Perdemos um grande

O MST lamenta profundamente, a morte de Daniel Viglietti. Nascido em uma família de músicos, foi desde sua juventude um artista com fortes convicções ideológicas de esquerda
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  A Daniel Viglietti
(Uruguai/americalatina 1939-2017)
 
E então a arte é surpreendida:
A morte como uma ferida
Faz doer de novo os corações.
É a perda, é a falta é a retirada
É a partida da vida entusiasmada
De quem viveu para tecer canções.
Se as cordas calam, agora, paciência…
O mundo perde em inteligência
Mas ganha muito em recordações.
É o fim de um tempo, mas não o fim da arte
Segue vivendo aquele que reparte
Letras, mensagens, versos e melodias…
É a recompensa que dá a eternidade
A quem viveu da criatividade
Trazendo ao mundo valores e alegrias.
Cantará agora por outros seguidores
Fecham-se as portas aos torturadores
Abrem-se os tempos das velhas utopias…
Crenças e cantos vibram a mesma história
Versos e textos lavram as memórias
De um mundo novo que já principia.
É o dia nascendo com Sol no horizonte
É o rio passando por baixo da ponte
E os passos indo andando sobre os planos.
Duras batalhas corrigirão falhas
E os acertos domarão enganos.
Como os trigais das roças semeadas 
Suas mensagens margearão estradas
Para animar as marchas prolongadas
Que surgirão nos próximos anos.
É na certeza da missão cumprida
Que suas canções serão repartidas;
Para fazer-nos sempre mais humanos.
 
 
 Ademar Bogo
Bahia,  31 de outubro de 2017

 

 

Da Página do MST 

O músico e compositor uruguaio Daniel Viglietti, foi um ícone cultural de resistência às ditaduras no Uruguai e na América Latina. Viglietti morreu na noite dessa segunda-feira (30) em Montevidéu, aos 78 anos, enquanto passava por uma intervenção cirúrgica.

Nascido em uma família de músicos, foi desde sua juventude um artista com fortes convicções ideológicas de esquerda, se tornando uma referência da música de protesto durante a década de 1960.

O MST lamenta profundamente, perdemos um grande músico e lutador, mas, acima de tudo, perdemos um grande amigo. Fica aqui nossa saudade e a certeza de nos mantermos firmes na luta por uma sociedade melhor e mais justa. 

 

Abaixo uma das últimas entrevistas de Viglietti concedida a Revista Viés: 

“Me perdoem a voz, é que fui acometido por um vírus. Estou começando a crer que é um vírus imperialista”, explicou-se Daniel Viglietti assim que se acomodou no palco na noite de domingo do dia 11 de novembro. Nem mesmo a gripe ‘imperialista’, que tentava fraquejar sua voz, impediu a emoção e a beleza da apresentação. A luta e o sangue de povos e de militantes mortos pode ser sentida na voz do artista que, além de músico, é símbolo da resistência uruguaia ao regime ditatorial que reinou no país entre 1973 e 1985.

Abriram o show os músicos Pedro Muñoz  e Hector Rojas, este chileno, conterrâneo de Victor Jara. Os ideais deles encontraram-se naquela noite nas batidas da música tocada “en la guitarra” de Hector. Jara foi um dos maiores compositores sul-americanos e, por isso mesmo, por escrever e cantar músicas de contestação jamais esquecidas, foi morto pela ditadura de Pinochet. Mas Hector Rojas transcendeu o tempo de Victor e sua perene luta frente aos microfones, e trouxe ao início do século XXI o teor político, os olhos de garra e a batida folclórica chilena para que jamais esqueçamos o passado e para que o futuro seja o palco – como naquele onde cantou na noite de domingo – da voz popular da América Latina.

