Débora Nunes relata o cenário político para o campesinato brasileiro
Por Rafael Soriano
Da Página do MST
O Brasil enfrenta mudanças políticas desde a crise que resultou na saída de Dilma Roussef da presidência. Alguns setores da sociedade, contudo, sofrem medidas específicas no corte de direitos e nas violações de direitos humanos. Neste contexto, o MST sustenta a luta por uma Reforma Agrária Popular, que construa soberania alimentar para famílias que vivem no campo e na cidade.
Débora Nunes, da Direção Nacional do MST, dialoga conosco sobre o atual cenário de luta pela terra no mundo, mas vai além: remete à necessidade de fortalecimento de articulações como as do Papa Francisco e a própria Via Campesina, como alternativas viáveis de mobilização contra o capitalismo.
É um informe atualizado sobre o contexto político que passa os camponeses no maior país da América Latina, tendo em perspectiva as bruscas mudanças trazidas por um golpe de Estado em 2016. As lutas massivas acontecem denunciando a Reforma Trabalhista e da Previdência, mas Débora reflete: “temos grandes desafios para enfrentarmos o golpe e suas consequências, precisamos comunicar melhor e organizar as massas.”
Confira a íntegra.
Qual a condição de luta pelo acesso à terra e contra a concentração fundiária no Brasil após o Golpe de 2016?
A questão do acesso à terra no Brasil é secular e até o presente momento não solucionada, contudo ela tem se aprofundado em suas contradições e consequências danosas, em relação a camponeses e camponesas Sem Terra, povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e a toda a sociedade, ganhando traços mais violentos a partir do acirramento da luta de classes. É o que vivemos atualmente no Brasil após o golpe jurídico, parlamentar, industrial e midiático de 2016.
Após o golpe a burguesia agrária brasileira e o agronegócio ganham muito mais força no governo golpista e ilegítimo de Michel Temer, e assim como em outros setores vão avançando na viabilização de um projeto ainda mais conservador e violento para o campo Brasileiro, sobretudo através da ação da bancada ruralista, retirando direitos, inviabilizando o acesso a terra e tirando vidas.
Essa ofensiva acontece em diferentes frentes. No final de 2016, o governo mandou para o congresso nacional, a Medida Provisória 759 que trata da regularização fundiária e urbana. Inclusive a mesma foi sancionada no ultimo dia 11 de julho, e agora é lei. As principais consequências são a reconcentração e mercantilização de terras públicas. Com o processo de titulação imposta pelo governo, terras da reforma agrária que hoje estão com os trabalhadores e trabalhadoras podem ser reconcentradas e voltar para as mãos do latifúndio e agronegócio.
Além de reconcentrar a terra, a nova lei isenta o Estado de sua responsabilidade, uma vez que, tituladas as famílias, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não mais tem responsabilidade de garantir políticas de permanência destas famílias com condições dignas. Nessa frente outras ações também são reforçadas como a ofensiva sobre territórios quilombolas e indígenas, flexibilizando a legislação e impedindo o seu reconhecimento.
Outra ação que acontece é o não assentamento de novas famílias, com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e o sucateamento e inviabilização do Incra. Há um grande aumento da violência contra a vida de quem luta e resiste no campo. Só em 2017 já são 38 assassinatos no campo brasileiro.
O modelo do agronegócio sai fortalecido do Golpe? Em que sentido?
Muito fortalecido. Pois neste momento a bancada ruralista tem garantido no congresso nacional a aprovação de leis que favorecem as condições necessárias para o avanço e fortalecimento do agronegócio, que vai desde a retirada de direitos dos camponeses/as, quilombolas, povos tradicionais, etc, até a liberação irrestrita de apropriação das terras, inclusive por estrangeiros, e a apropriação dos bens da natureza. Então tudo o que ainda existe de limite à ação irresponsável e irrestrita do capital na agricultura está sendo flexibilizado. Há também um desmonte total do que ainda restava de politicas voltadas para a pequena agricultura.
Os casos de violência no campo têm aumentado. Existe uma relação direta com a conjuntura política?
