Carta à revista Veja – reportagem de 08/09

“Sou professora de História da rede pública (municipal e estadual) de São Paulo, e como profissional e cidadã gostaria de comentar a reportagem “Os Madraçais do MST”.

Há uma evidente parcialidade e desconhecimento do assunto por parte da jornalista, que faz exatamente o que procura apontar como erro na Educação do MST: fundamentalismo ideológico, só enxergando a “realidade” (que parece desconhecer que é construída socialmente) a partir de seu ponto de vista, sem análise histórico-sociológica.

Note-se a fala sobre a derrocada do socialismo, que mostra a indisfarçável visão de mundo capitalista, como se o capitalismo neoliberal, apenas por ainda estar vigente, fosse garantia de sucesso ou modelo de uma sociedade desejável ou admirável. Não consegue perceber que não há Educação apolítica, assim como não existe jornalismo imparcial, negando a consciência de classe e nossa inserção social como seres que pensam e se posicionam. E ignorando os Fóruns Sociais Mundiais e “um outro mundo possível”. No caso da jornalista, não é difícil saber quem a sustenta, quem encomenda a reportagem, ou, como diria o Educador Paulo Freire, “a quem ela serve”.

Nesse sentido, a reportagem se coloca num plano muito inferior à Educação que critica, pois enquanto faz críticas puramente ideológicas, sem fundamentação coerente, os educadores do MST sabem a que vieram, onde estão, e para onde pretendem caminhar – ou seja, não são ingênuos nem mal formados, como os ataca a jornalista.

Como se cobra boa formação num país em que apenas 38% dos professores urbanos têm formação superior, enquanto menos de 9% tem essa formação nas zonas rurais? (Isso sem entrar nos méritos da formação que se dá, a todas as profissões, no Ensino Superior brasileiro). E 1% dos professores (no geral), ainda não têm ensino fundamental completo, sendo que desse 1% a maioria está no campo, justamente onde estão inseridas as escolas do MST? Por que se exige das escolas do MST uma formação para professores que a maioria das escolas do país não tem? Que dirá, então, exigir essa “qualidade” de escolas inseridas em locais de difícil acesso, numa realidade muitíssimo difícil de se vivenciar. Acaso ignora a jornalista a luta do MST, nos acampamentos e assentamentos, para conquistar escola para todos, e de boa qualidade, geralmente sem resposta do Estado? No entanto, mesmo com todas as dificuldades e situações adversas, o MST dá respaldo e treinamento a seus professores, promove Encontros e Congressos regionais e nacionais, prática da qual o Estado se exime, com raras excessões.

Aqui cabe falar do papel do Estado e da afirmação da jornalista de que “esse tipo de Educação é pago com nosso dinheiro” (da sociedade, presume-se). Claro que é! Não são os integrantes do MST parcela da sociedade, povo brasileiro, cidadãos, e, como tal, com todo direito à Educação mantida pelo Estado como qualquer brasileiro? (Aliás, educação de péssima qualidade, mas também essa é outra discussão, e não vamos entrar no mérito dessa questão, agora). Não desejamos e lutamos por escola pública e gratuita de boa qualidade para TODOS os cidadãos do país?

Depois de destilar toda sua intolerância e preconceito, parte então a referida jornalista a nos esfregar a LDB na cara. Provavelmente sem se lembrar – ou fingir ignorar, caso tenha esse conhecimento – do processo de aprovação da LDB pelo Congresso brasileiro, depois de 11 anos de debates riquíssimos, aprovação realizada na calada da noite, para evitar as manifestações e oposição contra essa Lei. Como se o simples fato da Lei existir fosse garantia de qualidade ou consenso, ou modelo de algo desejável.
Mas como a LDB existe e está vigente, pensemos então dentro de uma visão legalista, e não nos esqueçamos que a LDB garante o respeito às particularidades de cada região ou comunidade, garante a autonomia da Escola e seu Conselho, inclusive quanto à adaptação do Currículo e das Metodologias que desejem implementar, garante o respeito às necessidades e opções da comunidade onde se insere cada Escola, inclusive com gestão do Orçamento Escolar pela comunidade, através do Conselho de Escola, práticas pelas quais as escolas do MST sempre primaram.

Assim como primam por metodologias que aliam reflexão e prática, e discussões a partir da realidade do aluno, como podemos notar na própria reportagem, se fizermos uma leitura menos parcial, quando faz referência à ativaidade de dramatização, à discussão sobre os transgênicos e outras práticas pedagógicas (inclusive a foto da escola, com carteiras e organização não convencionais, que ela simplesmente ignora) das escolas do MST.

Quanto ao “pluralismo e tolerância” que a jornalista exige – e realmente pluralismo e tolerância são sempre muito bem vindos num mundo cada vez mais fundamentalista e radical -, deveria ela própria, e a revista para a qual escreve, dar o exemplo dessa postura, o que sabemos que não acontece nessa revista tão tendenciosa. Tendenciosa a ponto de escolher publicar essa reportagem numa edição com capa referente ao terrorismo tchetcheno e matérias relacionando esse terrorismo a Bin Laden, e as escolas do MST ao fundamentalismo islâmico. Alguém acredita na gratuidade ou inocência editorial desse tipo de escolhas?

Para terminar, deixo aqui TODO meu respeito e apoio às opções e decisões das comunidades sem-terra, e lembro a fala de Dom Oscar Romero, bispo de El Salvador, mártir nos anos 80: “mesmo que o povo erre, sempre estarei ao lado dele”.

Como educadora, minha função é estar ao lado e junto dos educandos, ensinando e aprendendo com eles, e não desrespeitando, desvalorizando ou fazendo críticas sem fundamentos às suas experiências educacionais e de vida.

Vida longa ao MST!”

Eloisa Helena Vieira Maranhão,
Setembro de 2004.