A terra e o coração de alface
Por Marilene Felinto
Ribeirão Preto, interior de São Paulo, outubro de 2003. Chegamos ao sítio onde faremos uma oficina sobre mídia e comunicação para um grupo de cerca de quarenta pessoas, num curso de formação de líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Estávamos ali a convite, uma amiga jornalista e eu. Levamos conosco um amigo espanhol que tinha curiosidade de conhecer os sem-terra.
No quintal da frente do sítio, uma figueira de trezentos anos abre-se gigantesca, uma copa imensa sobre um tronco que se bifurca em três ou mais toras de uma espessura impressionante. Aquele espetáculo da natureza me leva a tempos imemoriais, à pré-história, aos homens ágrafos, às épocas em que fazia todo sentido não existir mídia, não haver comunicação nenhuma além da linguagem dos gestos, além de gritos e gemidos.
“Mídia, comunicação” – penso, diante da turma de alunos formada por gente muito simples, jovens em geral, vindos de vários estados do país. “Vocês acham importante que o MST apareça na imprensa? Quem acha importante levante a mão”, pergunto, tentando um tom professoral e didático de que nunca me acho capaz.
Achavam. A maioria achava, embora o que a imprensa faça seja (nas palavras deles) deturpar os fatos, distorcer a imagem do movimento, “jogar a sociedade contra nós”. O que eles queriam, naquela oficina, era entender por que a mídia (impressa e televisiva) age assim, conhecer meios de lidar com ela, aprender a interpretar seus mecanismos de produção de mentiras.
Ora, somente esse interesse já era de comover – o interesse da formiga pelo mamute, pelo elefante que a esmaga sob suas patas indiferentes; o interesse pelo agressor injusto. E, por falar em comoção, dou um salto nesta narrativa do curso, da oficina, da aula. No final do dia, fomos visitar um acampamento de sem-terra perto dali.
Eram entre cinqüenta e setenta barracas enfileiradas no terreno ocupado diante de uma fazenda em processo de desapropriação. O acampamento é uma ferramenta de pressão contra o desinteresse da autoridade – serve para mostrar à lerdeza da Justiça e à burocracia da coisa pública que a necessidade permanece, a premência, a urgência. Cada barraca é uma estrutura de quatro varas de pau fincadas no chão e forradas de plástico preto em cima e dos lados. Lá dentro dos barracos, no chão de terra, espremem-se famílias inteiras, homens e mulheres, velhos, crianças, entre uma cama, um fogão a gás ou a lenha, uns poucos cacarecos amontoados onde é possível fazê-lo. Chova ou faça sol, aquelas pessoas estarão ali, no interior lúgubre e escuro do barraco iluminado apenas pela luz de velas. E, se chovesse (e talvez chovesse, porque era fim de tarde e o céu armava-se cinzento na atmosfera abafada, no calor insuportável de Ribeirão Preto) – se chovesse, o chão de terra que era a “casa” daquelas pessoas viraria lama pura. Não havia água corrente, mas havia poço artesiano, banheiros coletivos, escola improvisada para alfabetizar, ambulatório para atender às urgências de saúde – uma capacidade de organização admirável em circunstâncias de penúria e escassez total. Havia uma calma no ar; crianças corriam brincando, homens trabalhavam, a escola estava em aula.
Ao entrar nesse acampamento, eu só não chorei de cara porque já tinha visitado outros anteriormente. E porque me reconheço naquela mistura de estoicismo – de resignação ao sofrimento – e arrogância característica dos militantes do MST. Mas minha amiga chorou. Tinha chorado antes, lembrando de quando, há mais de vinte anos, viu morrer de frio em um desses acampamentos no sul do país uma criança de 2 anos. Para aquecê-la durante a noite, os pais colocaram-na entre seus corpos. Mesmo assim, o bebê amanheceu congelado.
“A classe dominante não tem idéia de como o MST faz bem ao Brasil”, minha amiga disse, entre lágrimas. “Essa gente toda poderia estar agora no crime organizado, no tráfico de drogas. Só o MST livra o Brasil de ter uma coisa como as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), a guerrilha armada.”
O amigo espanhol andava estranhado por entre as barracas do acampamento, num silêncio angustiado. “O que você acha?”, perguntei a ele. “Acha que essas pessoas estão aqui porque querem, porque é confortável? Veja em que condições elas vivem.” Ele respondeu que estava chocado por vários motivos: porque achou que encontraria ali gente armada, violenta, como a imprensa retrata; porque não imaginava a que grau de privação os sem-terra precisavam chegar para pressionar por reforma agrária e justiça. Disse que entendia então aquilo como uma forma legítima de reivindicar, a única forma possível. “Melhor isso”, observou ele, “do que a pobreza acomodada nas favelas, sem saída, sem solução.” Para um europeu, acostumado a um certo socialismo e aos benefícios de uma sociedade menos desigual, aquele espetáculo de miséria exposta e perseverança era um choque.
