A falácia da vocação para o trabalho rural
Por Kelli Mafort
Em artigo publicado recentemente em alguns jornais de Ribeirão Preto, nordeste de São Paulo, um conhecido comunicador defendeu a vocação como dom de Deus: uns nascem para varrer rua e outros para serem magnatas do agronegócio.
A vocação, no entanto, está ligada ao desenvolvimento de habilidades e, sobretudo, às oportunidades para desenvolvê-las. É um erro falar em vocação sem contextualizá-la nas questões econômica, social e cultural. É um crime contra o conhecimento. Mero jogo de palavras, senso-comum que nada contribuem para o esclarecimento da opinião pública.
A realidade nos mostra que pessoas que têm acesso à boas escolas desde a infância, tendem a ocupar vaga nas melhores universidades do país, que são as públicas. Apenas para quem teve oportunidade como essa, é possível se tornar médico, advogado, engenheiro etc. Os filhos e filhas dos pobres do Brasil não têm muita escolha neste sentido: sua trajetória acaba os encaminha para a ocupação de faxineiros, copeiras, lixeiros, ambulantes etc. Embora as exceções existem dos dois lados, a regra é bem outra.
O referido comunicador desenvolveu pensamento com claro objetivo de atacar os movimentos sociais que lutam pela democratização da terra e pela Reforma Agrária. Num país como o Brasil, recordista mundial no ranking do latifúndio, torna-se jogo de palavras afirmar, como o jornalista o fez, que nem todos têm vocação para o trabalho na terra. Seu texto fala de um suposto desperdício de recursos públicos quando se coloca terra nas mãos de quem não sabe trabalhar com ela.
A construção de habilidades está relacionada ao processo de pesquisa e produção de saberes, é possível que pessoas que nunca trabalharam com a terra sejam capazes de apreender tal conhecimento, movidas pela necessidade e pelo interesse. Quem trabalha na terra há anos também tem que aprender todos os dias. No assentamento do MST de Ribeirão Preto, Sepe Tiaraju, temos exemplos como Seu Altino, que coordena a horta do Centro de Formação Sócio-Agrícola Dom Hélder Câmara. Com 73 anos de trabalho na roça, seu Altino sempre foi empregado. Acumulou experiências com a produção agrícola natural e também com o uso de adubos químicos, agrotóxicos. Hoje está à frente de um projeto de horta orgânica que valoriza a terra e a vida. Seu Altino teve que aprender e reaprender todos os dias. Teve que, inclusive, resgatar sua experiência do tempo que trabalhava sem veneno.
A falácia do discurso da vocação feito pelo comunicador e tantos outros reside nos interesses diversos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, até meados da década de 70, a maioria (70%) da população brasileira vivia no campo. Por conta das mudanças no modelos de desenvolvimento no país, a riqueza das mesquinhas elites brasileiras promoveu o desastroso êxodo rural. Em 1990, as estatísticas sobre a localização da população brasileira, inverteram-se radicalmente. Eis a falácia: quando se necessita mão-de-obra para impulsionar o tal desenvolvimento das cidades – como no caso de São Paulo e São Bernardo do Campo nos anos 70 – certamente não se utiliza o argumentação da vocação. Trabalhadores e as trabalhadoras nos anos 70 tinham experiência de trabalho no campo e pouquíssimo conhecimento em metalurgia ou construção civil. Apesar disso, interesses específicos treinaram esses trabalhadores e fizeram deles pessoas capazes de apreender a nova ocupação. Esse processo não envolve vocação ou dom, mas sim desenvolvimento de habilidade. Os processos de formação têm papel fundamental na aquisição de habilidades; negar sua capacidade de transformação é negar a capacidade dos educadores, das entidades e instituições que se dedicam a este fim.
O modelo agrícola adotado no país combina o uso de tecnologia, automação, produção voltada à exportação, monocultura, concentração da terra e formação de corporações. É o chamado agronegócio, que dispensa mão-de-obra no campo; expulsa os trabalhadores e as trabalhadoras da terra. No novo modelo agrícola, o quadro de desenvolvimento rural só agrega quem estiver servindo ao modelo, ainda que sejam pequenos produtores. Não é à toa que em 2004, na última Agrishow de Ribeirão Preto (SP), espécie de feira internacional do agronegócio, dedicou-se tanto espaço à Agricultura familiar: para que pequenos e médios produtores pensem em produzir com a cabeça dos grandes e, principalmente, a serviço deles.
O MST acredita na transformação do ser humano e no resgate de sua dignidade através da formação e da vivência de práticas educativas. Em todo o Brasil, estamos construindo convênios com Universidades e diversos organismos para a promoção de cursos em nível superior para que nossas famílias, acampadas ou assentadas, usufruam dos conhecimentos nas áreas de pedagogia, agronomia, ciências agrárias, filosofia, etc. Entre os cursos, merece destaque o de Medicina, desenvolvido por meio de convênio com o governo cubano e Escola Latino Americana. Assim, Cuba pode socializar o legado histórico na área em que é referência mundial. Em 2005 forma-se a primeira turma deste convênio. Ribeirão Preto irá receber Marcelo que, depois de passar seis anos estudando Medicina em Cuba, volta para seu assentamento formado. Negro, pobre, filho de família assentada, Marcelo nunca imaginou que conseguiria realizar o sonho de ser médico. Provavelmente não chegaria ao olimpo da USP de Ribeirão Preto, por exemplo. Sua vocação era mesmo a de trabalhador rural. Acreditamos que existem hoje mais brasileiros negros e pobres médicos formando-se em Cuba, do que em nossas próprias universidades. Isto é vergonhoso e nada tem a ver com vocação!
O MST tem o projeto de construção de uma universidade popular em área abandonada da Fundação do Estado para o Bem Estar do Menor (FEBEM). Nos perguntamos se esta não é a razão que nos despejou de forma tão violenta da área onde estávamos há nove meses, no dia 16 de fevereiro. Não devemos ter tanta vocação para ousar pensar em universalizar o saber entre os pobres. Mas não desistimos! Nem de Batatais, nem do projeto da nossa Universidade, nem da preservação do Aquífero Guarany na Fazenda da Barra e nem da construção de novo modelo de assentamento na área recém conquistada em Serra Azul. A teimosia do nosso povo fará a diferença!
Um dia, quando efetivarmos amplo processo de Reforma Agrária, a maioria do povo de nossa cidade não terá que buscar tão longe alimento básicos, como se faz hoje em função do domínio da monocultura em nossa região. Um dia, nossa cidade comerá não somente pés de alface vindos de nossos assentamentos, mas mandioca, abóbora, milho, feijão e tantos outros alimentos.