Alguém ainda fiscaliza a indústria do veneno?
Por Lu Sodré
DO Brasil de Fato
Desde que Jair Bolsonaro (PSL) assumiu a Presidência, o Brasil tem liberado agrotóxicos em um ritmo sem precedentes: em sete meses, 290 substâncias foram autorizadas, um recorde histórico. Além das liberações, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mudou a classificação da nocividade dos venenos, com o que os agentes considerados “extremamente tóxicos” caíram de 800 para 43.
Muito se fala sobre a flexibilização de leis em normas, mas pouco se sabe sobre a fiscalização da indústria de venenos agrícolas em território brasileiro, e o atual governo não parece disposto a esclarecer a questão.
A Lei nº 7.802 diz que cabe à União legislar e fiscalizar a produção, a exportação e a importação dos agroquímicos. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e a Anvisa são os três órgãos com competência para realizar essa fiscalização – por exemplo, verificar as condições de qualidade e quantidade dos produtos e analisar se sua composição está de acordo com o especificado no rótulo.
Ao Brasil de Fato, o Ministério da Agricultura limitou-se a informar que entre 2016 e 2018 realizou 2,8 mil fiscalizações na indústria de agroquímicos, com a emissão de 120 autos de infração. A pasta não disponibilizou informações de anos anteriores, para fins de comparação, nem detalhes sobre as operações realizadas – como tipo de infrações, localização das empresas autuadas, metodologia de fiscalização etc.
Já a Anvisa e o Ibama – que reencaminhou a demanda ao Ministério do Meio Ambiente – não responderam questionamento da reportagem até a publicação da matéria.
Na avaliação de Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Fiocruz e ex-gestor de toxicologia da Anvisa, a fiscalização da indústria de agrotóxicos enfrenta um processo de fragilização nos últimos anos.
Para ele, o ritmo acelerado de liberação dos agrotóxicos e a política de flexibilização podem agravar o cenário.
“Na medida em que há esse mercado gigantesco, com uma série de indústrias e muitos produtos trazidos no exterior com a necessidade de verificar a qualidade deles e estabelecer uma série de controles, não temos ouvido falar em fiscalização”, diz Meirelles.
O pesquisador, que foi gestor de toxicologia da Anvisa de 2009 a 2012, também critica a não divulgação das informações de forma ampla.
“A fiscalização que não é divulgada, não tem nenhuma utilidade do ponto de vista socioeconômico. Não está informando para a população e nem para a sociedade o que realmente está acontecendo. Que fiscalização é essa que não aponta quais indústrias estão trabalhando bem e quais estão trabalhando mal, de maneira a corrigir os desvios que podem estar acontecendo com base naquilo que está preconizado na própria lei?”, questiona, acrescentando que também não é possível encontrar registros de fiscalizações da indústria de agrotóxicos por parte da Anvisa e do Ibama.
Meirelles argumenta que dados detalhados sobre as inspeções deveriam ser públicos, deixando claro quais indústrias foram fiscalizadas, quais foram as não conformidades encontradas e qual a metodologia utilizada pelo órgão regulador e quais medidas corretivas estão sendo aplicadas. Segundo ele, ao encontrar desvios e alterações nas indústrias, todo o processo de autorização e análise de toxicidade da substância está comprometido.
Sem planejamento
Victor Pelaez, coordenador do Observatório do Mercado de Agrotóxicos e professor de economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), também enxerga defasagens no processo de fiscalização da indústria de pesticidas utilizados no Brasil.
“Uma coisa é ter a lei, outra é implementá-la, ter recursos e vontade política para isso. Uma fiscalização envolve primeiro uma vontade política para que isso aconteça. E, segundo, uma capacidade operacional, tanto de recursos financeiros quanto humanos para deslocamento de pessoas, apoio logístico de Polícia Federal e assim por diante. Isso ainda é muito precário no Brasil. Tanto a vontade política para que haja esse controle quanto os recursos humanos qualificados. Tem que ter experiência para conseguir identificar onde há de fato as contravenções. Tudo isso faz parte de uma capacitação e, para isso, obviamente, é preciso planejamento”, defende.
