhoráveis, e caso se constate que é uma terra improdutiva, o território regressará ao Fundo de Terras.
A disputa de terras, como centro do conflito armado, também deverá receber um tratamento especial com a criação de mecanismos de conciliação e solução de conflitos neste tema, ou uma Jurisdição Agrária. E esse deverá vir acompanhado de estrutura para orientar as pessoas sobre seus direitos, fornecendo assistência legal, garantindo o acesso à Justiça e solução de conflitos de forma mais ágil, principalmente às mulheres e comunidades étnicas (indígenas, negras, afrodescendentes, quilombolas e outros povos originários).
As Zonas de Reservas Camponesas (ZRC), ainda dentro do acordo, serão territórios para a construção da paz com direitos e garantias políticas, econômicas, sociais e culturais onde serão implementados mecanismos de desenvolvimento sustentável da economia rural e que garantam o bem-estar social. As regiões onde se concentram os maiores números da pobreza terão prioridade nos benefícios propostos.
Para melhorar as regiões, também consta no documento um plano de infraestrutura para zonas de difícil acesso. A ideia é colaborar com o escoamento de produção, reduzindo o preço dos alimentos. O documento também prevê que as populações rurais tenham acesso à energia elétrica, conectividade, saúde, água potável, educação com programas de o combate ao analfabetismo.
Cem anos de conflito
Os anúncios sobre o acordo de paz afirmam que o conflito armado tem pouco mais de 50 anos, mas esse número, na verdade, é o tempo de existência das FARC-EP. O conflito rural colombiano é mais antigo, e remonta pelo menos cem anos, com outras guerrilhas, massacres por parte do Estado, espoliação de terras, assassinatos de líderes camponeses e até mesmo políticos.
Somado aos dados estatísticos, é necessário compreender como foi a ocupação de cada região e os diferentes modelos econômicos e contextos sociais. Para o economista Carlos Alberto Benevides, o contexto rural colombiano está permeado por uma diversidade de regiões como a costa do Caribe, o Pacífico, os Andes, as Planícies (Llanos) e a Amazônia, e que economicamente cada uma delas se desenvolveu de uma forma diferente.
“Existe uma série de combinações territoriais, culturais, políticas e históricas que configuram denominações muito particulares”, destaca. Benevides explica, por exemplo, que as regiões de planaltos andinos, na época da colônia espanhola, cresceram no entorno de grandes fazendas, mas foram constituídas por pequenos produtores familiares de economia de subsistência encontrados nas regiões de Nariño, Cundinamarca, Boyacá e Cauca.
O pesquisador conta ainda que outra forma de ocupação e desenvolvimento rural se deu nas zonas cafeeiras do país, junto às montanhas, muito focadas na exportação do café, mas já com propriedades um pouco maiores e com famílias também mais numerosas. E existe ainda o camponês “de fronteira”, que aos poucos expandia seu plantio e limpava novos campos para cultivos em meados do século 19 e 20.
O economista relata que, à medida em que esse grupo de agricultores abriam mais campos para plantações, tendiam a sofrer também espoliações e eram muitas vezes expulsos de seus territórios recém conquistados. “Ao mesmo tempo tinham muitas deficiências na produção e comercialização de seus produtos”, complementa.
A história também está permeada pela disputa de territórios pelos povos originários. Em 1910, um indígena do Cauca, chamado Quintín Lame começou a demandar o Estado legalmente com o objetivo de proteger as terras indígenas. A resposta do Estado foi a perseguição e sua prisão, e é também aí que surge uma das primeiras guerrilhas agrárias ou organizações de autodefesa.
Nesta mesma época surgiam os movimentos de trabalhadores do campo com os sindicatos, organizados principalmente por empregados de grandes empresas com o objetivo de melhora das condições de trabalho. A resposta outra vez foi a violência, com o Massacre da Bananeiras em Ciénaga, norte da Colômbia, quando entre dois e três mil empregados sindicalizados da United Fruit Company foram mortos pelo exército por se recusarem voltar ao trabalho.
Um integrante do partido liberal chamado Jorge Eliécer Gatián faz uma série de entrevistas e denuncia o fato. Ao mesmo tempo, surgem outras organizações de Ligas Camponesas, uma delas, por exemplo, em uma região perto de Bogotá, chamada Sumapaz. Mesmo com acordos entre liberais e conservadores em marcos legislativos para o campo, a paz segue sendo apenas letra morta, bem como as próprias leis, que não são aplicadas. A resposta por parte do Estado é sempre uma ofensiva militar contra os camponeses organizados.
Novamente, Gaitán vai a público e denuncia a violência promovida por latifundiários na zona rural contra pequenos produtores com a Marcha do Silêncio, e três meses depois o líder liberal é assassinado. Mas é a partir deste momento, em 1948, que começa o conflito agrário de forma contundente (chamado de “La Violencia”), reforça o pesquisador. “Os caminhos para fazer política na Colômbia estão atravessados pelo uso das armas, onde se elimina o adversário”, explica.
