“O cinema abre possibilidades infinitas de reflexão”, defende cineasta Camila Freitas
Por Iris Pacheco e Pablo Vergara
Da Página do MST
Em fevereiro deste ano de 2019, a luta pela terra promovida pelo MST no Estado de Goiás chegou às telas do 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, como um dos 12 filmes brasileiros selecionados para o festival em diferentes mostras.
Sob a direção de Camila Freitas, o documentário “Chão” mostra a ocupação de uma usina de cana, em Santa Helena (GO), e acompanha o cotidiano da luta pela Reforma Agrária, de longo prazo, em que a resistência é permeada de valores e afetos da vivência coletiva.
Camila comenta sobre o aprendizado permanente de construir um processo como esse. “Uma das coisas mais importantes tem sido entender, na prática, que um filme assim não se faz sobre, só se faz com, junto ao movimento, em uma relação muito próxima. E a relação que se estabelece com as pessoas filmadas precisa ser pensada e repensada o tempo todo por quem faz filmes.”
A Fazenda Santa Helena, área da Usina de mesmo nome, onde se passa o filme, possui cerca de 15 mil hectares e acumula aproximadamente R$ 1 bilhão em dívidas com a União. Aproximadamente 4 mil pessoas ocuparam a terra em 2015, o que culminou em uma perseguição ao MST pelo juiz da Comarca de Santa Helena e pelo Ministério Público Estadual, levando a prisão de dois militantes por formação de organização criminosa.
Nesse cenário de criminalização da luta popular no Brasil, há uma disputa política, mas também ideológica. Portanto, usar de diversos mecanismos para travar essa batalha é fundamental. O cinema se configura em uma trincheira a ser explorada para dialogar com outros setores da sociedade.
A arte proporciona conexões sensíveis muito especiais e distintas de outros meios de comunicação, com a potência de alcançar públicos muito diversos”, afirma Camila
Em Berlim, durante o a exibição do filme, participou boa parte da equipe, majoritariamente feminina, e uma representante do MST, também personagem do filme, Elizabett Conceição. Além de todas as apresentações e debates após as cinco sessões do filme no festival, houve um debate organizado pela fundação Rosa Luxemburgo, em que o ex-deputado federal Jean Wyllys e Elizabett falaram do atual momento político e da criminalização dos movimentos sociais e da esquerda no Brasil.
Acompanhe abaixo a entrevista na íntegra.
Como você se aproximou do MST e o que a motivou fazer um filme sobre o processo de luta pela terra?
Eu cresci no interior de Goiás, onde a questão agrária é algo muito central e está presente em todas as relações sociais do meu entorno. A admiração pelo movimento veio bem cedo, adolescente. Lembro de ficar rodeando o acampamento na Esplanada em 1997 e tirando fotos de longe, sem ainda conseguir entrar. Já na Universidade de Brasília, em 2001, eu e outros estudantes de cinema e batíamos ponto num novo acampamento nacional, onde fizemos amigos. Começamos a entender o MST mais de perto e tentamos fazer um filme a partir desta experiência. Foi muito importante esse momento na minha formação, talvez um pequeno ensaio para o que viria.
Nesse início de vida audiovisual também teve o Passarim, primeiro curta que fiz lá na região onde cresci (Alexânia/ Corumbá – Goiás) sobre uma comunidade camponesa desmantelada pela pressão de um grande latifundiário que desde os anos 80 passou a adquirir todas as terras da região à custa de ameaças aos moradores, grilagem, tráfico de influências etc. Esse latifundiário é ninguém menos que Eunício Oliveira, dono da Santa Mônica, que o MST ocupou em 2014 com mais de 3.500 famílias. Logo após a ocupação, fui contatada pelo Movimento para mostrar o filme no recém formado acampamento Dom Tomás Balduíno, e também dar um depoimento à Carta Capital*. Foi como um chamado, e muito rapidamente entendemos que tinha um filme a ser feito ali. Eu e amigos próximos começamos pouco tempo depois a pesquisar e a filmar por conta própria ao mesmo tempo em que inscrevíamos o projeto em editais.
O que significa lançar um filme em uma mostra internacional, enquanto no Brasil a luta popular é criminalizada?
Buscar respaldo internacional foi algo que desenhamos como estratégia junto com integrantes do Movimento envolvidos na produção do filme. Felizmente deu certo, e estamos muito contentes em poder ocupar esses espaços. Esperamos que essas exibições possam de alguma forma mobilizar o olhar de fora para dentro, o que é especialmente interessante nesse momento em que os ânimos estão tão exaltados com a presença da extrema direita no poder, e que os espaços de fala no âmbito da cultura – e obviamente não só – estão sob ameaça de se tornarem cada vez mais restritos e exíguos. É também uma oportunidade de lembrar ao mundo que terrorista não é quem luta pelo direito de trabalhar na terra, embaixo da lona preta. Terroristas são os que continuam a reproduzir esse estado de cegueira e exclusão em que esse governo pretende nos mergulhar ainda mais.
