A contribuição dos assentamentos rurais para uma região em conflito
Por Daniel Giovanaz
Do Brasil de Fato
Quem cruza a BR-158 pode não acreditar, mas tudo o que se vê no sentido Oeste depois da ponte sobre o rio Xagú, entre Rio Bonito e Saudades do Iguaçu, são áreas ocupadas por Sem Terra.
Na margem direita da rodovia, próximo à encosta do rio, está o antigo acampamento Buraco, um dos símbolos da luta dos trabalhadores rurais no Centro-Sul do Paraná. Foi lá que o fotógrafo Sebastião Salgado produziu a série Terra, em 1996, e imortalizou as primeiras ocupações de áreas da empresa Araupel Celulose.
O terreno pertence ao município de Rio Bonito do Iguaçu, que tem cerca de 14 mil habitantes – quase 70% da população vive em áreas de assentamento ou acampamento. Nas eleições municipais fala mais alto a voz daqueles que colocam comida e bebida na mesa da cidade.
Apoio e criminalização
O prefeito Ademir “Gaúcho” Fagundes (PHS), eleito em 2016 com 4.690 votos, defende que os assentados são responsáveis pelo desenvolvimento recente do município. Nos últimos 18 anos, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do município saltou de R$ 2.858,00 para R$ 14.679,00.
“Se não fossem os sem-terra, esse lugar poderia se chamar Rio Feio”, brinca o prefeito. “Não interessa ao município tanta terra na mão de poucos. Então, a gente espera ter em breve aqui mais assentamentos, para desenvolver ainda mais a nossa região”.
As famílias que vivem desde 2004 nos assentamentos Ireno Alves dos Santos e Marcos Freire produzem arroz, feijão, milho, trigo, aveia, mandioca, batata-doce e vários tipos de frutas. Os assentados das regiões Sudoeste e Centro-Sul do Paraná também investem na produção e exportação de laticínios através das cooperativas Cooperjunho e Cooperoeste Terra Viva.
O presidente da Câmara de Vereadores de Rio Bonito, Milton Rodrigues da Silva (PT), é filho de acampados. Assim como o prefeito, ele prometeu durante a campanha incentivar a reforma agrária e melhorar a qualidade de vida nos assentamentos. Isso não significa que não haja criminalização do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na região.
O vereador mais votado na última eleição no município vizinho, Quedas do Iguaçu, é militante do movimento e está preso desde novembro de 2016. Claudelei Torrente de Lima (PT), conhecido como Cachorro, foi acusado de participar de uma ação criminosa que, dentre outros delitos, teria furtado 1,3 mil cabeças de gado em uma fazenda conhecida como Dona Hilda.
A operação Castra, que prendeu Cachorro, mira outros integrantes do MST, baseada em relatos de latifundiários da região que estão insatisfeitos com a perda de terras nos últimos anos. Além do vereador petista, estão presos outros seis membros do MST no Centro-Sul do Paraná. Entre eles, Fabiana Braga, de 22 anos, conhecida como Bugra.
Como Fabiana e Claudelei, cerca de 40% dos brasileiros que estão atrás das grades não receberam uma sentença definitiva ou não tiveram a oportunidade de se defender em todas as fases do processo. Prisões sem provas, cada vez mais frequentes no Brasil, ameaçam o direito de defesa e o princípio constitucional da “presunção de inocência” – todo cidadão deve ser considerado inocente, até que se prove o contrário.
No início do mês, a defensora pública do Paraná, Camille Costa, participou de uma audiência pública em Rio Bonito do Iguaçu para mediação do conflito e se colocou à disposição dos sem-terra para receber denúncias de violações de direitos humanos. “Lutar pela reforma agrária não é crime”, esclareceu.
Histórico
O acampamento Buraco, fotografado por Sebastião Salgado na década de 1990, trouxe para a região cerca de três mil famílias de 62 municípios diferentes. O local ficava dentro da Fazenda Pinhal Ralo, próximo ao rio Xagú, e as terras foram destinadas à Reforma Agrária.
Latifúndios improdutivos – a maior parte pertencente à empresa Araupel Celulose – representavam quase metade da área de Rio Bonito do Iguaçu após a emancipação do município, em 1992. Esses terrenos, próximos ao Buraco, foram ocupados por trabalhadores sem-terra, que apostaram na produção de alimentos orgânicos e diversificados, montaram seus barracos de lona e começaram a lutar pela regularização dos lotes.
