“O MST vai resistir ativamente. Não vamos pegar a sacola e ir para casa”
Por Marco Weissheimer
Do Sul 21
No dia 26 de janeiro, ao final do ato político realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes para marcar a trajetória de 35 anos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a coordenação nacional do movimento divulgou uma Carta ao Povo Brasileiro que faz uma avaliação do atual momento político nacional e aponta as tarefas que considera prioritárias para esse período. A carta, entre outras coisas, assume um compromisso com o conjunto da população: “nos comprometemos em lutar e defender todos e todas trabalhadores e trabalhadoras que tenham sua existência ameaçada”.
A ideia da carta, diz Cedenir de Oliveira, da coordenação do MST no Rio Grande do Sul, foi “expressar, para a nossa militância, para nossos aliados e para a população em geral o que o MST está pensando sobre esse período e quais as tarefas e táticas que vamos adotar”. Além disso, acrescenta, ela “serve também para que a nossa militância não desanime, não entre em desespero, não tenha medo e que se prepare para uma batalha que não é fácil e é de médio e longo prazo. Ela não será resolvida com a próxima eleição municipal ou com a escolha da presidência da Câmara ou do Senado”.
Em entrevista ao Sul21, Cedenir de Oliveira fala sobre os 35 anos de vida do MST, destaca a importância das escolhas político-organizativas feitas na gênese do movimento e aponta os desafios e conquistas que marcaram essa trajetória até aqui.
“O acúmulo do MST não se limita à conquista de terras e de assentamentos, que é significativa. É preciso considerar também o acúmulo das pessoas, a melhoria da qualidade de vida, melhoria da saúde, da educação. Hoje nós, enquanto movimento camponês, temos formulação e experiência em educação no campo, em saúde, em produção, em agroecologia. Temos formulação teórica e experiência em várias áreas, o que representa um grande acúmulo político, maior do que o simples número de famílias assentadas. Essa é a principal contribuição que o MST tem dado à sociedade brasileira. Basta ver as condições sub-humanas em que muitas famílias viviam e ver como elas vivem hoje. Só por isso a nossa luta nestes 35 anos já teria valido a pena”.
O MST está completando 35 anos de vida. O que representa essa trajetória, na tua avaliação, e quais foram as principais conquistas neste período?
É importante levar em conta que o MST é parte do conjunto da sociedade brasileira. Não é algo que surgiu independentemente do processo histórico e dos acontecimentos deste período. Nós sempre reafirmamos que somos continuadores de um longo processo de luta camponesa feita por aqueles que nos antecederam na história. Isso envolve a resistência indígena, a luta do povo negro e a dos camponeses. Essas lutas e os movimentos que nos antecederam certamente nos ajudaram a ter a formatação organizativa e política que temos hoje.
O MST surgiu no ambiente político que a sociedade brasileira vivia no final da década de 70, início da década de 80, quando iniciou um movimento em defesa da democracia. Havia um ambiente de construção política na sociedade e um processo de luta por direitos. Foi neste ambiente que outras organizações, como sindicatos, movimentos e partidos políticos, se constituíram também. No nosso caso, existia um trabalho muito forte das pastorais sociais ligadas à Igreja Católica de organização dos trabalhadores. Esses elementos foram bases fundamentais para o surgimento do MST. Naquele período, ocorriam ocupações, movimentos e lutas no Brasil inteiro. Aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, as ocupações das fazendas Macali e Brilhante, entre 1978 e 1979, foram movimentos que antecederam o processo de criação do MST.
O nosso movimento surgiu com algumas características importantes. Em primeiro lugar, ele surgiu como movimento autônomo. Por mais que existisse um trabalho de apoio da Igreja (Católica) e uma relação com partidos políticos e sindicatos, a autonomia do movimento foi fundamental para chegarmos a esses 35 anos de vida. Em outras organizações isso não ocorreu. O próprio Master (Movimento de Agricultores Sem Terra) tinha uma direção política que não era constituída pelos camponeses. A decisão por essa autonomia política lá na origem do movimento foi fundamental para a nossa história. A base da direção política vem diretamente do movimento camponês.
