Terra Livre critica política indigenista e aponta caminhos
Fonte Cimi
Pensada, debatida e redigida nos últimos três dias por mais de 500 lideranças indígenas de 84 povos, vindas de 19 unidades da federação, na Esplanada dos Ministérios em Brasília, a Carta do 3º Acampamento Terra Livre faz fortes críticas a atual política indigenista oficial, aponta caminhos para uma nova relação entre os povos indígenas e Estado e cobra compromissos assumidos pelo Governo Federal em campanha e ao longo do mandato. A necessidade da participação dos indígenas na formulação de políticas públicas voltadas a eles foi a tônica central dos debates e das reivindicações.
Os participantes do acampamento avaliaram a política indigenista do Governo Lula como negativa, considerando que as poucas conquistas foram “arrancadas” através de muita “pressão e luta inclusive com sacrifícios de vidas de parentes nossos”. “O governo Lula manteve uma política indigenista retrógrada, tutelar e oficialista, confundindo os interesses dos povos indígenas com os interesses da Funai, confundindo o órgão indigenista com a política indigenista”, avalia o documento.
A falta de compromisso apontado pelos acampados na carta lembra que “das 14 terras paradas no Ministério da Justiça e levadas ao ministro da Justiça e presidente da Funai para dar solução no Abril Indígena de 2005, apenas uma terra teve portaria declaratória publicada”. O movimento indígena exige do Governo Federal a retomada do ritmo normal no processo de regularização das terras indígenas.
Para as lideranças presentes, o descaso com os povos indígenas que caracterizou o governo Lula nestes três anos de mandato foi reafirmado hoje pelo Planalto, que se recusou a receber uma comissão que tentava entregar a carta final da mobilização aos três poderes. “Apesar de Audiência agendada no dia anterior com representante da presidência da República, que seria definido pelo próprio Planalto, a comissão de lideranças indígenas não foi recebida. Sem qualquer justificativa, o horário foi transferido e, posteriormente, a comissão de lideranças foi barrada na porta do Palácio do Planalto por dois assessores do chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, que afirmavam que o governo poderia receber três representantes, mas não receberia uma comissão por falta de tempo e espaço”, afirmaram em carta assinada pelo Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas e pela Apib.
Apesar disso, as falas finais dos indígenas avaliaram a mobilização como positiva para o movimento. “Este não é um momento de nos sentirmos derrotados, mas de saber que somos guerreiros e que continuamos lutando, como sempre estivemos”, afirmou a liderança Mura participante do acampamento.
Em seu dia de encerramento, a mobilização Terra Livre apresentou o documento final ao presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, e participou de Audiência Publica no Senado. Foram recebidos também pela presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie, que se comprometeu a dar precedência aos processos ligados a terras indígenas. “Há questões complexas, de tramitação longa, mas nós podemos dar precedência aos processos”, afirmou a ministra.
Na área da saúde as lideranças constatam uma piora acentuada, de 2005 para cá, no atendimento à saúde dos povos indígenas. “Faltou a capacitação para os indígenas que integram os Conselhos Distritais; os recursos continuam incompatíveis com as demandas dos DSEIs; a falta de autonomia administrativa e financeira dos DSEIs também prosseguiu”, afirmam.
Na carta reafirmam o entendimento do acampamento do ano passado entendendo que “transferência da execução das ações da educação escolar indígena para os estados – e destes para os municípios – é o principal problema para a implantação de uma educação escolar indígena diferenciada e de qualidade”.
Leia abaixo o documento final:
Carta da Mobilização Nacional Terra Livre
Abril Indígena 2006
Saudamos a todos os povos indígenas do Brasil, os aqui representados e os ausentes, todos unidos em coração e consciência na luta por uma terra livre de opressão e injustiça. Nos alegramos por esse encontro onde celebramos a luta pela vida, por uma vida com dignidade e paz.
Com essa motivação que nós, as mais de 550 lideranças indígenas abaixo assinadas, representantes de 86 povos indígenas de todo o Brasil, reunidos em Brasília no Acampamento Terra Livre, entre os dias 04 e 06 de abril de 2006, consolidamos neste III Acampamento Terra Livre a Mobilização do Abril Indígena como o mais importante evento de articulação e expressão política dos povos e organizações indígenas do Brasil.
A presente mobilização reforçou a aliança nacional entre dezenas de povos com a consolidação da Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, com o objetivo comum de defender e garantir a efetividade dos direitos indígenas no Brasil.