Após os shows de abertura, Viglietti entrou em palco explicando-se pela gripe. Mesmo assim, a voz forte ecoou pelo ambiente cantando músicas de resistência e de inconformação com as injustiças atuais. Daniel Viglietti ainda realizou outro show em Pelotas no dia seguinte, marcando a abertura do “II Seminário Internacional e I Fórum de Educação do Campo da Região Sul do RS: campo e cidade em busca de caminhos comuns”, evento que, durante três dias, discutiu as dimensões socioeconômicas, políticas e culturais do espaço urbano e do espaço rural durante debates e paineis com nomes conhecidos como de Atílio Borón. A apresentação, realizada no Teatro Guarany, local do seminário, também contou com as participações de Pedro Muñoz e Hector Rojas. Durante o show, enquanto Viglietti interagia com o público, uma mapuche, na plateia, levantou a bandeira de seu povo, que sofre hoje com a apropriação de terras pelos latifundiários no Chile. E, assim, em meios às canções, hinos que simbolizam a resistência de tantos povos e etnias, a luta de tantos contra regimes opressores, a noite do dia 12 de novembro encerrou-se, lembrando a todos que é possível e necessário romper o silêncio e caminhar em direção a um embate que tente chegar à justiça social, étnica, política e cultural.

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Viglietti em entrevista. Fotografia: João Victor Moura.

O ARTISTA

Daniel Viglietti Alberto Indart nasceu em 24 de julho de 1939 na capital uruguaia, Montevidéu. Sua mãe, Lyda Indart, era pianista; enquanto seu pai, Cedar Viglietti, tocava guitarra, o que já ofereceria a Daniel Viglietti, ainda criança, o contato com a música erudita. Estudou violão com Atilio Rapatan e Abel Carlevaro, consagrados músicos uruguaios reconhecidos mundialmente. Entre os admiradores confessos de Carlevaro, por exemplo, está o maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos. A partir dos renomados professores, Viglietti adquire a formação enquanto concertista. Aos poucos, contudo, o destaque nacional que Viglietti recebe é especialmente por sua música caracteristicamente popular, folclórica, retratando a desigualdade social e as lutas do povo pobre e trabalhador, com destaque para a luta pela reforma agrária.

Em 1963, lança seu primeiro disco “Impresiones para canto y guitarra y canciones folclóricas”. As temáticas retratadas em suas canções, como era de se esperar, despertam o desagrado das autoridades que, em 1972, preparavam o golpe civil-militar no Uruguai. Daniel é preso, fato que provoca mobilização mundial pela sua libertação. Entre as grandes figuras que se manifestaram em favor da libertação de Viglietti estavam o filósofo francês Jean Paul Sartre, o político francês François Mitterrand, o escritor argentino Júlio Cortázar e o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Em 1973, Viglietti parte para o exílio na Argentina, seguindo depois para a França, onde ficaria por 11 anos. No exílio, trabalha na imprensa como jornalista e locutor, além de viajar por diversos países denunciando, através de suas músicas, a ditadura vivida no Uruguai e em tantos outros países da América Latina durante o mesmo período.

O retorno de Daniel Viglietti a Montevidéu só ocorreria no dia 1 de setembro de 1984 quando era aguardado por milhares de pessoas para uma apresentação. Um de seus companheiros de exílio, o poeta uruguaio Mario Benedetti, também tornaria-se seu companheiro de composições. Em 1985, por exemplo, ambos lançam o disco “A dos voces con Mario Benedetti”. A parceria com poetas, por sinal, é uma marca de Viglietti, que musicou diversos poemas durante sua carreira. Entre os poetas “adaptados” às cordas do violão de Viglietti estão Líber Falco, César Vallejo, Circe Maia, Rafael Alberti, Federico García Lorca e Nicolás Guillén.

Ao todo, Viglietti lançou 14 discos, sendo o último “Devenir”, de 2004. O resgate de suas obras, por sinal, é uma das principais atividades do cantor, que tem reeditado seus antigos discos em CD. Para que isso fosse possível, no entanto, o autor precisou brigar na justiça pelos direitos autorais de suas próprias músicas, visto que sua antiga gravadora, a Orfeo, foi comprada por um grupo multinacional. A vitória de Viglietti e o retorno dos direitos autorais sobre suas próprias criações só ocorreu em 1999.

Hoje, aos 73 anos, Viglietti segue fazendo shows em diversos lugares do mundo, da mesma forma que seus shows seguem ocorrendo especialmente em eventos organizados por movimentos sociais – como o show em Pelotas, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – e com o objetivo de discutir as temáticas que tanto foram abordadas em suas músicas.