Um segundo elemento importante na história do MST foi a decisão de se constituir como um movimento nacional. Várias organizações tiveram processos localizados em determinadas regiões do país. Isso tornou mais fácil o combate a essas organizações. A decisão de ter uma dimensão nacional deu ao MST uma condição de luta e de resistência muito forte. O MST não se limitou ao Rio Grande do Sul e passou a se organizar nacionalmente.
O estado de nascimento do MST foi o Rio Grande do Sul?
Sim, ele teve sua gênese por aqui, mas, desde a sua fundação, se colocou esse desafio de se constituir como um movimento nacional, especialmente na região Nordeste, onde está a principal base camponesa pobre do Brasil. Essa se mostrou uma decisão acertada. Hoje, a principal força de massa do MST no Brasil está no Nordeste.
O movimento, desde o seu nascimento, está vinculado à luta pela terra e pela Reforma Agrária, mas também às lutas gerais em defesa da transformação social. Além de ser um movimento que luta por questões específicas, como a conquista da terra, a melhoria da qualidade de vida dos assentados, crédito, boas estradas e casas nos assentamentos, ele também está vinculado a lutas mais gerais da sociedade. Ao longo desses 35 anos, sempre tivemos esse olhar.
Evidentemente, ao longo desse período, passamos por diferentes conjunturas, como momentos de ataques e outros em que tivemos avanços do ponto de vista da correlação de forças. Nestes 35 anos, tivemos também várias reformulações do ponto de vista filosófico sobre o tema da terra e do próprio conceito de Reforma Agrária com o qual trabalhamos. Em 1984, quando ocorreu a fundação do movimento, a luta estava inscrita dentro dos marcos da Reforma Agrária clássica. Hoje, o MST defende uma Reforma Agrária já com outros parâmetros, que chamamos de uma Reforma Agrária Popular que envolve outros elementos que não se limitam ao tema da distribuição da terra.
Outro elemento importante para que o MST se tornasse o que é hoje foi a decisão sobre se as pessoas, depois que fossem assentadas na terra, deveriam permanecer ligadas ao movimento ou não. Esse foi um grande debate que ocorreu na gênese do MST. Chegou-se à conclusão de que as pessoas, depois de assentadas, permaneceriam ligadas ao processo organizativo do MST. Creio que esse foi um elemento fundamental para que o movimento pudesse acumular força moral, política, produtiva e territorial.
A agenda da Reforma Agrária, que já havia sofrido uma desaceleração no governo Dilma, foi praticamente paralisada no governo Temer e agora, com Bolsonaro, as perspectivas são ainda piores. O MST é explicitamente apontado por Bolsonaro como um inimigo a ser combatido, chegando a compará-lo com grupos terroristas. Como avalia esse cenário?
Nós surgimos ainda nos marcos do regime militar, em um cenário com muitos problemas e adversidades. No governo Collor, nós também passamos por um período muito difícil que, guardadas as devidas proporções, se assemelha ao que estamos vivendo agora. Também foi um período de muitos ataques e violência praticada contra o MST. Tivemos um período onde se formou a UDR (União Democrática Ruralista), uma organização de fazendeiros que tinha a tarefa explícita de atacar o MST. Perdemos muitos companheiros em função disso, alguns deles mortos em massacres. Mas tivemos também períodos de ascenso do movimento de massas. O final da década de 90 foi um período de muita ação e presença política do MST, ainda no contexto de um governo de direita, que era o de Fernando Henrique Cardoso.
Passamos o período do governo Lula, vivendo as contradições que o marcaram no tema da terra. Se, em alguns aspectos, ele foi importante para o desenvolvimento econômico e social do país, no campo da terra tivemos muitas dificuldades em função da aliança feita com o capital financeiro e com o agronegócio que nos impediu de fazer a Reforma Agrária avançar como deveria.
