A destruição por trás de certa cultura alimentar
Por Inês Castilho
Do Outras Palavras
Cada vez mais pessoas se perguntam sobre a origem dos alimentos que colocam na mesa. Em tempos de uso maciço de agrotóxicos e sementes transgênicas na agricultura, e hormônios e antibióticos na pecuária, todo cuidado é pouco: pesticidas, herbicidas e medicamentos deixam vestígios na carne, no leite e nos ovos. Alimentar-se passou a ser uma prática arriscada.
Assim como o do açúcar, o consumo de carne é um hábito arraigado em nossa cultura alimentar. Sem “mistura” não há refeição, acreditam muitos. Mas não é mais possível deixar de refletir sobre o que há por trás daquela carne moída ou picanha suculenta. Vivemos no maior país produtor de carne bovina e de soja para a pecuária do mundo. A soja, em grande parte transgênica, tem sido uma grande causa do desmatamento. E a produção de um único quilo de carne consome 15 mil litros de água, num país que vive profunda crise hídrica,
O Atlas da Carne: Fatos e números sobre os animais que comemos revela os bastidores do consumo da carne no mundo: os males que causa à saúde humana, aos animais e ao meio ambiente. E apresenta as alternativas possíveis. Elaborado por pesquisadores da Fundação Heinrich Böll no Brasil, Chile, México e Alemanha, o Atlas mapeia a produção industrial de carne no mundo e conta como ela atinge recursos hídricos e solos, influencia as mudanças climáticas e aumenta a desigualdade. Fica claro que o preço da carne não reflete seu verdadeiro custo de produção.
“Você sabia, por exemplo, que a produção de carne está diretamente relacionada ao desmatamento da Amazônia? Que a criação animal em escala industrial traz consequências para a pobreza e a fome, provoca deslocamento e migração, afeta o bem-estar animal, além de contribuir ara as mudanças climáticas e para a perda de biodiversidade?”, pergunta o Atlas. As embalagens de carne, frango e linguiça que compramos nos supermercados não respodem essas questões.
A carne que comemos, em sua grande maioria produzida industrialmente, é de “animais que nunca, ao longo de sua curta vida, se mexem em espaços maiores de 20 a 50 cm, recebem quantidades enormes de antibioticos e são nutridos com soja, produzida em particular no Brasil, que com a safra de 2013-2014 tornou-se o maior produtor do mundo desses grãos, alcançando 90 milhões de toneladas anuais.”
O Brasil está ou em primeiro lugar ou entre os primeiros três, no mundo, na produção e exportação de carne bovina, frango, soja e milho. A demanda vem também da Europa, onde o gado é alimentado pela soja e milho produzidos aqui. “Nesse sentido, a ideia do Atlas é mostrar que os consumidores europeus são coniventes dos males que a produção da soja traz ao Brasil.”
As políticas públicas fomentam o agronegócio, que recebe subsídios muito maiores que os da agricultura familiar, mas é esta que alimenta o povo brasileiro, produzindo 70% dos alimentos consumidos no país. Algumas das consequências deste modelo de produção são grilagem de terra, expulsão de pequenos agricultores, assassinatos de líderes camponeses e indígenas, além de fortes impactos na saúde das pessoas que trabalham com agrotóxicos.
Contudo, aponta o Atlas, se o consumo de carne fosse reduzido e a carne produzida de modo diferente, com criação de gado em pequena escala e em zonas urbanas, o meio ambiente poderia ser protegido e a pobreza, reduzida. O uso apropriado do solo, integrado à criação de animais, tem um efeito ambiental positivo.
“A carne pode ser produzida mantendo os animais em pastos ao invés de confinados, produzindo e consumindo localmente ao invés de transportá-la por milhares de quilômetros. O esterco não precisa pesar sobre a natureza e na saúde da população local, ele pode ser espalhado pelos campos do próprio fazendeiro, enriquecendo o solo.”
O “Atlas da Carne” nos leva a viajar ao redor do mundo, com informações sobre as conexões globais feitas quando comemos carne. Afinal, “a produção e o consumo de proteína animal é também, certa e eminentemente, um assunto econômico, político, socioambiental, sem mencionar a saúde pública.”
Outras Palavras publica a seguir o capítulo “O que a soja brasileira tem a ver com a pecuária globalizada?”….
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O que a soja brasileira tem a ver com a pecuária globalizada?
A soja brasileira é resultado da cadeia produtiva global do agronegócio, que é dominado por um pequeno número de empresas multinacionais responsáveis por controlar todas as etapas do processo de plantio, dos insumos ao maquinário.
A soja é a cultura agrícola que, globalmente, vem crescendo em ritmo mais acelerado nas últimas décadas, estimulada pelo forte aumento do consumo de carnes, principalmente nos chamados países emergentes. Estima-se que 90% da soja produzida no mundo tenha como destino a fabricação de farelo utilizado em rações animais, como fonte de proteínas.