Após o primeiro show em Pelotas a revista o Viés entrevistou, ainda que brevemente devido às suas condições de saúde, Daniel Viglietti.  Confira abaixo.

Viglietti em entrevista. Fotografia: João Victor Moura.

Depois de cantar “Milonga de andar lejos” , o senhor disse que ela era uma canção de amor. Por que o senhor diz que esta e outras canções, as quais normalmente chamamos de canções de protesto, são canções de amor?

Bom, eu conheci o termo ‘[canção de] protesto’ em 1967 quando fui à Cuba, no que foi chamado ‘Encuentro de canción protesta’, porque influência do movimento ‘protest song’ dos Estados Unidos. Por isso, esse festival de Cuba acabou se chamando ‘Encuentro de canción protesta’, que seria então o encontro de canção de protesto. Bom, o termo foi útil, serviu à causa, mas é um termo um pouco estreito, porque se pensas no que eu cantei hoje, por exemplo, não é apenas protesto, há outros sentimentos diversos. Então eu gosto de fazer esse jogo de palavras e dizer que “quiçá todas são canções de amor”.  Digo ‘quiçá’, porque não quero colocar um rótulo… Meu próximo disco se chamará ‘canções humanas’, mas às vezes eu penso que todo tempo que passamos buscando um adjetivo para uma canção, é melhor utilizar para fazer canções. De toda maneira, eu gosto de dizer que eu falo de amor, por que a motivação de todas as lutas é por um mundo mais justo. Por um mundo onde reine o amor e não o ódio, e não a agressividade e o egoísmo, como existe em todo esse sistema capitalista, neoliberal, como queiram chamar, esse sistema infernal. Então por isso eu gosto de jogar com essa ideia. E depois, claro ‘essa é de amor, essa é de outro tipo de amor’, porque também creio que é bom manejar um pouco com o humor, porque há o risco de que temáticas tão sérias possam ser traumáticas às vezes e um excesso pode bloquear a comunicação. Às vezes temos que rir um pouquinho, ter momentos de humor, apesar de estar falando de gente que caiu, que faleceu em meio a uma luta. É difícil o roteiro de uma apresentação. E nunca um é igual a outro, isso é uma tarefa difícil, que às vezes se pensa que o cantor faz de memória. Fórmula existe, eu posso manejar com ela de vez em quando, mas sempre a mudo.

O senhor tem uma preocupação em resgatar os nomes de lutadores históricos e falaste antes, durante a apresentação, sobre o papel pedagógico da música. Por que crê que é tão importante resgatar a história?

Bom, porque somos influenciados por uma história mentida, por uma história daqueles que estavam no poder, uma história escrita pelos poderosos, que têm sido donos da educação, donos do ensinamento e isso tem que mudar. Então isso é elementar, são canções que eu não nasci pensando em fazê-las desta maneira, eu as fiz por outras circunstâncias, mas a cada tanto me ocorre mencionar os nomes que teriam que estar em livros de história, é totalmente injusto que tenham proibido, que tenham inculcado a ideia de que os lutadores eram bandidos, eram assassinos. Há que se limpar essa ideia porque isso não foi assim. O terrorismo foi o terrorismo do Estado, com tudo o que fez. E quando o povo pegou em armas não foi porque quis pegar em armas, mas eles tiveram que pegar em armas, há momentos em que não há outro caminho. No Uruguai quando tomaram as armas, está certo havia uma democracia, mas já não era democracia, era uma ‘democradura’ cheia de decepções, de regramentos, de medidas de segurança, e já estava instalada funcionando a tortura. E quando no Chile se lutou assim também foi motivado por todas essas injustiças reinantes e pela impossibilidade de mudar por outras vias. Agora se está em outra etapa, não é uma etapa maravilhosa, mas é uma etapa melhor. Por isso eu disse em algum momento que não são governos perfeitos, mas são governos progressistas, ainda que no Brasil muitas vezes também se discuta isso, mas de toda maneira não queremos voltar aos [governos] anteriores, e queremos seguir aprofundando isso e pedindo que haja, nesses governos progressistas, que haja lealdade com os princípios e com as promessas que fizeram. Não é fácil, mas há que seguir, nada é fácil, mas há que seguir. Não é fácil recuperar terras, e isso os sem terras sabem, porque muitos foram mortos, assassinados. O poder se defende, mas esse é um momento em que a cultura, a canção, pode jogar com seus limites. Eu sempre falo que uma canção não muda o mundo, não é nada, mas pode ser uma faísca na consciência, da mesma maneira que eu, quando era menino, fui influenciado ao escutar ‘Duerme Negrito’, aquele ‘trabajando e no le pagan’, não é? Eu que vinha de uma família conservadora, aquilo me trouxe um impacto, então eu penso que quem canta pode conseguir algo.