O balanço da política indigenista do Governo Lula para nós é negativo. Os poucos avanços foram conquistas arrancadas por nossos povos e organizações com muita pressão e luta inclusive com sacrifícios de vidas de parentes nossos.
Frente a esta realidade, vimos apresentar à sociedade brasileira, ao Governo Federal, ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, os resultados das reuniões plenárias e audiências com autoridades realizadas durante esta mobilização nacional, em respeito aos 04 grandes eixos por nós reivindicados.
1. Nova Política Indigenista
– o governo Lula manteve uma política indigenista retrógrada, tutelar e oficialista, confundindo os interesses dos povos indígenas com os interesses da Funai, confundindo o órgão indigenista com a política indigenista;
– à nossa reivindicação para a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, vinculado a Presidência da República, com competência deliberativa e criado por Lei, o Governo Federal respondeu com a criação, em 23 de março último, de uma Comissão Nacional de Política Indigenista, por decreto e vinculada ao Ministério da Justiça;
– ainda que atendendo em parte o nosso pedido, manifestamos a nossa preocupação com relação às reais condições que serão oferecidas pelo Ministério da Justiça para sua instalação no prazo estabelecido no Decreto e seu pleno funcionamento operacional, garantindo a periodicidade estabelecida bem como a participação efetiva dos representantes dos povos indígenas e suas organizações e das entidades de apoio à causa indígena.
2. Terras Indígenas
– a marca tutelar do atual governo contaminou a demarcação das terras indígenas que vem sendo gerida como benefício e não como direito, sendo objeto de manipulações técnico/administrativas e barganhas políticas;
– como reflexo dessa perspectiva, a FUNAI e o Ministério da Justiça permitiram obstruções deliberadas nos procedimentos de regularização de terras indígenas e lentidão na constituição de GTs de identificação, na publicação de resumos de relatórios e principalmente na expedição de Portarias Declaratórias;
– das 14 terras paradas no Ministério da Justiça e levadas ao Ministro da Justiça e Presidente da Funai para dar solução no Abril Indígena de 2005, apenas 01 terra teve Portaria Declaratória publicada;
– as pressões políticas de setores anti-indígenas continuam se sobrepondo aos direitos territoriais indígenas principalmente nos Estados de Santa Catarina, Mato Grosso, Bahia e Mato Grosso do Sul;
– as desintrusões das terras indígenas não acontecem, permitindo o agravamento das ameaças, intimidações e atos de violência contra os povos indígenas, como na TI Raposa Serra do Sol e Caramuru-Paraguassu do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe;
– exigimos do Governo Federal a retomada do ritmo normal no processo de regularização das Terras Indígenas;
– reiteramos a nossa exigência de revogação da determinação do Presidente da Funai em não iniciar os estudos para a revisão de limites de terras indígenas cujas demarcações excluíram indevidamente partes do território tradicional;
– o presidente do Incra assumiu, no Abril Indígena de 2005, o compromisso de realizar uma análise das 74 áreas de conflito envolvendo povos indígenas e pequenos agricultores, com o objetivo de reassentar os pequenos agricultores fora dos territórios indígenas; não tivemos qualquer notícia sobre esta análise.
3. Ameaças aos direitos indígenas no Congresso Nacional
– é grande o volume de proposições legislativas que hoje tramitam no Congresso Nacional contra os direitos indígenas assegurados na Constituição Federal, especialmente os territoriais (destaques: PEC 38/99; PEC 03/04; PLS 188/04);
– face a esta situação, exigimos que os direitos indígenas não devem ser tratados isoladamente, mas de forma articulada dentro do Estatuto dos Povos Indígenas;
– o Deputado Aldo Rebelo, Presidente da Câmara dos Deputados, comprometeu-se em criar uma Comissão Permanente de Assuntos Indígenas naquela Casa, para discutir e encaminhar todas as demandas relacionadas com a garantia dos direitos indígenas reconhecidos pela Constituição Federal.