Entre fevereiro e março de 2019, exibimos Chão oito vezes em dois festivais (Berlinale/ Festival de Berlim, na Alemanha; e no True/False, festival de documentários em Columbia, Missouri, nos EUA), sempre em sessões com debate. Fiquei impressionada com a recepção calorosa do público, com pessas tão diversas se dizendo emocionadas e sensibilizadas, muitas sem conhecimento prévio da questão agrária no Brasil, outras traçando paralelos com as suas realidades, como por exemplo em relação à questão das grandes corporações e dos agrotóxicos, muito presentes nos dois países. Também foi impressionante ver a quantidade de pessoas que perguntavam : “como podemos ajudar daqui?”. Isso me pareceu uma importante confirmação da potência dessas exibições.
Em sua opinião, qual é o papel do cinema para os movimentos populares?
Acredito que o cinema abre possibilidades infinitas de reflexão, criação, fabulação a partir do real e é também uma oportunidade de visibilizar e projetar as lutas dos movimentos populares para fora de um público já engajado. A arte proporciona conexões sensíveis muito especiais e distintas de outros meios de comunicação, com a potência de alcançar públicos muito diversos.
Além disso, esperamos que filmes como o nosso possam abrir e possibilitar muitos debates e reflexões importantes nos acampamentos, assentamentos, escolas, universidades, que eles possam contribuir também com a “mística” e com a autoestima da militância. Queremos muito que o Movimento – e outros movimentos populares – possa se apropriar e ressignificar o seu uso de acordo com as necessidades.
Quais os aprendizados centrais que você, como diretora de sétima arte, tira desse processo?
Esse aprendizado não acaba nunca. Acho que uma das coisas mais importantes tem sido entender, na prática, que um filme assim não se faz sobre, só se faz com, junto ao movimento, em relação muito próxima. E a relação que se estabelece com as pessoas filmadas precisa ser pensada e repensada o tempo todo por quem faz filmes. O cinema pode ser muito extrativista, todo o sistema de produção pode facilmente levar a isso. Há pouco dinheiro, as condições são difíceis, e é sempre mais fácil chegar com uma ideia pronta e extrair de uma comunidade o que se imagina dela, reproduzir os mesmos privilégios de classe de sempre e ainda assim fazer filmes lindos. Fazer de outro jeito não é algo dado, que se aprende na universidade, é um exercício que se apresenta diariamente.
Não foi imediato nem simples pra gente entender como tudo isso se conjugaria com a viabilidade de uma produção. A vida continua em paralelo ao cinema, a luta não para, e o nosso controle do processo é bem reduzido. É desafiador acompanhar uma organização tão complexa, que corre tantos riscos, e tivemos que nos adequar a muitos fatores como a conjuntura e relações. Foi também um grande desafio se entregar ao fluxo da luta, que é de longo prazo e não se faz em um dia, nem em um mês, nem em um ano. Aprendemos a exercitar a paciência e o fôlego.
Que elementos chamaram mais sua atenção da organização no acampamento Leonir Orback?
A maneira como as acampadas e acampados conseguem se organizar politicamente, humanamente, e em termos de produção, é algo impressionante em todos os acampamentos em que estive. Lá no Leonir, a pesquisa agroecológica incansável, a produção super profícua – eles produzem muita comida orgânica e sem recurso nenhum, imagina com recurso – e a potência de transformação da paisagem árida do agronegócio que eles têm são muito incríveis. E além disso tudo, me encantou perceber que os objetivos políticos estão sempre atravessados por uma trama fortíssima de afetos que se criou ali e que acredito que seja um dos maiores combustíveis da luta. São encontros de vida entre pessoas de origens e lugares de fala radicamente distintos, é lindo de se ver. Uma curiosidade interessante sobre dois dos personagens centrais do filme, o P.C. e a Vó, é que eles são sempre confundidos com família. Muita gente se refere ao P.C. como neto da Vó, enquanto eles se tornaram melhores amigos na ocupação.
Citando a Mangueira, campeã revolucionária do carnaval carioca de 2019, “é na luta que a gente se encontra”.
Como o documentário retrata a multidimensionalidade da Reforma Agrária Popular e da Agroecologia?
A ideia é que o filme traga o espectador pro centro do debate sobre outros modos de existência no campo, que permeia a luta e o dia a dia das ocupações do Movimento Sem Terra. Tentamos olhar para esse aspecto não apenas acompanhando discussões dos militantes, mas também olhando para a maneira como o Movimento se reapropria e reinventa o espaço a partir dessas outras práticas – que vão além das técnicas agrícolas e se espraiam para a vida no cotidiano da resistência.
*Editado por Fernanda Alcântara