Na música ‘Por ellos canto’ o senhor fala dos motivos…

Ah, eu cantaria hoje aqui, mas não a cantei por isso [Viglietti aponta para a garganta]… é uma canção que termina muito acima [no tom]… “Por eeeellos canto”… Assim como não cantei “Outra voz canta”, que é parecida, também é muito violenta, hoje não conseguiria… Mas siga…

Em ‘Por ellos canto’, o senhor fala dos motivos pelos quais o senhor canta, o que te inspira a cantar. E o senhor falou que vai lançar outro disco, ‘As canções humanas’, e nós gostaríamos de saber se são os mesmo motivos, se somaram-se outros motivos pelos quais o senhor canta…

Sempre se somam outros motivos, novas ideias ou novas experiências, por exemplo essa canção ‘tiza y bastón’, giz e bengala é como se diz, certo? Essa é uma canção que continua falando da luta pelas desaparecidos, mas de outra maneira. E, bom, vão sempre aparecer canções com outros conteúdos, mas creio que sempre haverá uma continuidade, uma lógica. Eu não posso ter uma metamorfose, em que vocês me vejam completamente diferente dentro de um ano cantando quem sabe o quê. Ou seja, estou dentro de uma linha de trabalho, de pressão… Me dá muito trabalho compor, muito trabalho, e cada vez que tenho mais idade me custa mais porque a gente fica mais exigente com a gente mesmo. Coisas que antes eu dizia ‘ah, está bem’, agora é ‘hmmm, vamos ver’. É mais delicado o processo, também por tudo que eu passei, por tudo que ocorreu… é importante refletir, é importante também mostrar as contradições. Há uma canção que se chama ‘Identidad’, em que eu falo muito do ser humano.  nós o buscamos, mas não o somos. Uma “mulher nova”, os “humanos novos”, eu agora prefiro dizer, para generalizar, nós o buscamos, mas não o somos. Aliás, nunca se vai chegar ao humano novo, é uma hipótese de trabalho. Nós o buscamos, nos aproximamos e nos afastamos, nos aproximamos e nos afastamos. É um pouco da ideia com a qual trabalhava [Eduardo] Galeano, com o horizonte que se move… Um grande companheiro também, Galeano, como foi [Mario] Benedetti, escritores que são uma sorte conhecer. Ia dizer cantores, e é como se fossem, sua tintura canta. Bom, no Brasil, o meu carinho, meu respeito e minha lealdade, pela sua obra, que estou sempre escutando, é para Chico Buarque, que é um criador de maravilhas. Igual, também tenho descoberto gente nova, como Chico César, estamos entre Chicos, hein?! E também saúdo às cantoras, sou um grande admirador de Nara Leão, mas também de Elis Regina que é aqui da região, por sua intensidade, Elis foi fantástica. Agora tenho que encontrar uma cantora viva que me entusiasme igual, tenho escutado mas ainda não me decidi. Mas tenho muita admiração pela música brasileira, tenho conhecido gente que entrevistei também. Gonzaguinha, por exemplo, conheci e entrevistei e também João do Vale – começa a cantar: ‘carcará, não vai morrer de fome…”-, que maravilha! Um homem simples, humilde, eu conheci ele em Cuba. Quando esteve em crise, Chico Buarque o ajudou com um disco com canções dele, Chico foi sempre muito solidário… Talvez agora para os jovens ele não signifique o mesmo, mas isso é normal, somos referências, já não somos os músicos do momento, imagina se fôssemos o mundo estaria perdido, seria lamentável.