Agora, voltamos a vivenciar um processo que já experimentamos em outros períodos históricos, sem nenhuma perspectiva de conquista e com uma intencionalidade política explícita do governo federal em nos atacar. É evidente que as nossas condições de resistência são outras hoje pelo nosso próprio acúmulo histórico e pela nossa atual capacidade de articulação e de resistência. Por isso temos dito que nós vamos resistir ativamente. Temos consciência que a correlação de forças é contrária. Houve uma grande derrota que supera a dimensão político-eleitoral. A principal derrota que sofremos foi ideológica. A derrota eleitoral expressou uma derrota ideológica. As pessoas, sabendo o que Bolsonaro era e representava, votaram nele. Tudo o que ele e seus ministros dizem agora, já era dito na campanha. Nós temos consciência da gravidade da crise política e do cenário desfavorável da correlação de forças que vamos enfrentar. Mas nós não vamos pegar a sacola e ir pra casa.
Na nossa formulação da Reforma Agrária Popular, os estados e os governos são importantes, mas não são decisivos. A partir da relação com outros setores e entidades da sociedade, nós temos condições de continuar produzindo, vendendo, organizando e vivendo, independentemente da posição do governo federal. É claro que, quando há um governo que aporta estrutura e políticas, isso alavanca, mas temos consciência que não podemos esperar que o Estado vá resolver todas as nossas questões. Isso exige, para dentro do movimento, um processo popular organizativo e de relação com a sociedade, independente da posição do governo. Ainda do ponto de vista da correlação de forças, um segundo elemento importante é que temos governos estaduais, sobretudo no Nordeste, que fazem um contraponto às ideias do governo federal.
Agora, esses períodos de dificuldade são também períodos de reafirmação de princípios, de formação e de organização das nossas pautas. Temos mais de 60 mil famílias acampadas no Brasil. Essas famílias não têm para onde ir. O nosso papel é seguir lutando, continuar organizando essas famílias, criando condições inclusive de sobrevivência para elas. Já assumimos o compromisso com essas famílias acampadas que os nossos assentamentos vão assegurar a alimentação. Se o governo decidir não distribuir mais cestas básicas para essas famílias que vivem em situação de grande dificuldade, nossos assentamentos têm condições de assumir esse compromisso. É uma situação difícil, mas avaliamos que temos uma condição de resistência melhor do que outras categorias que enfrentam situações bem mais adversas. Olhe a situação dos metalúrgicos de Rio Grande, por exemplo, que viviam um processo de crescimento econômico com o polo naval e, de uma hora para outra, ficaram desempregados.
Então, em resumo, a situação é difícil para todo mundo e as contradições vão aparecer para todo mundo também, inclusive para eles. Nós vamos usar essa experiência de 35 anos para seguir sobrevivendo, resistindo, desenvolvendo as economias de municípios e regiões, fazendo mobilizações e, sobretudo, dialogando com a sociedade para tentar elevar o nível geral de consciência e, antes de ganharmos eleições, conseguirmos mudar as ideias dessa sociedade. Com uma sociedade com ideias fascistas não chegaremos a lugar nenhum.
Aqui no Rio Grande do Sul, já há uma avaliação o governo de Eduardo Leite? Alguma expectativa de mudança de postura comparando com o que foi o governo de José Ivo Sartori?
Pelo que já vimos da postura do governador Eduardo Leite, fica claro que ele é liberal na economia e vai trazer as pautas das privatizações e da reorganização do Estado dentro desses marcos. Do ponto de vista de seu comportamento pessoal e de sua ação, o que vemos é que ele não tem um alinhamento tão orgânico com o pensamento de Bolsonaro. Vamos ver como isso se manifesta na prática. Não acreditamos que o governo do Estado aqui terá um alinhamento com o pensamento de Bolsonaro que pretende destruir o MST. É um governo que está numa tentativa de conciliação, de repactuar caminhos, de construção de pontes e conversas. Neste contexto, não acreditamos que vá querer criar um ambiente de ódio e destruição aqui no Rio Grande do Sul. Ele já sinalizou, inclusive, que poderá participar da abertura da nossa colheita do arroz orgânico, o que indica que ele está com esse olhar de criar um clima de menos conflito possível nestes temas que são caros ao Bolsonaro.
Quantas famílias acampadas existem hoje no Rio Grande do Sul?