“Mídia, comunicação” – o que dizer sobre isso àquela gente sem nada? Devia tê-los aconselhado a levar aos acampamentos os canalhas dos donos da imprensa, os covardes dos diretores de redação dos jornais, das revistas impressas, dos poderosos telejornais: “E tratem os caras como se eles fossem gente de bem, gente importante; eles gostam de ser tratados como reis; convidem gentilmente os canalhas a virem conhecer o modo como vocês vivem”.
Tentei dizer a eles que o próprio princípio norteador da imprensa, a busca pela objetividade – a relevância da clareza, da lógica, da precisão – é uma utopia, para não afirmar que é uma mentira. Que a mídia é uma invenção do capitalismo selvagem, para concentrar o poder nas mãos de quem já tem poder, os ricos; para manter sob o controle deles a expressão e a comunicação de todos aqueles que estão sob sua tutela. Que, para além da censura do Estado que espanca, prende e mata sem-terra ou processa e mata jornalistas, há uma outra censura – “a censura democrática”, como diz o crítico da mídia francês Ignacio Ramonet. Ela se faz presente nas redações dos jornais. É aquela que corta, amputa, deforma ou omite a informação que vai contra os interesses da classe dominante – mas é sobretudo aquela, como ensina Ramonet, que asfixia o jornalista com uma “avalanche” de dados, relatórios, pesquisas, estatísticas e dossiês, de modo tal que o jornalista se acomode na preguiça e se distraia do essencial. A ideologia é esta – esta a “linha editorial” da chamada grande imprensa.
A coisa que mais me impressionou no acampamento dos sem-terra foram as pequenas hortas, de um canteiro cada, que eles insistem em cultivar atrás dos barracos, ainda que a terra não lhes pertença em documento. É uma insistência pela vida, pela produção do alimento, um perseverar na esperança. Havia alface, cebolinha, coentro, couve e outras hortaliças plantadas. Tive vontade de comprar toda a produção de alface, se estivesse no ponto de colheita. Em São Paulo, moro num bairro onde predomina o monopólio da rede de supermercados Pão de Açúcar, onde as verduras são péssimas e caras. Outro dia observei um saquinho de “coração de alface” – uma parte “nobre” da hortaliça que eu desconhecia. Estranhei a coisa e o preço: quase 7 reais por uma quantidade que não chegava a 100 gramas. Achei aquilo um insulto: tiravam uma parte da alface, chamavam de “coração”, e vendiam a preço exorbitante. Uma exploração, uma sacanagem. Eu odeio a rede Pão de Açúcar. (E se eu estivesse escrevendo isto num jornal ou revista da “grande imprensa” seria censurada, mandariam cortar este trecho, porque a cadeia de supermercados é grande anunciante na mídia impressa!)
A mídia é uma mentira também porque a objetividade racional que ela busca não é da natureza humana. A mídia não é fiel aos fatos nem tem compromisso com a ética ou a justiça social porque ela se funda numa concepção mentirosa. Ela é uma farsa. Todo jornalista sofre influência de seu próprio mundo subjetivo e do chicote-caneta do diretor de redação, do dono do jornal. Todo jornalista da grande imprensa é, em última instância, um traidor dos interesses da maioria sem poder. A objetividade, a imparcialidade, a neutralidade não existem.
O homem, como disse o filósofo, só inventou de falar ou se comunicar quando sentiu necessidade de expressar sentimentos, paixão (não a realidade objetiva, concreta). O sentimento vem antes da racionalidade no que se refere ao universo da fala, da linguagem.
“Qualquer um pode prover-se de alimento sem necessitar falar”, diz Rousseau. “É em silêncio que caçamos a presa da qual vamos nos alimentar. Mas, para emocionar um jovem coração ou repelir um agressor injusto, a natureza dita entonações, acentos, gritos, lamentos. É aí que se situa a invenção das palavras mais ancestrais; e é por isso que as primeiras línguas eram cantáveis e apaixonadas antes de se tornarem simples e metódicas. (…) Se todas as necessidades que já tivemos houvessem sido apenas de ordem física ou material, nós jamais teríamos sido capazes de falar; teríamos expressado plenamente nossos significados somente pela linguagem dos gestos.”
Marilene Felinto é escritora e jornalista.