O cultivo é concentrado em um pequeno número de países. Estados Unidos, Brasil e Argentina responderam em 2014 por 82% da produção e 81% das exportações mundiais do grão, segundo dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Embora os Estados Unidos sejam o maior produtor, é na Argentina, Brasil e Paraguai que a expansão do cultivo ocorre em ritmo mais acelerado. A China é o maior importador. Suas compras representam quase dois terços de todo o comércio mundial. A União Europeia vem em segundo lugar, com 11%. Nos últimos anos, o Brasil alterna com os Estados Unidos a posição de maior exportador de soja em grãos.
No Cone Sul, a produção agrícola sob a forma de grandes áreas de monoculturas, como no caso da soja e do milho, não atrai apenas a presença de grandes fazendeiros. Estão presentes na cadeia produtiva destas culturas grandes empresas multinacionais, dedicadas à produção de máquinas, equipamentos e insumos agrícolas. São elas que se apropriam da maior parte da renda gerada a partir da produção agrícola.
A soja tem peso crescente nas exportações brasileiras. Em 2014, foi o principal produto de exportação, respondendo por mais de 10% do valor total das exportações. Apesar do elevado consumo interno, pois o Brasil é grande produtor de carnes, o país exporta em média 70% de sua produção total.
As principais empresas da cadeia produtiva são quatro grandes multinacionais, presentes em todos os países exportadores de soja, que comercializam os grãos adquiridos de agricultores: Bunge, Cargill, ADM (norte-americanas) e Dreyfus (francesa). Juntas, compram cerca de dois terços da soja produzida no Brasil. Respondem também por cerca de 60% das exportações brasileiras de soja, e todas se situam entre as dez maiores exportadoras do país. As empresas nacionais do setor têm participação mais reduzida, destacando-se a Amaggi, a Coamo e a Caramuru. É também crescente a participação das quatro multinacionais na produção do biodiesel elaborado a partir do óleo de soja. Bunge e Cargill são as maiores produtoras. Além disso, essas quatro grandes comercializadoras de grãos dominam a maior parte das indústrias de esmagamento da soja e de produção de fertilizantes.
Estas mesmas empresas oferecem financiamento ao produtor para o plantio da soja. As empresas financiam diretamente ou através de intermediação todo o plantio, dos insumos ao maquinário, utilizando-se de mecanismos como o da“soja verde”, através do qual o produtor vende a soja antecipadamente em troca de sementes, fertilizantes químicos e pesticidas. Contratos como estes terminam por aprisionar o produtor, já que, ao final da colheita, sua pequena margem de lucro não permite mais do que a subsistência. Assim, ele se vê forçado a assinar um novo contrato que lhe permita seguir sobrevivendo.
Ainda como consequência desta modalidade de contrato de financiamento, os produtores compram das empresas um pacote tecnológico fechado, que determina o maquinário e os insumos a serem utilizados. É aí que entram em cena outras grandes multinacionais, que dominam os diversos segmentos da cadeia produtiva do agronegócio, cada vez mais concentrado em mãos de um pequeno número de empresas.
As principais fabricantes de máquinas agrícolas são as norte-americanas John Deere e AGCO (proprietárias das marcas Massey Ferguson e Valtra) e a italiana Case New-Holland. No fornecimento de sementes (transgênicas), as norte-americanas Monsanto e Dupont, a suíça Syngenta e a alemã Basf dominam o mercado. O segmento de fertilizantes passou a ser controlado por um oligopólio privado, composto por três multinacionais: Hydro/Yara (norueguesa), Bunge/Fosfértil (holandesa) e Cargill/Mosaic (americana). Juntas, essas empresas dominam 90% do mercado brasileiro de fertilizantes químicos.
Desde 2008, o Brasil já é o maior consumidor mundial de agrotóxicos e o cultivo da soja responde por cerca de 45% do valor do consumo destes produtos no país. As seis maiores empresas produtoras – Basf, Bayer, Dow, Dupont, Monsanto e Syngenta – controlam hoje 66% do mercado mundial. E, no Brasil, as dez maiores empresas são responsáveis por 75% das vendas de agrotóxicos. O país, que é também o maior importador mundial, tornou-se um mercado especialmente atraente para fabricantes de agrotóxicos proibidos na Europa e Estados Unidos, como a norte-americana FMC, a dinamarquesa Cheminova, a alemã Helm e a suíça Syngenta.
Estas empresas que dominam a cadeia produtiva da soja, juntamente com um pequeno número de grandes produtores rurais, se apropriam da maior parte da renda gerada pela atividade. Concentrando a propriedade da terra e agredindo o meio ambiente, a expansão da soja tem como virtude única a obtenção de divisas com exportações, enquanto acumula uma crescente dívida social e ambiental.