As lições do jovem Apolônio de Carvalho
Por Igor Felippe Santos e Maíra Kubík Mano
Militante da ANL (Aliança Nacional Libertadora) na década de 30 e integrante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) até os anos 60; combatente ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e da Resistência Francesa contra a ocupação nazista (1942-1944); fundador do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) em 1968 para levar a cabo a luta armada contra o regime militar; e signatário da primeira ficha de filiação do PT (Partido dos Trabalhadores), em fevereiro de 1980.
São 93 anos de idade e mais de 60 anos de militância comunista do tenente-general Apolonio de Carvalho. Sua trajetória se confunde com a história da luta pela democracia e, particularmente, da esquerda no Brasil. Para a entrevista, 30 minutos. É o que sua companheira Reneé de Carvalho concedeu a equipe reportagem da Revista Sem Terra. Conclusão: somente meia hora para extrair o essencial da experiência de um dos protagonistas políticos do século 20.
No pouco tempo de conversa, Apolonio comentou as lições do último período da história, os avanços da sociedade com a democracia, os desafios da esquerda e a crescente participação das mulheres e da juventude na construção do socialismo. “O socialismo é a forma superior de democracia”, afirma o militante comunista histórico.
Para ele, as transformações na sociedade só podem ser feitas pelo povo, que apenas participará do processo se estiver convencido pelas idéias. Ao falar sobre o governo, defendeu que “Lula não abandonou e não abandonará o caminho do socialismo por sua trajetória, história e origem”. Leia a seguir as lições de Apolonio.
Quais as lições que os movimentos de esquerda podem tirar do século 20?
Apolonio de Carvalho – Eu sou um velho militante, não de cultura tão ampla assim nem dotado de capacidade de resumir ou fazer uma espécie de balanço desse quase um século que eu estou vivendo. Continuam as realidades de desigualdade e injustiças sociais, que vem dos séculos anteriores. Estou convidando vocês a fazer um passeio muito longo: desde a minha adolescência. Já nos anos 20 do século passado, sentíamos o protesto do povo contra as arbitrariedades dos governantes, o desprezo pelas reivindicações e os desejos do povo. E sobretudo contra o contraste e as injustiças sociais. Iniciei a minha prática social antes da prática política, através dos movimentos sociais que pregavam a luta pela democracia, pelas liberdades e pela soberania nacional. Nós fomos sempre dominados pela pressão dos monopólios externos e internos. Deve ter sido difícil em outras épocas. Mas particularmente na nossa é difícil quando as contradições sociais se avolumam e se aguçam profundamente. Por exemplo, estamos saindo do século 20, que foi o mais cruel e contraditório de todos os séculos recentes. Foi a mais penosa e contraditória faixa da era contemporânea, que começa na Revolução Francesa. Todos os contrastes aguçados, uma sociedade marcada por duas guerras, terríveis extremos de pressão, genocídios racistas. Marcada por uma série de rebeliões e uma série de ditaduras militares e civis. No Brasil, 43 anos foram marcados por ditaduras militares ou civis. Mesmo assim, nosso povo foi abrindo caminho para a democracia. E os jovens, e depois os menos jovens (os que sendo velhos acreditam que a velhice é apenas a juventude amadurecida), continuamos na luta, que está cheia de promessas.
Quais as principais conquistas da sociedade contemporânea?
AC – Passamos por conquistas sociais muito bonitas através da democracia, dos governos de frentes populares na Europa, experiências mais próximas do povo em nosso país em certos momentos. Passamos também pelas experiências socialistas iniciais. É uma experiência muito rica para esse tempo, da minha geração e das que se seguiram. Nos ensina a compreender que só com o povo a gente pode fazer a luta. É necessário compreender também que as classes dominantes condenaram o nosso povo através da falta de educação, da pressão, da miséria e das injustiças. Temos que não somente contar com a presença do povo nas mudanças da sociedade, mas também com a necessidade daqueles setores que têm princípios de cultura e contato com essa realidade. É preciso um cuidado especial com um debate político com a população, com a formação política da grande massa do povo. As mudanças só podem ser feitas com o povo. No entanto, o povo não participa das grandes mudanças se não está convencido delas. Para se convencer, é preciso conhecer a realidade, ter idéia das forças que são favoráveis às mudanças e das que são terrivelmente contra; quem são aliados solidários na luta por justiça e por direitos humanos e, ao mesmo tempo, o conhecimento de quais são as forças renitentes. E nós devemos fazer o que vocês do MST fazem. Vocês são um exemplo. O empenho de debate político e de formação, de educação política.
O que os movimentos sociais não podem esquecer?