É alarmante o aumento da violência no campo no ultimo período, em suas diversas formas. Sem dúvida, tem relação direta com a conjuntura politica, pois ao mesmo tempo que avançam na retirada das conquistas através da ação da bancada ruralista no congresso, o que impede o fortalecimento da classe trabalhadora camponesa, também agem na ação direta da violência, uma vez que se permite tacitamente que as questões e conflitos fundiários sejam resolvidos aos moldes do que historicamente se fez no Brasil – na truculência e na base da violência, seja do Estado com seu aparato policial indo a campo matar e forjando conflitos que só matam de um lado, o lado dos/as trabalhadores/as, seja através da milícia armada, da pistolagem e das empresas particulares de segurança, que se valem da impunidade para fazerem justiça com as próprias mãos: despejam, mutilam, torturam e matam. Só este ano já foram assassinados 38 pessoas no campo, com massacres como é o caso de Conilza, Mato Grosso e Pau Darco no Pará.
Como o MST e os demais movimentos sociais tem enfrentado esta conjuntura de retrocessos nos direitos da classe trabalhadora, que atingem com violência o campesinato?
Primeiro, na consciência de que vivemos um golpe articulado por setores conservadores da elite brasileira, judiciário, ministério publico federal, congresso federal, a grande mídia e o imperialismo, ter essa compreensão é fundamental para podermos enfrentar a situação. Isso nos possibilita entender que os nossos inimigos são grandes e estão muito bem articulados, logo só é possível enfrenta-los com um amplo processo de unidade da classe trabalhadora e de setores progressistas da nossa sociedade. Por isso que temos gasto energia e de maneira generosa contribuído para o fortalecimento de instrumentos que apontem nesta direção, a exemplo da Frente Brasil Popular, uma frente ampla que tem sido construída com centenas de organizações, não apenas para termos unidade de leitura e reflexão, mas sobretudo de ação, de construção e realização de lutas conjuntas.
Mas ainda temos grandes desafios para enfrentarmos o golpe e suas consequências, precisamos comunicar melhor e organizar as massas. A formação politica também é condição para que todos compreendam o que esta em jogo e enfrentem essa classe dominante que saqueia nosso país e massacra o nosso povo há 2017 anos.
Qual a movimentação do Golpe? Como o movimento interpreta este cenário?
Não há necessariamente um golpe dentro do golpe, mas etapas de um mesmo golpe que tem objetivos bem definidos e que está aproveitando o momento para realizar todas as reformas necessárias para viabilizar o capital financeiro, às custas da retirada de direitos dos/as trabalhadores/as. Assim para os interesses do golpe trocar o presidente golpista Temer pelo presidente da Câmara Maia, é como trocar 6 por meia dúzia.
Não importa quem está na “condução”, mas que aquilo que foi traçado seja garantido, as reformas trabalhista e da previdência, redução do custo trabalho, precarização, liberação de terras para estrangeiros, retrocessos sociais etc.
A grande questão que já se observa é que há um desgaste com a figura do Michel Temer, pela impopularidade, pelas denuncias de corrupção. Enfim, esses fatores que envolvem a figura do presidente ilegítimo não podem, para seus articulistas, colocar em risco o curso do Golpe. Então a proposta é trocar e garantir todas as reformas contra o povo.
Que alianças tem sido construídas em nível global na luta contra o sistema capitalista e quais os próximos passos dessa luta? Conseguimos enxergar experiências práticas de alternativa ao sistema?
Assim como temos nos esforçado a nível de Brasil em construir alianças para enfrentar de forma unitária e solidária este momento difícil que atravessamos na conjuntura política, através de frentes de luta, estamos em sintonia com outras movimentações de unidade ao redor do globo. Enxergamos em primeiro plano a Via Campesina, como uma grande aliança intercontinental de povos camponeses contra os avanços do capitalismo na agricultura e nos campos, águas e florestas. Outra forte iniciativa recente que merece nossa atenção é a articulação que surge em torno do posicionamento em favor dos pobres sustentada pelo papado de Francisco II, que promove o Encontro Mundial de Movimentos Populares.
O grande passo que precisa ser dado é esse, a construção de lutas massivas unitárias a nível global e que consigam realmente se opor e dar respostas às ações de devastação estabelecida de forma cruel pelo sitema capitalista em todo o mundo, não só na apropriação da natureza mas na retirada de direitos e destruição da soberania dos povos. Conseguimos enxergar experiências pontuais que dão o exemplo, a resistência do povo de Cuba, a luta em toda América Latina e no mundo. Apesar de estas experiências acontecerem hoje desarticuladas, o desafio que se coloca é justamente articular as diversas resistências num processo único, numa articulação e ação global que possa enfrentar o capitalismo.
*Editado por Maura Silva