Temos cerca de duas mil famílias que estão cadastradas no Incra à espera de assentamento. Todo ano é feito um recadastramento. Nós começamos agora a fazer uma discussão com essas famílias para ver como vamos nos organizar dentro desse cenário que temos hoje no país. Já tivemos vários ataques contra acampamentos que temos em beira de estrada. Tivemos acampamentos que foram incendiados e companheiros que foram assassinados. Estamos discutindo uma reorganização interna para que as pessoas não fiquem vulneráveis a esse tipo de ataque. É uma questão de proteção.
No período do governo Sartori houve algum assentamento aqui no Estado?
Pode ter tido alguma pequena área desapropriada, não saberia dizer agora, mas não houve praticamente nada. O último grande assentamento aqui no Estado foi em São Gabriel, na fazenda Southall. Depois, durante o governo Tarso, tivemos alguns pequenos novos assentamentos. Em 2018, não houve nenhuma família assentada no Brasil.
O recente encontro que a coordenação nacional do MST realizou em São Paulo lançou uma carta do movimento ao povo brasileiro. Qual o sentido político dessa carta?
Há uma expectativa da nossa militância, da militância de esquerda e da população em geral sobre como será esse próximo período. Existia uma inquietude sobre esse novo momento político. Neste período que antecedeu a vitória do Bolsonaro, desde o golpe contra a Dilma, o MST esteve no centro da luta política neste país. Fizemos um grande esforço político e organizativo para isso. Não é por nada que o Bolsonaro nos identifica como alguém que deve ser combatido. Como diz o ditado, ninguém chuta cachorro morto. A ideia da carta foi expressar, para a nossa militância, para nossos aliados e para a população em geral o que o MST está pensando sobre esse período e quais as tarefas e táticas que vamos adotar.
Essa carta serve também para que a nossa militância não desanime, não entre em desespero, não tenha medo e que se prepare para uma batalha que não é fácil e é de médio e longo prazo. Ela não será resolvida com a próxima eleição municipal ou com a escolha da presidência da Câmara ou do Senado. Essas questões são franjas do atual contexto político. Acreditamos que não haverá nenhum tipo de transformação social e organizativa popular se não colocarmos o povo brasileiro em luta política. Quando falo “povo” não é essa base que já organizamos. Esse é o grande problema da esquerda brasileira. Foi o que o Mano Brown falou para o PT durante a campanha eleitoral. Temos a ideia de construir o Congresso do Povo o que exige a retomada de um trabalho popular junto a bairros e comunidades que hoje são dirigidas pelo tráfico e por igrejas pentecostais. Se a esquerda não enfrentar isso não vamos alterar a correlação de forças.
Ouvi uma declaração do presidente da CUT que achei muito interessante. Em outubro será realizado o congresso nacional da CUT, quando será alterada toda a estrutura organizativa da entidade. Parece que vão sair dessa ideia de atuar só com os trabalhadores organizados e também de intervir só no espaço do local de trabalho das pessoas, mas também onde elas vivem. Essa é uma escolha que o MST já fez. Nós organizamos a partir do trabalho e do território, do local de moradia. Isso envolve ações em diversas áreas como educação, saúde, esporte, produção, além da luta política. Não adianta querer organizar no trabalho e não fazer nada no território onde a pessoa vive.
Neste momento em que completamos 35 anos, é importante dizer que, neste período, o acúmulo do MST não se limita à conquista de terras e de assentamentos, que é significativa. Só aqui no Rio Grande do Sul são mais de 300 mil hectares de terra. É preciso considerar também o acúmulo das pessoas, a melhoria da qualidade de vida, melhoria da saúde, da educação. Hoje nós, enquanto movimento camponês, temos formulação e experiência em educação no campo, em saúde, em produção, em agroecologia. Temos formulação teórica e experiência em várias áreas, o que representa um grande acúmulo político, maior do que o simples número de famílias assentadas. Essa é a principal contribuição que o MST tem dado à sociedade brasileira. Basta ver as condições sub-humanas em que muitas famílias viviam e ver como elas vivem hoje. Só por isso a nossa luta nestes 35 anos já teria valido a pena.