AC – A grande experiência é essa: compreender que não se pode fazer nada fechando os olhos para a realidade. Temos companheiros que têm os mesmos horizontes que nós temos. Queremos a juventude do mundo através do socialismo. Mas há companheiros apressados, que querem o socialismo da noite para o dia. No mais tardar, amanhã depois do almoço. Ou, no mais tardar dos tardares, amanhã ao cair da tarde. Isso não pode acontecer. As pessoas mais conscientes podem lutar e encaminhar as coisas em um sentido de mudança, mas o povo não compreende de repente como fazer e como participar do processo. Esse é um dos ensinamentos mais altos da trajetória recente.
Como colocar esses ensinamentos na prática cotidiana?
AC – Sobretudo é preciso sentir que a realidade tem tantas contradições, contrastes e protestos diante do que se passa que precisa ser modificada. Aí entra as leis gerais do caminho fundamental para compreender as necessidades das mudanças: as leis gerais da dialética. Primeiro, não se deixar levar, nem pela mídia nem pelas belas palavras dos demagogos. É a luta dos contrários. Em segundo lugar, a compreensão de que para chegarmos a horizontes novos, temos que passar por escalas, etapas sucessivas, formas novas de democracia, cada vez mais apoiadas no povo. Armando o povo com a formação, não só de cultura, mas de debate político. Formação e prática para abrir caminho para horizontes diferentes. São as passagens, as conquistas parciais sucessivas para chegarmos aos horizontes mais altos. É necessário ter um ideal de transformação da sociedade e ser fiel, desde que ele seja amplamente apoiado na grande massa da população. A grande massa da população não nos acompanhará se não estiver consciente da realidade que está diante de nós, das injustiças e da necessidade de mudar a sociedade. Temos de debater orientações para definir os caminhos da mudança. Os movimentos sociais e os partidos políticos têm programas de transformação. Precisamos saber ganhar o nosso povo, fazê-lo compreender que essa realidade é muito injusta e cruel, mas que é possível transformá-la.
Como você vê a democracia?
AC – A trajetória da sociedade e dos povos em geral, do nosso país e do nosso continente, tem momentos diferenciados. Tem os momentos de liberdades públicas e, num certo nível, bem-estar assegurado por governantes que puderam ser a força determinante na orientação da sociedade. A sociedade teve momentos de presença de formas de democracia que facilitaram muito essa consciência, a presença do povo na arena social – como sempre esteve – mas também na arena política. A conquista de regimes de democracia é uma espécie de fio condutor da presença do povo para as transformações, com respeito, direitos e direitos humanos, vistos de uma maneira mais ampla. Não apenas o direito de pensar, ter religião, se locomover ou se expressar. Mas também os direitos de ter condições de viver, pensar, pesquisar e debater. A população não consegue se apropriar ou compreender melhor os direitos de cidadania se está condenada a regimes de miséria, fome, desemprego e abandono por parte das forças dominantes. Os regimes de democracia, apoiados em níveis de consciência sempre maiores do povo, representam o canal de conquistas sucessivas.
Democracia e socialismo são conciliáveis?
AC – Deveríamos pensar que democracia e socialismo não são coisas nem tão aparentemente distantes nem tão contraditórias. As conquistas democráticas, populares, trouxeram a presença constante do povo na arena política, a visão clara por faixas cada vez mais amplas do povo das necessidades da nossa sociedade, dos seus flancos mais atrasados com seu desejo de ganhar o direito de sonhar e de viver. Tudo isso representa os avanços constantes dos regimes de democracia. Através de suas etapas, nós nos aproximamos da forma mais humana e ampla de democracia que é o socialismo, que vai abranger com maior vigor e maior amplitude as faixas abandonadas e desprezadas da população, colocadas fora da ordem das preocupações das classes dominantes. Suas etapas serão marcadas por níveis de consciência cada vez mais altos, pela presença das massas populares nas decisões políticas e para uma visão clara do novo salto de qualidade.
No caminho para a construção do socialismo, qual o papel do governo Lula?
AC – Hoje há uma série de problemas a debater de maneira muito fraterna e muito solidária. Sem a arrogância dos que se consideram donos da verdade absoluta e não admitem a troca de idéias. Lula não abandonou e não abandonará o caminho do socialismo por sua trajetória, história e origem. Também por sua identificação com o papel dos movimentos sociais e dos partidos políticos de esquerda que querem mudar a realidade existente. O socialismo é cada vez mais claro como uma necessidade, mas exige o avanço no nível de consciência dos trabalhadores e da sociedade em geral. Temos uma realidade inimiga que é preciso mudar. Quanta gente ainda se deixa levar pelas conversar e soluções extremamente parciais. Portanto, um trabalho de debate político constante com a população, de aberturas de lugares mais sempre mais amplos para sua presença ativa no debate das idéias e na busca de caminhos para a mudança. Isso é com o tempo, não vem da noite para o dia. A preocupação do governo Lula e do PT, em suas faixas mais identificadas com a necessidade de mudanças, é como fazer as mudanças com apoio social e popular. Queremos mudanças feitas com o povo consciente.