O conjunto formado pelos assentamentos Marcos Freire e Ireno Alves dos Santos era, até 2015, o maior da América Latina.
Evolução
Escolas, postos de saúde, igrejas, centros comunitários. Conforme o Estado atribui legitimidade às ocupações dos sem-terra, melhora a estrutura e a qualidade de vida nos assentamentos. Hoje, quase todas as casas são de madeira. As construções são simples, algumas quase rudimentares, mas não há grande disparidade entre as casas de uma mesma comunidade: as famílias se ajudam e evoluem juntas, no mesmo ritmo.
Nos assentamentos, não há tratamento de água. As casas são abastecidas por fontes de água – chamadas de “minas” –, e em algumas propriedades existe um projeto de instalação de poços artesianos intermediado pela Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar). Em todo caso, a água que sai da torneira é fresca, potável, e suficiente para garantir a irrigação das plantações.
O comércio agradece
Em Rio Bonito do Iguaçu, o comércio fecha às seis da tarde, mas o movimento termina às três e meia. É nesse horário que circulam pelo Centro os ônibus que conduzem os trabalhadores rurais de volta para casa. Depois que os ônibus partem, a cidade fica às moscas.
Como os assentamentos e acampamentos não dispõem de todos os serviços, muitos moradores costumam ir à cidade para pagar contas ou comprar os mantimentos que não são produzidos ou comercializados no campo.
A diferença de movimento no Centro antes e depois que os assentados vão embora ilustra a contribuição dos sem-terra para a economia na área urbana. O empresário Celso José Bittencourt, que abriu um supermercado em Rio Bonito em 2002, ressalta a importância da consolidação dos assentamentos, a partir de 2004: “O movimento ficou muito bom, não só para o ramo de supermercados, mas para as lojas, as farmácias, os bancos. Tanto que até as três e meia é o horário de pico, e isso não é só para o mercado”, relata o empresário. “É um pessoal trabalhador, que está na luta sempre. Eles já são da casa”.
Comida versus madeira
A Araupel é responsável por 15% da madeira industrializada exportada pelo Brasil. Fundada em 1972, a empresa adquiriu um latifúndio de cerca de 75 mil hectares dentro das fazendas Rio das Cobras e Pinhal Ralo. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), uma parte significativa daquela área é composta por terras públicas.
Em 1996, o MST definiu como estratégia política ocupar as terras griladas que estavam em posse da madeireira e lutar para convertê-las em assentamentos. O Incra oficializou, até hoje, a desapropriação de 50 mil hectares. Assim, uma área superior a 20 mil hectares segue em disputa: os sem-terra continuam acampados, e a empresa reivindica a reintegração de posse do terreno.
Em novembro do ano passado, uma reportagem do Brasil de Fato mostrou que a Araupel Celulose foi uma das financiadoras da última campanha de Beto Richa (PSDB), para governador, e do atual chefe da Casa Civil, Valdir Rossoni (PSDB), para deputado federal. Nas eleições de 2014, membros do partido receberam da madeireira cerca de R$ 210 mil.
Os dirigentes do MST consideram que a operação Castra, que levou à prisão de sete integrantes em novembro, é parte de uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais no Brasil, com o apoio do Executivo e do Ministério Público.
Paz para quem?
Laureci Leal, representante do MST em Rio Bonito, esteve na audiência pública do último dia 3 e manifestou preocupação com as injustiças na região: “Se acabar a guerra e vier a paz, não pode ter mais prisioneiros de guerra. Não se pode admitir que uma única família seja dona de toda essa terra”, ressaltou. “A paz só vem com a Reforma Agrária”.
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) acompanha a operação Castra desde o ano passado para apurar abusos e ilegalidades. Presidente do CNDH, Darci Frigo também participou da audiência, e foi enfático: “A reforma agrária é um fundamento para a realização de muitos direitos humanos. É preciso dar um basta a esse processo de tratar os movimentos sociais como organizações criminosas”, analisou. “Queremos paz. Mas uma paz com justiça, com democracia, com respeito aos direitos dos cidadãos”.
Não a paz concentrada dos latifúndios, mas uma paz sublime como a dos fins da tarde no acampamento Herdeiros da Terra, em Rio Bonito do Iguaçu. Enquanto o sol se põe no horizonte, homens e mulheres jogam bola no campinho de terra e aproveitam a última réstia de luz para se divertir após o dia de trabalho na roça. Desta serenidade só desfrutam aqueles que estão acostumados a lutar.