4. Gestão territorial e sustentabilidade das Terras Indígenas
– continuamos preocupados com a possível desvirtuação, no âmbito da Casa Civil, do Ante Projeto de Lei de acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados saído do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) e elaborado com participação das organizações indígenas e da sociedade civil organizada;
– reivindicamos a participação indígena no CGEN com direito a voto;
– repudiamos o projeto de transposição do rio São Francisco e apoiamos um programa de revitalização do rio;
– repudiamos a determinação do Governo Federal em construir empreendimentos hidrelétricos que afetam Terras Indígenas, como Belo Monte, Estreito e os do Rio Madeira;
– reivindicamos que o governo federal assuma como prioridade a criação e implementação de uma Política e Programa Nacional de Gestão Territorial e Proteção da Biodiversidade em Terras Indígenas, com participação dos povos e organizações indígenas, garantindo os recursos necessários para a sua execução;
– reivindicamos que o Governo conclua em 2006 o processo de finalização do Projeto Nacional de Gestão Territorial e Proteção da Biodiversidade em Terras Indígenas para encaminhar para aprovação do Fundo Global do Meio Ambiente (GEF);
– solicitamos a revogação de todos os decretos que criaram unidades de conservação sobrepostas as Terras Indígenas, conforme deliberado na Primeira Conferencia Nacional de Meio Ambiente;
– o Ministério do Meio Ambiente comprometeu-se também, em 2005, em reunir e articular as várias ações e projetos para os povos indígenas dentro do Ministério para integrá-las; isto também não foi cumprido.
5. Saúde Indígena
– constatamos uma piora acentuada, de 2005 para cá, no atendimento à saúde dos povos indígenas; faltou a capacitação para os indígenas que integram os Conselhos Distritais; os recursos continuam incompatíveis com as demandas dos DSEIS; a falta de autonomia administrativa e financeira dos DSEIs também prosseguiu;
– rechaçamos a tendência de municipalização da gestão da saúde indígena visando o uso político-eleitoral da estrutura da Funasa e seu descaso para com uma prestação de serviços de saúde compatível com a realidade dos povos indígenas;
– exigimos que a FUNASA se estruture para assumir de fato suas responsabilidades na gestão da saúde indígena, garantindo sua federalização;
– reivindicamos a capacitação dos integrantes indígenas dos Conselhos Locais e Distritais de Saúde Indígena para a fiscalização da aplicação dos recursos e das ações da FUNASA;
– exigimos que se garanta a autonomia administrativa e financeira dos DSEIs;
– exigimos a formulação e implementação, pela FUNASA, de um plano diferenciado de atenção à saúde da mulher indígena, que inclua ações preventivas efetivas e promoção da saúde da mulher indígena bem como o apoio às iniciativas das organizações das mulheres indígenas e garantia da sua participação em todas instâncias de discussão da saúde da mulher indígena;
– exigimos o reconhecimento e apoio às parteiras, pajés e agentes indígenas de saúde, com a respectiva valorização da medicina tradicional;
– o Ministério da Saúde comprometeu-se, em 2005, em analisar e implementar regras próprias para as organizações indígenas conveniadas com a FUNASA e com o reconhecimento profissional dos agentes indígenas de saúde; isto não foi cumprido.
6. Educação
– continuamos entendendo que a transferência da execução das ações da educação escolar indígena para os estados – e destes para os municípios – é o principal problema para a implantação de uma educação escolar indígena diferenciada e de qualidade;
– continuamos a exigir do MEC a convocação de uma Conferência Nacional de Educação Indígena e que o Governo Federal estude formas de obrigar aos estados e municípios a cumprirem com as exigências impostas pela Constituição e normais legais que nos asseguram uma educação escolar específica, diferenciada e de qualidade;
– continuamos a exigir a ampliação dos convênios com as Universidades Públicas Federais e estaduais nas regiões e não só com a Universidade de Brasília;
– exigimos do MEC a definição de uma Política para os Povos Indígenas de Ensino Superior;
– continuamos a exigir do MEC que implemente junto aos Estados a abertura dos cursos de ensino médio nas aldeias;
– o MEC se comprometeu, em 2005, a implementar o que chama de “assistência estudantil” – uma bolsa de estudos para manter os estudantes indígenas nas universidades; isto não foi cumprido;
– o MEC se comprometeu, em 2005, em pressionar os Estados para garantir a presença indígena nos Conselhos Locais e Nacional do FUNDEF e em aumentar o orçamento para a educação escolar indígena em 2006; isto também não foi cumprido.
Ressaltamos que o Acampamento Terra Livre é a expressão da vontade de união dos povos indígenas do Brasil entre si e com seus aliados. Apesar das forças contrárias, continuamos determinados a lutar para garantir o irrestrito respeito aos nossos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Renovamos a nossa esperança na conquista de dias melhores.
Brasília, 06 de Abril de 2006.