É no governo do presidente do partido conservador Guillermo León Valencia (1962-1966) que acontecem os ataques mais contundentes contra regiões sob controle dos camponeses (Marquetalia, Sumapaz, El Pato, Riochiquito e outras).
E também nesse contexto que, alguns anos depois, nasce um movimento de camponeses organizados, que mais tarde será conhecido como guerrilha camponesa ou insurgência, e depois se tornam as FARC-EP no estado de Tolima, o ELN (Exército de Libertação Nacional) em Santander, e em Córdoba e Sucre as bases do EPL (Exército Popular de Libertação).
Com o acirramento da guerra no campo, reacendem debates sobre novas reformas agrárias em alguns setores do governo, mas a resposta das elites do país é bastante dura. Após a constituição da guerrilha, atores do governo e grandes fazendeiros fazem uma reunião nos anos 70 que ficou conhecida como Pacto de Chicoral, onde decidem defender inclusive com o uso de paramilitares, as grandes propriedades no país contra qualquer possibilidade de mudança nos latifúndios.
“E é essa história de colonização, com desvantagens, desigualdades, e sem que eles fossem incorporados à vida institucional, somado a um Estado que atuava de maneira diferenciada nestas regiões, através de regulações econômicas e intervenções militares, que se intensifica a dinâmica guerrilheira e a possibilidade de resistência por parte desses colonos. E é disso que se tratam os acordos de Havanna, especificamente desses camponeses”, comenta.
Muita ou pouca terra?
Segundo o economista e diretor do Indepaz (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e Paz), Camilo Gonzales Posso, “o campo colombiano tem sido o cenário de uma desigualdade social onde se apresentam os mais altos indicadores de pobreza, miséria e carência de serviços básicos. Além disso, nos últimos 70 anos, também tem sido o cenário das mais cruéis violências de combates armados na guerra por disputa dos recursos naturais, onde os grandes perdedores são os camponeses”, destaca.
O especialista explica que o processo histórico teve como rumo, “a apropriação e acumulação da terra através da violência”. Ele afirma que o problema é profundo quando se analisam os dados estatísticos envolvendo os pequenos produtores. “Segundo registros, dos 4 milhões de títulos, 85% são pequenos produtores que não possuem terra suficiente para a subsistência”. Ou seja, que ainda que a família viva no campo, ela não possui espaço ou recursos suficientes para a própria sobrevivência.
A análise do dado é feita com base na UAF (Unidade Agrícola Familiar), cujo tamanho varia em cada estado do país, mas deve permitir que uma família gere pelo menos dois salários mínimos com a terra, o que equivale aproximadamente a U$ 1.379,000 pesos colombianos ou R$ 1.500,00. De acordo com Camilo Posso, a maior parte dos pequenos produtores não possui nem metade dessa unidade básica.
No ano de 2012, pouco mais de 30% da população colombiana vivia no campo, ainda que 94% do território do país seja considerado zona rural. Um dos maiores problemas de quem vive nessas regiões onde o Estado comumente não chega são os conflitos sobre quem tem a propriedade e licenças para explorar a terra. Ainda de acordo com a publicação especial da revista colombiana Semana, 77% das terras estão nas mãos de 13% da população, e destes, 3,6% detém 30% dos territórios.
A pesquisa vai além; cerca de 6,6 milhões de hectares foram espoliados pela violência nas últimas décadas, sendo 13% territórios que eram destinados à agropecuária. Quando se trata da posse de títulos, 18% não tem a formalização de propriedade, e destes, 40% são pequenos produtores. Contudo, 70% dos alimentos produzidos na Colombia são provenientes de pequenos produtores.
De acordo com Camilo Posso, um dos principais pontos do acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC-EP é o desenvolvimento agrário integral, que “revaloriza e leva em conta a economia das comunidades camponesas”. Ele explica que existe uma vasta legislação na Colômbia para cuidar do tema da reforma agrária, como a Lei 160 de 1994, mas que ela não dá a atenção devida os pequenos produtores.
“As grandes políticas que foram tomadas dos anos 60 para cá reafirmaram um modelo agrário exportador com produção em larga escala, e ao mesmo tempo consideram a pequena produção como ineficiente. Alegam que são os grandes produtores que possuem os investimentos, a tecnologia, a gestão adequada, capacidade de escoar a produção, e que os pequenos produtores só teriam viabilidade estando subordinados ou com alianças com os grandes”, destaca.
Para ele, o grande ponto proposto no acordo é um modelo de desenvolvimento misto entre os grandes produtores e as economias solidárias, as propriedades coletivas e a economia camponesa. “Em Havana [referindo-se ao acordo] não existe revolução, mas reformas. E reformas muito importantes. Existe um resgate do valor que essas economias têm, e inclusive, isso como estratégia de desenvolvimento econômico”, ressalta. O especialista diz que o caminho é transformar os pontos em programas e medidas práticas.
“Antes se dizia que o campo era um grande cenário de batalha e conflito, e ainda que não soe muito racional, o campo também é o cenário de esperanças e de aposta por outra maneira de viver”, finaliza Posso.
Edição: José Eduardo Bernardes