Como você avalia o papel dos movimentos sociais?
AC – Os movimentos sociais não podem ficar apenas na visão das mudanças ligadas exclusivamente a certos temas vitais, como a terra. Além de ter a terra, é preciso ter condições para usá-la, para transformá-la por meio do trabalho produtivo e de formas novas de relação do campo-cidade. Esse é um trabalho magnífico que o MST já faz. No entanto, o MST é ainda uma força isolada na sociedade. Olhem os partidos de esquerda: todos têm muito pouco esforço de debate político interno entre seus filiados e militantes.
Os partidos deixaram de lado a formação?
AC – Tem muito pouco espaço para um cuidado especial para a formação política de seus filiados. Um exemplo é o PT. O partido conta hoje com 870 mil filiados. Participaram nos debates das primeiras prévias em 2002, em cada estado, apenas 270 mil filiados. Isso significa, palpavelmente, que um filiado em três participou das discussões. Apenas esses militantes entraram na cidadania interna do partido. O restante se manteve alheio. Eram simples filiados. Isso representa que há uma distância muito grande entre as direções e os partidos de esquerda, de centro-esquerda e nos demais partidos também.
Qual a importância da formação política dos militantes?
AC – A formação política começa simples, passa para o nível mediano e, finalmente, chega no nível mais alto, com as pessoas presentes e de olhos abertos na arena política no momento das grandes decisões nacionais, regionais e municipais. Fui convidado várias vezes para participar de conferências do MST. Nem sempre pude ir, mas mandei meu apoio, meu aplauso e entusiasmo com o trabalho de dedicação e de formação. Uma das coisas que dificultaram o avanço do governo Lula na mobilização da população para ter uma posição crítica mais ampla e coletiva dos erros cometidos é a distância entre as direções e as suas bancadas nas assembléias legislativas, nas câmaras de vereadores e no Parlamento. Isso não só pelo PT, mas pelos partidos de centro-esquerda.
Neste momento de crise e frustração, como fica a esperança do povo brasileiro?
AC – Quero ligar a esperança a algumas questões. Primeiro, o nível de visão da pluralidade da realidade e, portanto, da necessidade de se transformar a sociedade. Segundo, a busca de explicações dos motivos dos que são responsáveis pela realidade tão dura e também das forças interessadas em mudar no campo das alianças políticas. Em terceiro lugar, os caminhos de transformação. Muita gente quer, como todos nós queremos, o socialismo amanhã. Mas alguns querem um amanhã muito próximo de hoje. Um pensamento que parece mágico, que eu aprendi com um professor de universidade argentino: não vale apenas a gente olhar para a realidade e protestar contra ela, mas é preciso olhar para a realidade, armados da visão de um outro mundo melhor e da busca de condições para avançar. Queremos um mundo não apenas melhor, mas um mundo mais jovem, mais cheio de criatividade, de abnegação, paz, justiça, relações humanas amplas e puras. O ideal de uma sociedade nova, na qual se corrigiriam paulatinamente as injustiças e crueldades, projetando o ideal em um horizonte de mais igualdade, fraternidade e solidariedade.
O que é o socialismo para você?
AC – Para mim, há muito tempo, o socialismo é a forma superior de democracia. Democracia não apenas no sentido das bandeiras da Revolução Francesa, como liberdade, fraternidade e igualdade. A igualdade será produto de uma longa luta entre as classes que querem um mundo melhor e as classes que têm receio de um mundo melhor, e querem guardar sua ligação com um presente muito próximo do passado. O entendimento da longa luta deve estar casado, cada vez mais – aí eu falo particularmente para os jovens – com o sentido da responsabilidade humana, cada vez mais presente nas populações chamadas a levantar alto as bandeiras renovadoras e de mudanças em busca de um mundo mais justo. A presença dos jovens e das mulheres representa um contigente ativo, particularmente novo nos últimos 40 anos. Quando falo e sinto os jovens, eu tenho vontade de levantar os braços deles e agradecer a presença ativa como se gritasse aleluia.
* A entrevista foi concedida em 19 de agosto de 2005, em São Paulo (SP). Apolônio de Carvalho faleceu em 23 de setembro.