Pelaez cita um estudo em desenvolvimento do Observatório, que analisou como ocorrem os procedimentos de fiscalização dos agrotóxicos no Canadá e na Califórnia (EUA) por órgãos equivalentes ao Ibama. A pesquisa ainda não foi publicada, mas segundo o especialista, as agências de fiscalização realizam um controle sistemático por denúncia e amostragem, ou seja, a qualquer momento qualquer empresa pode estar sujeita à fiscalização.
Segundo o professor, caso haja uma inspeção que identifique algum problema, há uma sanção com o compromisso do órgão retornar ao local no ano seguinte. Caso haja uma reincidência, uma penalidade muito mais alta é aplicada. Isso porque a estratégia, segundo o pesquisador, apesar de coercitiva, busca também um efeito educativo.
Já no cenário brasileiro, os fiscais concentrariam mais autuações do que inspeções planejadas e monitoradas ao longo prazo.
“Falta um planejamento da agência reguladora. Não acontece esse acompanhamento, esse retorno. Grande parte é por denúncia. Nos casos desses poucos fiscais que concentram as autuações, são fiscais com experiência. A autuação depende de um conhecimento mais aprofundado do assunto, da região e assim por diante. O grande desafio de uma agência regulatória é construir um planejamento para que haja uma efetividade maior no processo de coerção, porque se não, o uso dos recursos são subutilizados e pouco eficientes”, afirma.
Ele destaca que num passado recente a atuação da Anvisa era mais efetiva. O professor cita como exemplo um caso de 2009, quando a empresa Milenia teve a linha de produção de cinco agrotóxicos interditadas após operação simultânea da agência e da Polícia Federal. Cerca de 2,5 milhões de litros de agrotóxicos adulterados foram localizados nas fábricas de Londrina (PR) e Taquari (RS).
Veneno liberado
Outro ponto da nova sistematização da Anvisa considerado crítico diz respeito ao uso de uma caveira no rótulo dos alimentos. Pelas regras anteriores, a imagem constava nas embalagens de todos os tipos de veneno. A partir de agora, ela será usada apenas em duas categorias consideradas mais perigosas. Com isso, produtos “moderadamente tóxicos”, “pouco tóxicos” ou “improváveis de causar dano agudo” não terão o símbolo na embalagem.
“O que se fez, na realidade, foi vestir o produto de uma coisa que ele não é. Vai haver um perigo, por exemplo, para a pele e para os olhos, mas o trabalhador não vai saber”, alerta Meirelles.
Para ele, as mudanças que abrandam a toxicidade também irão impactar o controle em níveis estaduais e municipais, dentro da lógica de que parte do perigo já não estará visível ou explicitado.
“Se pensa nas questões de cuidado da população à medida em que se sabe que o perigo está colocado. Nesse caso, o problema é que o perigo continua existindo e se muda as nomenclaturas. O alimento continua contaminado e os impactos vão se propagar ao longo do tempo. Os trabalhadores vão continuar se intoxicando, só que a informação geral sobre os produtos é que eles têm baixa toxicidade e que os alimentos não estão contaminados. A informação vem sendo tratada e manipulada de maneira a tirar a ênfase que é a característica própria dos agrotóxicos: eles são tóxicos, problemáticos para saúde”, enfatiza.
Análise suspensa
O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos também está defasado. O último relatório da Anvisa foi divulgado em 2016, com informações do triênio de 2013 a 2015. Desde então, não há publicação de novos dados.
O programa analisou 12.051 amostras de 25 alimentos de origem vegetal considerados representativos na dieta da população brasileira, como abacaxi, alface, arroz, banana, batata, couve, feijão, goiaba, laranja, maçã e mamão, entre outros.
Do total das amostras monitoradas, 58% apresentaram presença de agrotóxicos, sendo 38,3% dentro do Limite Máximo de Resíduos e 19,7% acima do limite.
Luiz Cláudio Meirelles diz que a contaminação, independentemente do grau, é preocupante e causa danos à saúde humana. Ele também critica o fato de o programa ter utilizado a toxicidade aguda como critério para analisar as substâncias, ignorando aquelas que causam uma contaminação crônica.
“A questão da presença dos resíduos em baixas doses não foi considerada. Baixas doses podem provocar um câncer, por exemplo”.
A previsão é que um novo relatório seja produzido e divulgado apenas no segundo semestre deste ano.
Devido à ausência de resposta da assessoria de comunicação dos órgãos responsáveis, a reportagem do Brasil de Fato entrou pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) para conseguir mais informações.
Edição: João Paulo Soares